“Neste disco aceitei que iria ser eu sem precisar de pedir desculpa ou licença a alguém”

O músico do Funchal a viver, atualmente, em Lisboa, conta-nos que não conhece muitos musicais, apesar de ser fã deste estilo. Para quem ouviu o segundo disco de João Borsch, É só Harakiri, Baby, lançado no dia 26 de maio, parece algo estranho.

João Borsch junta todas as influências que vivem no seu imaginário, desde o trash metal a piscar o olho aos Metallica, à eletrónica que ouvia nas festas da terrinha na Madeira de madrugada, ao lado de pessoas de aspeto suspeito. Todas as vivências do artista têm espaço em É Só Harakiri, Baby, um autêntico circo musical que faria Mike Patton (Faith No More, Mr. Bungle) corar de inveja.

O músico madeirense falou com o i sobre o seu percurso musical, a criação deste disco e o orgulho que sentiu por conseguir imprimir nele a sua expressão sexual.

 

Podia explicar o início do seu percurso musical? Por onde começou?

Comecei a fazer música desde muito cedo, devia ter nove anos. Tocava com o meu irmão mais velho, que tem mais quatro anos do que eu, e começámos logo no heavy metal (risos). Tínhamos uma banda e chegámos a lançar um disco, em 2012, quando tinha 11 anos. Ainda considero esse disco surpreendentemente bom, especialmente porque éramos uns putos que não sabíamos o que estávamos a fazer. Apesar de continuar a estar envolvido nesta cena do metal, comecei a interessar-me por outros estilos musicais, muito motivado por ter começado a ouvir Kanye West, que me fez abrir os horizontes e também me motivou a fazer a minha própria música. Nessa altura estava a estudar música na Madeira e decidi que queria continuar a minha educação em Lisboa. Em 2018 mudei-me para aqui para começar a minha licenciatura, coincidindo também com o ano em que lancei o meu primeiro EP em nome próprio. Esse é um trabalho ainda um bocado confuso porque não sabia bem aquilo que queria ser, algumas das canções são em inglês… Quando me assentei em Lisboa, conheci novas pessoas e comecei a desenvolver o que viria a ser o meu primeiro trabalho, Uma Noite Romântica com João Borsch. Desde o lançamento desse disco, em 2021, tenho trabalhado no seu sucessor, que lancei agora, É Só Harakiri, Baby.

Foi uma longa viagem e parece que acabou por se afastar das suas raízes do metal.

Tenho reparado que, desde os meus 15 anos, me fartei um bocado desse estilo musical. Ainda gosto de ouvir, mas era algo que não queria mais fazer. Comecei a interessar-me imenso no pop e tudo o que faço é no sentido de respeitar a sua filosofia. Independentemente da música que estiver a fazer, vejo-a sempre como uma canção pop.

Sente que se saturou desse estilo musical porque o começou a consumir demasiado cedo?

Todos os estilos sofrem disso, mas o metal tem um ponto de saturação fácil de atingir, porque há muitas bandas deste estilo que são muito formulaicas, pouco experimentais e conservadoras. Quando comecei a aperceber-me disso, fartei-me e tive vontade de explorar mais coisas. Atualmente, reparo que todo o metal que ainda gosto de ouvir é um pouco mais transgressivo e mais experimental. E também existe o facto da sua comunidade por vozes ser bastante tóxica ou machista e comecei a distanciar-me um pouco mais.

Que bandas de metal ainda gosta de ouvir?

Foi uma das primeiras bandas que ouvi e, apesar de estarem sempre a dizer para deixar de ouvir porque é um bocado poseur, mas continuo muito fã de Metallica, os seus primeiros álbuns são incríveis. Adoro System of a Down, é uma das minhas bandas preferidas e um dos grupos com que mais me identifico, acredito que isso até é percetível na música que eu faço, através do humor que utilizo nas letras. Slayer, Periphery, Meshuggah. Todas estas bandas são, à sua maneira, mais experimentais e é por isso que sinto um maior interesse. Outra banda que preciso de mencionar são os Mr. Bungle do Mike Patton, são um dos grupos que mais me influenciou através da sua ambição, complexidade, no detalhe da sua produção e também na forma como não levam a sua música demasiado a sério. Apesar de ser extremamente meticulosa e complexa, é feita com muito humor e isso é algo que admiro muito.

Essa foi uma das primeiras bandas que me veio à mente quando ouvi este trabalho.

O California, que tenho em vinil e é um dos meus bens mais preciosos, é dos meus discos favoritos. O Mike Patton é um grande músico e uma referência para mim na forma de explorar a voz. Ele foi uma enorme influência porque me permitiu explorar partes da minha voz que, provavelmente, não estaria tão confortável.

Estava a falar da banda que teve com o seu irmão. Ele ainda faz música?

Sim, ele é uma das pessoas com quem trabalho mais ativamente porque é ele que mistura e masteriza todas as minhas músicas. A parte da mistura é muito importante na minha música, mas é um trabalho que me deixa completamente saturado, por isso é bom ter alguém de confiança a fazer este trabalho. Temos uma forma de comunicar e de trabalhar muito fácil, apesar de não termos um gosto musical muito parecido.

Sentiu uma grande diferença na sua vida quando se mudou para Lisboa?

Sem dúvida. Gosto muito de viver aqui, ofereceu-me muitas oportunidades e também conheci muitas pessoas que ajudaram a desenvolver a minha música. Nunca conseguiria fazer o meu primeiro disco se não tivesse vindo para Lisboa. Não só por ter juntado um grupo de músicos que concretizou o instrumental, mas também porque fomos trocando ideias e me foram mostrando artistas que não conhecia. Todos estes fatores vieram moldar o meu processo de criação musical. Vir para Lisboa foi um passo gigantesco na forma como faço música e a música que eu faço.

Pode explicar-nos o período que
o conduziu à criação do É Só Harakiri, Baby?

Depois de lançar o meu primeiro álbum, percebi que fui um pouco pacífico e conservador. Senti que, apesar de conseguir transmitir uma boa parte da minha vontade de fazer música, havia todo uma vontade de acrescentar elementos mais barulhentos que senti que ainda não estava bem representada. A cada disco que faço interesso-me cada vez mais por extremos. Do meu primeiro EP para o Noite Romântica, quis fazer músicas mais acessíveis, sacarinas e dançáveis. Agora, queria explorar uma parte ainda mais dançável, com mais elementos de música eletrónica, e, ao mesmo tempo, incluir umas secções mais inóspitas e estranhas de que também gosto. Existem muitos momentos no disco em que existe pura e simplesmente ruído, com os instrumentos a tocarem partes díspares e a formar uma nuvem de barulho. Esta é uma sonoridade que adoro e era algo que queria explorar.

Sinto que este álbum o levou a um novo limite.

Este foi um disco onde me quis desafiar. Existem músicas que têm uma grande produção e outras que são mais minimalistas, como Por Favor Deixa-me Tentar, onde só existe um sintetizador e a minha voz. Era importante ter este desafio dentro do álbum e não me restringir apenas a produções densas, mas conseguir também criar canções mais simples. Muito do que fiz para este disco foi com essa mentalidade, queria que cada canção acrescentasse algo de diferente e me colocasse numa zona de desconforto. A criação deste álbum foi muito desafiante, ele é um musical, existe um conceito e uma narrativa que o une. Para mim tem piada, porque não é algo que goste particularmente, mas fez-me sentido, porque também sou muito fã dos elementos de teatralidade da música.

Você tem alguma relação
com o teatro?

Eu não cresci, de todo, com o teatro porque era muito envergonhado. Tinha graves problemas de autoestima a crescer, por isso não me atirava para esse tipo de situações. Agora, quando penso nisso, acho que adoraria ter feito teatro. Em palco, sinto-me extremamente confortável, sem preocupações e muito confortável para encarnar personagens. Cada vez mais adoro esta componente de teatro musical, de ser mais brincalhão. Apesar de não ter sido algo com que cresci, aceito que era algo que adorava ter feito se tivesse a confiança.

Neste disco parece muito mais confiante, especialmente para experimentar com todos estes elementos desta forma.

Para fazer este disco aceitei que iria ser eu até de uma forma que podia ser um pouco alienadora. Quis fazer um disco que só eu poderia gostar. Adoro este disco e estou muito orgulhoso, mas até os meus amigos mais próximos não conseguem gostar de todas as músicas (risos). Acho que existem dois momentos polarizantes no disco: que é a música Jardel, que parece saída de um musical e que é interpretada pelo João Roque, que tem uma enorme teatralidade na sua interpretação; e a F Doido (Reprise), que é uma música mais hardcore e repleta de instrumentos de sopro a fazer uma barulheira enquanto eu estou a gritar. É de longe a coisa mais pesada que já fiz. Para mim, é difícil imaginar alguém que consiga gostar destes dois momentos tão contrastantes.

Acha que, até ao momento, é o trabalho que melhor o representa enquanto pessoa?

Diria que sim. Não acho que este seja um disco pessoal, não sinto que estou lá representado nas letras. Até diria que está bastante separado de mim a nível conceptual por ser um musical, existirem personagens, uma narrativa. No entanto, a nível estético, sinto-me bastante confortável em descrever este disco como um bom encapsulamento daquilo que eu gosto.

Estava a falar de musicais, você é fã desse estilo?

Eu não conheço muitos musicais, mas gosto bastante. O último que vi foi o Cats, que passou no Campo Pequeno, e adorei a experiência. Apesar de ser um musical mundialmente conhecido, é extremamente psicadélico, com pessoas vestidas de gatos antropomórficos a passear pelo meio do público e não existe uma narrativa. É muito estranho e eu adoro (risos).

E já viu o filme?

Não e não tenho grandes intenções de ver (risos). Vi um excerto de uma canção e o CGI foi o suficiente para me fazer desligar o vídeo.

Há pouco falou do Kanye West como uma referência, algo que é possível perceber na música Deixa-me Em Paz, onde usa uma distorção na voz parecida à que o rapper costuma usar. Depois das polémicas de Kanye, como é que está a sua relação com o artista?

Neste momento, já não ouço Kanye, por razões óbvias para quem está a par dos comentários que ele fez. Mas toda esta situação fez-me perceber uma parte interessante sobre a questão da arte e do artista, onde, apesar de deixar de consumir arte criada por ele, porque não o quero apoiar, é impossível deixar de ser influenciado pela sua música. A arte tem esta componente de ter o poder de inovar e, quer queria quer não, eu sou influenciado pela arte do Kanye, não é algo que possa mudar. Contudo, apesar de eu usar esse timbre que é muito típico da sua música, para todos os efeitos, ele não é dono disso. Eu apropriei-me dessa característica e tornei-a minha. Ao ser influenciado pela sua música, não quer dizer que esteja a concordar com as suas ações. Não tenho uma opinião fechada e definida sobre este assunto, mas ajudou-me a navegar toda esta questão.

E não tem saudades de ouvir o My Beautiful Dark Twisted Fantasy?

Não é o meu favorito (risos). Esse seria o Yeezus, é muito mais barulhento e experimental, é um dos meus álbuns favoritos e um dos que me fez querer fazer música. Não posso negar todos estes efeitos que teve na minha vida.

Também estava a falar sobre

as influências de música de dança

que incluiu neste novo disco, isto deveu-se a participar mais na

cultura clubbing de Lisboa?

Sem dúvida. Não existem raves queer na Madeira, por exemplo (risos). Apesar de não ser a pessoa mais assídua nesse tipo de eventos, sempre que vou percebo que é algo que move imensas pessoas e que tem o poder de emocionar. Isto fez-me perceber que aquilo que estava a fazer não era assim tão estranho e que estava a ir na direção certa. Foi um bom catalisador para poder experimentar todas estas novas faixas pop. Ajudou-me a ir mais além do trabalho que desenvolvi no primeiro disco e a tomar um pouco mais de riscos.

É mais de sair à noite ou de ficar

em casa?

Ultimamente, com o trabalho de finalização do disco, não tenho tido tempo livre, por isso, agora, estou maluco para ir sair e dançar. Mas depende da altura do ano. No inverno, sou mais de ficar em casa, mas no verão apetece-me estar sempre em festas. A Madeira durante o verão é uma balbúrdia em termos de festas porque todas as semanas existem arraiais em todo o lado. Podemos ir dançar quase todos os dias e muitas vezes acabas a noite às seis da manhã, num palco a passar trance onde, horas antes, esteve a dar música tradicional (risos).

Onde é que gostava de ir sair agora que, com o disco lançado, vai estar mais livre?

Há várias raves que são muito interessantes e que estão a acontecer em sítios como o Planeta Manas e as festas da Popper. Tudo isto são eventos que acontecem em torno de estilos musicais como o hard techno e o hyperpop e são os estilos que mais gosto de ouvir quando saio à noite.

Na sua música e, especialmente, na forma como se apresenta, existe um lado mais desafiante a nível sexual, com uma certa androginia. É importante a sua música e a música feita em Portugal mostrar este lado?

Sim, cada vez mais vejo artistas como eu e isso é uma representação importante. Tal como a parte da teatralidade, reparei que a androginia é um interesse que tenho desde criança. Pensava muitas vezes em como esta ideia de pensar, agir e vestir-me como um homem não eram para mim, mas era algo que não sabia como expressar, por isso, sentia-me bastante pressionado. Atualmente, percebo que a androginia é algo que me interessa imenso e é algo que gosto bastante de explorar a nível artístico. Muitos dos artistas que gosto, desde o Freddie Mercury, David Bowie ou o Prince, criaram esta base que me influenciou imenso. E, atualmente, também existem imensos artistas queer em Portugal que exploram esse lado, como a não-binariedade. Isso deixa-me muito mais confortável para poder explorar esse lado e espero que seja algo que continue a crescer. O género não é estanque, é muito vasto e ambíguo, isso cria muito espaço para cada artista expressar isso de uma forma única. Pelo menos, sinto que expresso isso de uma maneira singular e isso é algo que transparece, se não nem sequer estavas a colocar essa questão. Gosto que a identidade de género seja um assunto abordado no meu trabalho, mesmo que não esteja necessariamente presente na letra. Gosto que não me vejam de uma forma muito linear.

Quais são as suas referências em Portugal?

Filipe Sambado, que é a artista que mais se aproxima daquilo que quero fazer. Vaiapraia, apesar de ser uma expressão muito mais punk, gosto muito da parte mais violenta e disruptiva da sua música e forma de exprimir, é também algo que me identifico bastante, tem uma atitude confrontacional.

Falou um pouco da teatralidade inerente a este disco, como é que este elemento se vai transcrever ao vivo?

Ao vivo, como ainda estou a tocar em palcos pequenos, tenho sempre de fazer uma espécie de compromisso. Existe uma dinâmica nos meus concertos, existem momentos onde eu toco bateria e canto e outros, como a bateria pode ser replicada por uma drum machine, eu assumo a posição de vocalista em frente à banda. Às vezes existe muito pouco espaço para explorar toda esta teatralidade, mas sinto que este elemento ganha vida pela forma como eu canto e interpreto as músicas. Existe também um certo dramatismo na forma como organizamos a setlist, gosto de salientar ainda mais os contrastes entre as músicas. Isto adiciona uma maior teatralidade e oferece uma maior dinâmica ao concerto. Para mim, todos estes elementos, traduzem-se quase como uma mudança de cenário durante o espetáculo. Enquanto, ainda estiver restringido a estes palcos, sinto que esta é a forma como melhor me exprimo.

E quando tiver mais espaço para dar largas à sua imaginação?

Isso era um sonho. Incorporar falas e personagens no concerto. Transformar o concerto num autêntico musical. É um dos meus maiores objetivos.