“O passado nazi não prescreve”

Como é possível que altos funcionários do regime de Hitler tenham sido ilibados dos seus atos e até mesmo tido carreiras bem-sucedidas na Alemanha de Adenauer? Em Foram Todos Nazis, o jornalista Helmut Ortner denuncia o falhanço do sistema judicial alemão nos anos do pós-guerra.

N ascido em 1950 em Gendorf, junto à fronteira com a Áustria, Helmut Ortner foi tipógrafo antes de prosseguir os seus estudos em Educação Social e Criminologia na Universidade de Darmstadt. Trabalhou em prisões, acabando depois por fazer formação em jornalismo.

É autor de vários livros, em especial sobre a história da pena de morte e sobre o sistema judicial na Alemanha do pós-guerra. Foram Todos Nazis, que acaba de ser publicado em Portugal pela Alma dos Livros, debruça-se sobre a incapacidade do sistema judicial alemão para lidar com o passado nazi, permitindo o branqueamento de várias figuras e dos seus crimes cometidos ao serviço do regime iníquo de Hitler.

«O facto de os nazis terem feito carreira depois da guerra nos negócios, na política, nos tribunais, nas universidades, nos ministérios, nas autoridades e instituições não foi de forma alguma uma exceção», escreve Ortner. «Dezenas de milhares de criminosos, simpatizantes, seguidores e cocriadores que serviram o regime nazi em cargos importantes prosseguiram as suas carreiras – agora ‘desnazificadas’ – na nova República Federal da Alemanha. Eram políticos, advogados, oficiais, médicos, empresários e jornalistas».

Foram Todos Nazis apresenta quatro casos paradigmáticos: o juiz militar Erich Schwinge, que após o fim da guerra teve uma bem sucedida carreira académica como professor de Direito em Magdeburgo; Arnold Strippel, guarda responsável por aplicar castigos desumanos aos prisioneiros do campo de concentração de Buchenwald; Roland Freisler, presidente do Tribunal Popular, que condenou à morte mais de três mil pessoas; e Johann Reichhart, um carrasco que «trabalhou para três patrões diferentes» – a República de Weimar, o nacional-socialismo e as forças de ocupação americanas.

Mas seria exequível julgar todos os responsáveis nazis, ainda para mais abdicando dos magistrados que tinham trabalhado para o Terceiro Reich? A Alemanha não precisava de todos os seus recursos para se reerguer das cinzas? E, mesmo que fosse possível julgar todos os responsáveis, esse processo não corria o risco de pôr os alemães uns contra os outros, gerando ainda mais ressentimento?
Helmut Ortner respondeu às perguntas do Nascer do SOL por escrito.

Como se explica que pessoas aparentemente comuns cometessem crimes tão hediondos nos anos 1933-1945? Houve uma espécie de psicose coletiva na Alemanha de Hitler?

A ilusão nacional-socialista só pode ser explicada se tivermos em conta todo o contexto intelectual e ideológico da época. O padrão do aparecimento e desenvolvimento da sociedade nacional-socialista pode ser observado em todas as ditaduras: propaganda, exclusão dos supostos inimigos, perseguição dos opositores, um estado de delírio generalizado… Os crimes, as mentiras e a arbitrariedade vivem do conformismo. Não bastam os propagandistas e os participantes ativos, é preciso uma maioria conivente. Pessoas que olham para o outro lado, cúmplices e beneficiários.

Escolheu desenvolver no seu livro quatro casos bastante diferentes entre si. São de algum modo paradigmáticos de como a Alemanha lidou com os criminosos do nazismo?

Este é um livro sobre perpetradores e vítimas, sobre como o passado faz parte do presente. Sim, escolhi esses por serem casos exemplares, figuras exemplares.

Ao contrário de outros nazis, Arnold Strippel, Rapportführer no campo de concentração de Buchenwald, acabou por ser julgado. O que falhou para ele não ser condenado?

Strippel era um nazi convicto, um fanático. Era um homem ambicioso, brutal e em quem os nazis podiam confiar. Depois da guerra, porém, não foi possível provar qualquer dos homicídios individuais que cometeu. Como muitos outros carrascos dos campos de concentração, defendeu-se dizendo que se tinha limitado a cumprir ordens.

Roland Freisler, presidente do Tribunal Popular que condenou à morte cerca de três mil ‘inimigos do Estado’, morreu num bombardeamento em 1945. Nunca saberemos se seria ou não levado à Justiça. Por que o incluiu neste livro sobre os crimes que ficaram por punir?

Freisler é um personagem criminoso fora do comum. Foi um juiz implacável às ordens de Hitler, emitindo mais de 2600 sentenças de morte. E mesmo com esse cadastro, era bem possível que depois da guerra a sua carreira no sistema judicial tivesse prosseguido. No pós-guerra, Hans Globke, um dos criadores das Leis Raciais de Nuremberga de 1936, que levaram ao assassínio dos Judeus, veio a ser um dos mais poderosos e influentes secretários de Estado de Adenauer [Konrad Adenauer, chanceler da Alemanha Ocidental entre 1949 e 1963]. Freisler teria, no mínimo, recebido uma pensão choruda. Em 1985 tornou-se público que a sua viúva, Marion Freisler, recebia uma pensão ao abrigo da Lei Social Federal e, de 1974 em diante, teve direito a uma compensação suplementar. Este pagamento foi justificado por se assumir que, caso Freisler tivesse sobrevivido à guerra, teria um vencimento superior como advogado ou funcionário público.

O caso do carrasco Johann Reichart é particularmente interessante, pois trata-se de alguém que enriqueceu à custa de matar outras pessoas ao serviço do Estado. Ele alguma vez mostrou algum tipo de arrependimento?

Nunca. Reichart via-se como um ‘instrumento’ do Sistema judicial, como um simples executor de penas. Eis a sua justificação: ‘Eu não pronunciei as sentenças de morte, apenas as levei a cabo…’.
Ao ler o seu livro, lembrei-me do que escreveu o historiador alemão Christopher Duggan a propósito do período turbulento que se seguiu à queda de Mussolini em Itália: «A guerra civil […] continuou até muito depois de maio de 1945: nos dois anos seguintes, pelo menos vinte mil fascistas foram caçados e mortos por grupos de vigilantes [milícias populares]». Com todos os seus defeitos, a brandura da justiça alemã não é preferível à justiça popular italiana?
A justiça pelas próprias mãos não é aceitável num Estado de Direito. E tanto a República de Adenauer como a constituição alemã estiveram sempre empenhados em construir e defender o Estado humano e democrático. Devo dizer, em defesa da República de Adenauer e do sistema judicial do pós-guerra, que, apesar de todas as críticas de ‘brandura’ face aos criminosos nazis e àqueles que os apoiaram, houve um reforço do Estado de Direito e dos seus organismos. Sobretudo os sociais-democratas do SPD – apesar da grande resistência que enfrentaram – contribuíram para uma mudança no sistema judicial e na sociedade.

Volto a citar o seu livro: «Alemanha, 1945. Uma nação de jubilantes tornou-se uma nação de mudos». Houve uma espécie de pacto do silêncio na Alemanha do pós-guerra?

A maioria dos alemães não queria voltar a ouvir falar de crimes de guerra, de crimes contra a humanidade, de colaboração com os nazis, em suma, do desastre civilizacional e moral da Alemanha de Hitler. Enfrentar o passado era difícil, lembrava a cada um os seus falhanços e cumplicidade, a sua cobardia e desânimo. Isso deu origem a uma forma de repressão coletiva. 

Ainda há muitos alemães hoje indignados com a impunidade de que gozaram os responsáveis nazis no pós-guerra?

Não. A questão deixou de ser relevante para a esmagadora maioria das pessoas. Hoje o que se discute é o fortalecimento dos partidos de direita, como o AfD, dos partidos e políticos populistas – sobre o crescimento do radicalismo de extrema-direita, do anti-semitismo e da xenofobia. Esses são os principais desafios da atualidade.

Não acha que é demasiado fácil para nós, que tivemos a sorte de viver tempos bem mais pacíficos, julgar estas pessoas que tiveram de tomar decisões terríveis nas suas vidas?

Creio que a questão que permanece é a seguinte: será que a geração atual, a geração política e moralmente inocente, está completamente liberta do fardo da ditadura nazi e do seu legado? Será que a responsabilidade das gerações futuras não começa com a tomada de decisão acerca do que pretendem lembrar e o que querem esquecer? Vejo o meu livro como um apelo contra qualquer trivialização ou relativização do passado nazi. O passado nazi não prescreve.

O seu livro fala sobre a impunidade na Alemanha. Não sei se os casos são comparáveis, mas uma quantidade interminável de crimes foi praticada na União Soviética. Sabemos se os seus autores alguma vez foram levados à justiça? 

As comparações em História são sempre problemáticas. Escondem mais do que revelam. Mas claro: a barbárie e o terror também existiram em grande escala na União Soviética. Estaline assassinou centenas de milhares de pessoas. O sistema judicial era parte integrante do aparelho do terror. Os juízes e procuradores eram os capangas de Estaline. E muito poucos foram responsabilizados depois do fim do estalinismo.

Voltando ao caso alemão, não considera legítimo que o novo regime de Adenauer quisesse que o país andasse para a frente, em vez de ficar empancado a reabrir as feridas da guerra?

Os alemães tinham de lidar tanto com o trauma da culpa e a vergonha, como com os escombros e a reconstrução. A Alemanha precisava de se reerguer – economicamente, socialmente, politicamente… – e para isso era preciso uma reconciliação social. O que, por sua vez, acabou por implicar uma ‘integração dos perpetradores’ generalizada.

Apesar do problema que denuncia, não podemos considerar que a transição para o regime democrático foi um sucesso? A Alemanha é um dos países mais influentes e prósperos da Europa e do mundo.

Para a maioria das pessoas na Alemanha, aplica-se o compromisso ‘Nunca mais!’, um lema que transmite a mensagem de que a geração atual tem de retirar as suas lições da ditadura nazi e garantir que esta catástrofe humana nunca se irá repetir. Hoje vivemos numa democracia constitucional que temos o dever de defender: contra inimigos da democracia, contra negacionistas de extrema-direita e contra teóricos da conspiração… A Alemanha é um Estado de Direito sólido. Mas certas visões deturpadas continuam a encontrar apoiantes e a alimentar-se da ignorância, da indiferença e da falsificação. A nossa única obrigação é que temos o dever de lembrar.

Ainda há nostálgicos do Terceiro Reich na Alemanha?

Uma minoria, o que é bom. Mas há, como referi, partidos populistas como o AFD cujos representantes têm assento em todos os parlamentos regionais e no Bundestag, onde quebram tabus com a sua retórica de extrema-direita, por vezes nazi. Na Alemanha de Leste este partido atinge valores na ordem dos 20% dos votos. É um sinal preocupante.

Vê alguma vantagem em julgar pessoas com perto de cem anos, como Irmgard Fürchner, secretária no campo de Stutthof, ou Reinhold Hanning, antigo guarda da SS de Auschwitz? Não passou demasiado tempo sobre os crimes? O que ganhamos com a sua condenação?

Muitos desses crimes já prescreveram. Acho que é discutível se vale a pena julgar criminosos nazis com uma idade muita avançada. Quanto a mim, esses julgamentos são acima de tudo a prova irrefutável de um atraso escandaloso. Uma prova do falhanço clamoroso do sistema judicial e político dos anos 50, 60 e 70.