A mágoa de Luís Aleluia

Há no percurso de Luís Aleluia um momento que condicionou toda a sua vida: aquele em que foi convidado para interpretar o ‘menino Tonecas’. Aleluia ficou para sempre o ‘menino Tonecas’ e o ‘menino Tonecas’ era Luís Aleluia. Aliás, a maior parte das pessoas não o conhecia pelo seu nome mas pelo nome da personagem…

O ator Luís Aleluia suicidou-se. A sua mulher confirmou-o ao escrever no Facebook: «O meu grande amor, partiu mais cedo. Não estou de acordo! Mas, só me resta aceitar a tua última vontade».

Mas que motivos terão existido para Aleluia fazer o que fez? Aparentemente, não foram motivos financeiros. Não sendo rico, também nunca constou que vivesse com dificuldades. Que não dispusesse de meios para ter uma vida razoável.

Também não tinha, que se soubesse, uma doença incapacitante nem muito menos terminal.

E a sua vida familiar era, aparentemente, saudável: tinha dois filhos adotados e uma mulher que, pelo que se percebeu, gostava dele. «Descansa em paz, meu amado», escreveu ela, igualmente, no Facebook.

O que o terá, então, levado ao suicídio?

Certamente um fator que não é mensurável, nem objetivo, mas que não deixa por isso de ser violento: uma infelicidade interior. Que se sente mas não se define. Uma insatisfação com a vida, uma sensação de inutilidade, de falta de gosto em existir. Ou, mesmo, de sofrimento pelo facto de existir.

Diz-se que repetia com frequência a frase «Façam o favor de ser felizes». Ou seja, de serem o que ele não conseguia ser.

Há no percurso de Luís Aleluia um momento que condicionou toda a sua vida: aquele em que foi convidado para interpretar o ‘menino Tonecas’. Este era um aluno da primária, meio tonto, que fazia rir as pessoas com as suas tiradas disparatadas. Uma personagem simpática mas que não se levava a sério. Ora, Aleluia nunca se separou da personagem nem a personagem se despegou dele. Aleluia ficou para sempre o ‘menino Tonecas’ e o ‘menino Tonecas’ era Luís Aleluia. Aliás, a maior parte das pessoas não o conhecia pelo seu nome mas pelo nome da personagem que encarnava.

Nunca o vi fora do palco, mas calculo que na vida real todos o continuassem a ver daquele modo. Era impossível levá-lo muito a sério, olhá-lo com respeito, por mais respeitável que fosse o que fizesse ou dissesse. Não era visto como um adulto igual aos outros.

Recordo uma fotografia em que surgia ao lado de um colega – e este tinha o braço por cima dos seus ombros, como se faz a uma criança. Aleluia, para o colega, continuava a ser o ‘menino Tonecas’.

Herman José afirmou que ele nunca foi devidamente reconhecido como ator. Que nunca lhe deram o valor que efetivamente tinha. Que, imerecidamente, foi sempre um ator secundário, que nunca ascendeu à primeira divisão. E porquê? Porque não o separavam da personagem que criou. Não o levavam a sério a fazer outros papéis. Que encenador ou realizador o escolheria para desempenhar um grande papel dramático numa peça ou num filme? Por muito bem que o interpretasse, seria sempre como ‘menino Tonecas’ que todos os espetadores o veriam.

Assim, quando em 2006 ele decidiu que nunca mais faria de ‘menino Tonecas’, quando matou a personagem, de certo modo matou-se a si próprio.

Há casos como este: de atores que ficam para sempre condicionados por uma personagem que interpretaram e que os marcou como um ferrete.

No tempo em que os filmes ainda se viam nas salas de cinema, havia atores agredidos na rua porque as pessoas não viam o ator: viam a personagem odiosa que ele interpretava na tela. E com a TV isso ainda é mais verdadeiro. As pessoas já não agridem os atores, esse tempo passou, mas não os desligam dos papéis que os veem interpretar todos os dias ou todas as semanas em séries, telenovelas ou programas de divertimento.

Não sei até que ponto o ‘menino Tonecas’ contribuiu para a infelicidade de Luís Aleluia. Para o seu desajustamento social. Mas tenho a certeza que lhe provocou angústia, confusão, frustração e mal-estar. E contribuiu poderosamente para a sua não realização como ator e mesmo como pessoa.

Numa entrevista recente à SIC, Aleluia disse: «Sou uma pessoa feliz com família e amigos, mas trago dentro de mim uma mágoa e isso não se pode arrancar da alma». E acrescentou: «Eu e a minha mãe fomos vítimas de violência doméstica. São coisas que uma criança nem deve passar nem deve viver, porque isso marca a vida toda».

Será com certeza verdade. Mas é impossível saber até que ponto pesava nele o facto de não conseguir libertar-se dessa mágoa de infância, e o drama de não poder despegar-se da personagem que criou. Nem ele sabe. Luís Aleluia não saberia bem a razão por que era infeliz. Era-o apenas. E isso foi suficente para achar que não tinha condições para continuar a viver.