Jardins de azul

Além da sua estética muito própria, de contrastes suaves e aparência algo retro, oferece uma grande flexibilidade criativa, possibilitando a produção de imagens em vários suportes. É popular entre fotógrafos e artistas visuais que procuram abordagens alternativas de impressão.

por João Paulo André
Químico 

Foi de azul que Cesário Verde pintou o granzoal do seu pic-nic de burguesas (aquele em que o encanto supremo da merenda seria, afinal, um ramalhete rubro de papoulas!). Embora as flores da planta do grão-de-bico não sejam azuis, é fácil aceitar a liberdade poética do autor, uma vez que se trata de uma floração de tonalidade arroxeada. Azuis, azuis mesmo, foram os fotogramas das espécies botânicas que a inglesa Anna Atkins (1799-1871), entre 1843 e 1853, publicou nos três volumes de Fotografias de Algas Britânicas: Impressões Cianotípicas. Apesar de se tratar de uma edição de autor e escrita à mão, esta obra é hoje considerada a primeira totalmente ilustrada com recurso a um processo fotográfico. Além disso, pode-se afirmar que este trabalho demonstrou, desde o primeiro instante, a convergência da utilidade científica e do apelo estético da fotografia.

A técnica a que Atkins recorreu, numa época em que a fotografia dava os primeiros passos, designa-se por cianotipia (do grego kyanos, que significa azul). Tinha sido recentemente criada pelo polímata britânico John Herschel (1792-1871). O processo requer uma mistura em partes iguais de uma solução de ferricianeto de potássio a 10% e de uma solução de citrato férrico amoniacal a 25%.

A mistura é aplicada no suporte, geralmente papel ou tecido. Após secar, no escuro, os objetos desejados são colocados sobre ele. Em seguida, o conjunto é exposto à luz ultravioleta, seja da radiação solar ou de uma lâmpada UV (que não existia naquele tempo). Da transformação química que ocorre por ação da luz (reação fotoquímica) resulta um produto de cor azul conhecido como azul-da-prússia (ferrocianeto férrico). Ao contrário dos reagentes utilizados, este é insolúvel. Por fim, o fotograma é lavado com água para remover as substâncias que não reagiram, especialmente nos locais onde estavam os objetos opacos.

Filha de John George Children (1777-1852), um destacado químico, mineralogista e zoólogo, Anna Atkins recebeu uma educação científica extraordinariamente avançada para uma mulher da sua época. Os escassos registos existentes indicam que a sua descoberta da fotografia ocorreu depois de o pai, em 1839, ter presidido a uma sessão da Royal Society em que William Henry Fox Talbot (1800-1877) apresentou os resultados das suas experiências. Talbot foi um cientista e inventor cujas contribuições pioneiras no campo da fotografia rivalizaram com as do francês Louis Daguerre (1787-1851). Uma das suas invenções foi o ‘desenho fotogénico’. Este consistia em colocar um objeto sobre papel fotossensível (previamente banhado numa solução de cloreto de sódio e depois pincelado com outra de nitrato de prata) e expô-lo ao sol, para produzir um fotograma. Atkins ter-se-á correspondido com Talbot e Herschel, assim como com outros pioneiros da fotografia, por vezes por intermédio do pai.

Ao utilizar a cianotipia para capturar imagens precisas e detalhadas de espécies botânicas, Anna Atkins promoveu uma verdadeira revolução no campo da ciência, ainda que no imediato o seu trabalho tenha sido pouco valorizado. Os seus fotogramas podiam, nalguns casos, substituir os tradicionais e laboriosos desenhos da ilustração científica. Na década de 1850, com a colaboração da grande amiga de infância, Anne Dixon, produziu mais dois álbuns, de fetos e plantas florais, com recurso à mesma técnica. Atkins, que chegou a ser membro da Sociedade Botânica de Londres, conservou todas as plantas que usou no seu trabalho, doando-as ao Museu Britânico em 1865.

Apesar de antiga, a cianotipia é uma técnica fotográfica que continua a ser valorizada e praticada nos nossos dias. Se o objeto colocado sobre o suporte for um negativo de uma fotografia, obtém-se um cianótipo que é um positivo. Por ser uma forma simples e de baixo custo de produção de cópias de projetos técnicos, foi usada na engenharia e na arquitetura até ao século XX – as chamadas blueprints. Além da sua estética muito própria, de contrastes suaves e aparência algo retro, oferece uma grande flexibilidade criativa, possibilitando a produção de imagens em vários suportes. É popular entre fotógrafos e artistas visuais que procuram abordagens alternativas de impressão. É o caso, por exemplo, de Horie Mika (n. 1984), uma artista fotográfica japonesa cujos trabalhos puderam ser vistos recentemente na Photo Basel. Por cá, até final de Setembro, é possível fazer cianotipia no jardim da Fundação Calouste Gulbenkian, na oficina Sun Gardens.