Para recordar o génio de Bernardo Sassetti, que morreu há 12 anos, foram organizados dois concertos no Auditório Municipal Ruy de Carvalho, em Oeiras.
A dar música a este evento estiveram nomes que marcam o presente e o futuro do jazz nacional, nomeadamente Mário Laginha e Pedro Burmester, que costumavam tocar com Sassetti. No dia seguinte, foi a vez da grande promessa nacional, o acordeonista João Barradas com o seu quinteto.
A propósito deste evento, Mário Laginha recordou ao Nascer do SOL algumas histórias do seu amigo e parceiro criativo, numa conversa em que revelou também a sua visão atual do jazz em Portugal e no mundo.
Antes de começarmos a conversar sobre assuntos mais sérios, já que o Mário Laginha é uma das referências mais importantes no jazz nacional, precisamos que nos ajude a resolver um velho dilema: em Portugal, devemos dizer ‘djéz’ ou ‘jáze’?
[risos] Este debate tornou-se demasiado grande. Sempre que vou a algum lado eu digo ‘jáze’, esta palavra existe em todas as línguas e acho que uma pessoa a pode adaptar ao seu próprio idioma ou pode ler como entender. Mas isto é uma opinião minha, apesar de não conhecer nenhum músico português que diga ‘djéz’, todos dizemos ‘jáze’, mas há muitos que optam pela outra forma. Se estiver a falar com alguém em inglês, eu digo ‘djéz’.
Esta entrevista acontece a propósito do tributo ao Bernardo Sassetti. Como é que foi feito o convite para participar neste projeto?
Este convite é antigo. Já nos tinham desafiado, a mim e ao Pedro Burmester, se quereríamos fazer um concerto onde fizéssemos uma homenagem ao Bernardo e nós dissemos, obviamente, que sim. Tivemos que pensar num reportório, especificamente, um que não fosse apenas com músicas do Bernardo, apesar de mais de metade do concerto ser com músicas dele e ser algo que nos dá muito prazer de tocar.
Enquanto alguém que colaborou de perto e que partilhou momentos mais privados, sente uma pressão adicional em corresponder às expectativas deste tributo?
Diria que tocar as músicas do Bernardo traz muita alegria, não só porque gosto muito delas, mas porque também trazem memórias de partilha de momentos maravilhosos, apesar de às vezes existirem momentos de tristeza por ele não estar connosco. Não existe, propriamente, uma pressão, sei que se ele estivesse aqui estaria a rir-se connosco e a divertir-se imenso durante os ensaios. Ele era um músico com um sentido de humor muito peculiar, estar com o Bernardo era sempre um prazer, tanto a nível pessoal como musical.
É interessante descrever o músico dessa forma. É que às vezes ele parecia transmitir a imagem de alguém mais reservado e soturno para a sua audiência.
Não era, nada mesmo. Até em concertos, às vezes, fazia comentários com muito humor. Eu não o conheci enquanto uma pessoa reservada.
Estava a falar de algumas memórias que voltaram ao de cima enquanto tocava as músicas do seu amigo. Houve algum episódio especial a que regressasse durante os ensaios?
Lembrei-me de um episódio quando eu, o Pedro e o Bernardo fomos tocar a Macau. Durante essa altura eu parti o tendão de aquiles. Um dos episódios mais caricatos aconteceu em Hong Kong. Havia distâncias muito grandes no aeroporto, portanto, não podia andar de muletas e tiveram que me arranjar uma cadeira de rodas, ao que o Bernardo decidiu fazer um rali comigo e começou a correr enquanto me empurrava (risos). Contado pode não ter tanta piada, mas só a memória do Bernardo me ter utilizado para fazer um rali no aeroporto… é um episódio delicioso.
Desde as suas colaborações com Sassetti, Piano a 4 mãos (2003) e Grândolas – Seis Canções e Dois Pianos nos Trinta Anos de Abril (2004), já passaram vinte anos. Sente que desde então o jazz tem vindo a mudar?
Este é um estilo musical que está em constante evolução e, em Portugal, isso então é particularmente notável. Há uma nova geração jovem que está melhor preparada e existem cada vez mais músicos talentosos. Isto, para mim, é uma alegria. Aquela coisa de conhecer as caras de todos os músicos que tocam bem, que era o que acontecia há uns 20 anos atrás, deixou de acontecer. Vivemos momentos em que podemos descobrir músicos talentosos em qualquer lugar, há sempre uma surpresa ao virar da esquina. Acredito que estamos a passar uma fase muito encorajadora da música português.
Para si, é importante manter-se atualizado com as novidades e o que está a ser lançado neste estilo musical?
Acho que é muito importante e sinto que é algo que deva fazer, mas às vezes falho (risos). Há malta nova que não conheço porque já não tenho o hábito de ir a clubes ouvir malta a tocar. Portanto, às vezes envergonho-me um bocado quando conheço ou ouço alguém e penso «é uma falha grave ainda não ter ouvido isto». Mas é algo que faz parte, vou tentando estar a par o mais possível dos novos talentos.
Existe algum jovem artista que gostaria de destacar?
Existem muitos, mas tenho medo de começar a falar e deixar alguns nomes de fora. Mas existem muitos que me impressionam nos mais diferentes instrumentos, como o contrabaixo, bateria, piano, trompete, trombone… Recentemente, toquei com a Orquestra de Matosinhos, onde interpretámos algumas músicas minhas. Já tinha tocado este espólio com outro grupo e existe uma música que tem uma parte de trombone muito difícil. Quando fomos tocar esse tema, um mês depois de termos começado a ensaiar, levantou-se um miúdo, que eu nunca tinha ouvido, para fazer o solo e fiquei impressionado. Como é possível… (risos) Depois tive a oportunidade de falar com ele e perceber que tinha começado a estudar em Nova Iorque. Isto é algo que está sempre a acontecer e é muito bom sinal.
Já que estamos a falar de novos talentos, quem também vai participar neste tributo é o João Barradas. Quão importante é ter um músico tão promissor como este num tributo a um músico que ofereceu tanto à música portuguesa?
O João é um músico e um acordeonista incrível e muito eclético, capaz de tocar clássico, jazz e tem uma capacidade para tocar este instrumento elétrico com uma capacidade que não encontro em mais ninguém. Ele é um grande músico e espero que, no futuro, possamos ouvir muito mais sobre ele, numa altura em que já ouvimos falar bastante bem dele porque ele é muito, muito bom.
Antes de terminar, existe alguma palavra que gostaria de dedicar às pessoas que ainda não estão convencidas a ver este tributo?
Acredito que as pessoas devem ver e ouvir aquilo que lhes apetece, mas aquilo que às vezes acontece é que as pessoas julgam que não gostam de jazz, mas pouco conhecem. Aliás, neste concerto eu e o Pedro Burmester vamos estar presentes em dois universos diferentes porque, além do jazz, vamos também tocar temas do Bernardo que estão mais inseridos na música clássica. Também vamos tocar músicas do compositor argentino Astor Piazzolla, uma peça minha… Portanto, o que tenho a dizer é que as pessoas devem manter o seu espírito aberto, assim como a vontade de conhecer música nova. É sempre bom.
E do reportório que tem em conjunto com Sassetti? Não vai tocar nada do Abril a Quatro Mãos?
Por acaso, não. Nem uma. Vamos tocar outras peças do Bernardo, mesmo que não sejam das mais populares e que nem todas as pessoas conhecem, mas quero acreditar que vai valer muito a pena.