Justiça, ódio e ignorância atrevida – I

O que aconteceu recentemente a respeito do acórdão do TC dedicado ao tema da prescrição do crime de corrupção é um exemplo riquíssimo de tudo isto, em especial da ignorância, do atrevimento e do ódio/da raiva. Tomemos como exemplo, ilustrativo, o texto de um cronista profissional com um perfil entre o ‘engraçadinho’ e o ‘intelectual’. 

por Rui Patrício

Já escrevi neste espaço que os processos ‘Marquês’ e ‘BES’ marcaram indelevelmente a justiça portuguesa, especialmente o primeiro, ao ponto de haver um antes e um depois. E os dois processos suscitam frequentemente discussões jurídicas que são pouco orientadas pelo jurídico e muito pelo ódio ou pelo menos pela raiva. Ao ponto de a questão jurídica em si mesma (e os princípios e regras gerais que convoca) quase não interessar, importando apenas saber se há benefício ou prejuízo processual para os arguidos, em especial para os odiados Sócrates e Salgado. E o ódio – e, portanto, a distorção de análise e o viés de visão – é por vezes de tal ordem que alguns – em especial pertencentes ao grupo que se dedica à opinião profissional (seja no estilo ‘engraçadinho’, seja no ‘intelectual’, seja no estilo ‘polémico’ ou ‘ativista’) – não se coíbem de avançar com puros disparates, nem de fazer ignóbeis e mal informados processos de intenções ou de delirar com infantis teorias da conspiração, e muito menos se coíbem de discorrer a coberto de uma muito atrevida ignorância. Aliás, escrever sobre tudo todo o tempo em todo o lado só poderia dar na frequente revelação de ignorância, pois falar sobre tudo é possível, mas saber sobre tudo é um bocadinho mais difícil …

O que aconteceu recentemente a respeito do acórdão do TC dedicado ao tema da prescrição do crime de corrupção é um exemplo riquíssimo de tudo isto, em especial da ignorância, do atrevimento e do ódio/da raiva. Tomemos como exemplo, ilustrativo, o texto de um cronista profissional com um perfil entre o ‘engraçadinho’ e o ‘intelectual’. O raciocínio é simples: o acórdão é magnífico. E porquê? Porque, diz o cronista, estabelece que o prazo de prescrição só se conta da data do pagamento do suborno. Logo, continua o cronista, isso permite que possa ser revertida a decisão instrutória do processo ‘Marquês que decidiu (mas decidiu muito mais coisas, não apenas isso) que os crimes de corrupção estariam prescritos. Ora, essa eventual reversão de sentido decisório prejudica Sócrates. Logo, é magnífico. ‘Ótimas notícias para o país’, sentenciou o cronista, do alto da sua ciência e da sua arrogância. E isso ao mesmo tempo que passava um atestado de banditismo ao Juiz relator do acórdão do TC que foi invocado na decisão instrutória do processo ‘Marquês’, com a mesma ligeireza com que em crónica pretérita já sentenciou que eu, no processo onde foi tirado aquele acórdão (que nada tem que ver com o ‘Marquês’ e é muito anterior), recorri para o TC já a pensar no processo ‘Marquês’ e para preparar o terreno para a declaração de prescrição nele. Claro que sim; só faltam também, neste delírio infantil, seres verdes de outro planeta e vacinas contra a covid que se destinam a controlar a Humanidade. Tudo, claro, feito para beneficiar Sócrates e tutti quanti.

Ora, tudo isto é um disparate ridículo. Mas é grave, porque afirma ou insinua coisas graves, com uma superficialidade, uma ignorância e uma maldade argumentativa perigosas. E, portanto, não chega a ser cómico, porque é trágico. Mais a mais quando há quem leia, quem cite e quem glose estas coisas, ao ponto de os opinadores deste género – e de outros – darem, suponho, audiência relevante e, portanto, terem lugar cativo e terem espaço; e, num círculo vicioso, têm de alimentar a sua opinião profissional e o seu ‘engraçadismo’, mais ou menos intelectual, com coisas picantes, polémicas e quejandos, porque é isso que alimenta a audiência e é a audiência que garante o espaço e o espaço garante o emprego. Mas era bom que se dessem ao trabalho de estudar um bocadinho mais, já nem digo fazer um esforço tentativo de objetividade e muito menos de aprofundamento. Estudar só um bocadinho, mesmo que apenas pela rama. (Continua).