Há quem nunca se atreveria a entrar num barco, quanto mais fazê-lo para fotografar ondas gigantes… Há mesmo quem fique com ansiedade só de pensar nessas «paredes de água» onde surfistas batem recordes e onde fotógrafos captam momentos espetaculares. Mas se para alguns estes fenómenos são aterrorizadores só de pensar, para outros são «fascinantes», apesar de quase lhes terem tirado a vida.
Mendo Dornellas tem 28 anos. Apaixonou-se pelo surf ainda em criança, começando a praticar desde muito cedo. Mais tarde, por conta das suas surf trips, começou a registar praias fantasmas, amanheceres, amigos a apanharem ondas, tornando-se um dos fotógrafos de ondas gigantes mais conhecidos do país. No ano passado, sobreviveu a uma das ondas mais perigosas do mundo, no Taiti. E, apesar do pesadelo que viveu depois de ter sido cuspido borda fora do barco que o levava, acredita que, nesta profissão «há sempre riscos a correr» e a paixão «fala sempre mais alto».
Do surf à fotografia
Em pequeno, antes de se mudar para Portugal, não conhecia bem o mar. Aliás, foi apenas aos 6 anos que se deparou realmente com a sua magia. «Nasci na Bélgica. A minha mãe é belga e o meu pai português. Aos 6 anos, por conta da mudança de trabalho do meu pai, viemos para Portugal e deparamo-nos com este sol e este mar. Tal como acontece com todos os estrangeiros, ficámos deslumbrados. Os nossos verões começaram a ser passados na praia», começou por contar à Luz Mendo Dornellas. No primeiro verão passado nas praias portuguesas, com os seus irmãos, começou a fazer bodyboard, mas a ambição de se meter de pé na prancha começou a nascer. «Quando o meu pai viu que começámos a tentar meter-nos de pé nas pranchas, sugeriu-nos que tivéssemos aulas de surf todos juntos», continuou. O que o jovem não sabia é que, a partir desse momento, nasceria uma paixão que o levaria mais tarde à fotografia, mudando a sua vida e fazendo-o correr, mais do que uma vez, risco de vida.
As aulas eram tidas numa escola de surf. «Fomos crescendo juntos. O surf não é apenas um desporto. É uma comunidade», explica o surfista que começou, mais tarde, a realizar surf trips com os seus companheiros de ondas. «Comecei numa escola de surf, fiz amigos, fomos crescendo e criámos um grupo. Começámos a fazer surf trips em busca de ondas. O surf puxa muito por isto… Procurar ondas, ir mais longe, explorar mares… Há todos estes acontecimentos quase míticos», acrescenta. «Nem toda a gente compreende o que é acordar às 4 da manhã, para fazer uma viagem de algumas horas e chegar a uma praia fantasma para ver o amanhecer. Nem toda a gente compreende o incrível que é procurar as melhores ondas», conta o surfista. «Comecei a viver momentos extraordinários. As falésias, o mar, a cor do céu… Lembro-me muito bem quando estava a crescer, de ser exposto a estas situações extraordinárias. Sempre estive muito ligado à natureza. Percebi que tinha de registar esses momentos. Que gostaria de revivê-los sempre que quisesse. Nessa altura já existiam telemóveis que tiravam pequenas fotografias», descreveu, admitindo que apesar da má qualidade, o importante era «poder lá regressar quando quisesse», olhando para as «pequenas» imagens.
Depois, «a tecnologia foi avançando», e Mendo Dornellas resolveu comprar uma GoPro. «A dada altura arranjei uma GoPro para fazer uns registos dessas viagens. De certa forma isso despertou-me um bocadinho o interesse pela fotografia e pela edição de vídeo», admitiu. Até que, numa das cadeiras do seu curso de Marketing e Publicidade, que tirou no IADE, realizou um pequeno filme para o projeto final. «Lembro-me que, nessa altura, o professor disse que era a altura ideal para aqueles que gostavam de fotografia, comprarem uma câmara com boa qualidade. Comecei a pensar nisso e partilhei a sugestão com o meu pai, que acabou por me oferecer uma», lembrou. Segundo o agora fotógrafo, ao apresentar o projeto à turma, o professor admitiu que o trabalho era um dos melhores que já havia recebido desde que começou a sua carreira. «Isso mexeu comigo de alguma maneira. Pensei:’Se calhar consigo fazer coisas interessantes’», contou. A partir daí foi quase uma bola de neve… «Comecei a levar a máquina para todo o lado, tirava fotografias a tudo… Levava a máquina para ir surfar, para passear, tirava fotografias às pessoas na rua. Começou a ser um vício», acrescentou.
A viagem que mudou tudo
As coisas foram-se desenrolando a partir daí. No entanto, foi na sua primeira grande viagem fora da Europa que a fotografia teve realmente um grande impacto em si. «Fui para Marrocos com um grupo de amigos… Um sítio paradisíaco de ondas… Uma cultura completamente diferente. Fizemos uma viagem de duas ou três semanas de carro. Apanhámos o ferry e lembro-me de quando saímos do barco, toda aquela visão da porta a abrir-se, a poeira… O ar era diferente, a cor, o sol. Tudo é diferente. Isso despertou coisas. Descemos a costa toda à procura de ondas e depois voltámos por dentro para descobrir cada cidade, cada recanto…», continuou.
Na altura, documentou «tudo e mais alguma coisa». «Eu tinha um interesse grande em conseguir mostrar a cultura, o choque cultural que eu estava a ter naquele momento. Por exemplo, quando vi um senhor a colocar um turbante com cores vivas, a cara marcada de rugas… Tudo transmitia histórias. Eu queria tentar criar uma ponte com as pessoas. Falava com elas, fazia-lhes perguntas, para depois pedir para fotografá-las», acrescentou. E foi aí que percebeu que, para si, apesar de invisível, «o fotógrafo tem de fazer parte da cena». «Tinha de haver proximidade. Eu senti que o fotógrafo tem de fazer parte da cena, tem de se sentir presente ali, invisível, mas presente. É quase um jogo. Era uma coisa nova para mim, mas a fotografia começou a puxar-me para esse sítio. Sempre fui curioso. Sempre fiz muitas perguntas. A fotografia enalteceu isso. Essa viagem foi a alavanca», reforçou.
O fascínio por ondas gigantes
Logo a seguir, começou a trabalhar com várias marcas e as oportunidades começaram a surgir. «Uma delas foi seguir o percurso de alguns surfistas de ondas grandes», disse. Atividade que lhe têm valido alguns sustos ao longo da sua carreira. O maior, aconteceu recentemente, em maio do ano passado, quando aquilo que seria apenas mais um dia no mar, para os surfistas a apanhar, e para os fotógrafos a registar as enormes ondas de Teahupoo, no Taiti, se tornou num grande pesadelo, quando o barco onde se encontrava, foi virado por uma das maiores ondulações da história.
«Neste mundo das ondas gigantes, isso não é uma coisa recorrente. São acontecimentos meteorológicos… Uma tempestade que se forma de uma forma muito diferente que faz com que haja uma ondulação muito grande, que se desloca para determinado local. Se as condições forem as certas, podem-se proporcionar ondas de recordes mundiais», elucidou, realçando que é sempre importante explicar estes fenómenos. Segundo o fotógrafo, a onda de Teahupoo é uma onda muito especial. «Basicamente, como dizia, com as condições certas, cria-se uma das ondas mais espetaculares do mundo. Uma onda que não é gigante a nível de tamanho – claro que é uma onda grande -, mas tem uma espessura fora do comum. A onda galga um recife e vem de uma profundidade muito grande, muito de repente», explicou, acrescentando que é quase como «uma parede de água».
De acordo com Mendo Dornellas, foi através de um amigo – Nicolau Von Rupp, surfista português de ondas gigantes – que soube que, provavelmente, conseguiria fotografar a onda nesse ano, no Taiti. «Para os surfistas isto é extraordinário. É uma onda que já fez capas de revistas em todo o mundo. É uma onda que sempre que funciona, faz notícias. Todos os melhores surfistas do mundo querem apanhá-la», frisou, lembrando que, na altura, pensou que seria um sonho que podia tornar realidade. «Queria documentá-la em primeira mão!», realçou. E esperou quase até à véspera para saber se a viagem não seria em vão, já que, segundo o mesmo, é sempre complicado todo o processo até lá chegar. «Estava tudo a alinhar-se para ser uma ondulação histórica. Então, lá partimos nós numa viagem de 50 e tal horas», lembrou.
Na chegada ao local, Mendo Dornellas, admite que teve a perceção que não ia ser uma aventura fácil, mas não pensou naquilo que poderia acontecer. «Eu ia estar num barco, numa zona onde não há ondas. Pensei que as coisas decorreriam de forma mais ou menos tranquila. Mas nas ondas gigantes é diferente… Normalmente criam condições adversas em que tudo é instável e tudo é imprevisível. É perigoso! Quando o mar está pequeno, é fácil perceber onde vai rebentar a onda», garantiu, contando que pela sua experiência – já correu o mundo inteiro em busca de ondas gigantes – nesses momentos, «pressentia sempre que alguma coisa ia correr mal, mas nunca aconteceu nada de grave».
Mau presságio seguido de um pesadelo
A verdade é que, no dia anterior, o surfista regular em ambientes controlados, soube que os seus colegas fotógrafos, haviam sofrido um acidente. O barco virou com uma onda e os profissionais acabaram por ser cuspidos borda fora, bem como os seus equipamentos. «Agora olhando para trás, quase parece um mau presságio», brincou. Tentou pensar que tinha sido apenas um azar e que, provavelmente, o barco tinha tido problemas. «Como é tudo em cima da hora, perceber o lugar onde se fica a dormir, onde se filma, se se consegue ter lugar no barco, é tudo meio confuso», admite. Mendo Dornellas conseguiu o seu lugar no barco onde seguiam os melhores fotógrafos de ondas gigantes do mundo. No entanto, isso teve um preço. «Um amigo meu avisou-me que, no dia em que eu ia fotografar, ia estar uma grande confusão. Para além do mar, vêm pessoas do mundo inteiro para ver a onda. O canal onde normalmente não há ondas que rebentam estava cheio de barcos», acrescentou.
Foi nesse momento que começou o nervosismo. «Pensei: ‘Ok… Isto está a acontecer e não vai ser assim tão fácil. Mas esse é o ambiente normal das ondas gigantes! Essa imprevisibilidade. Ninguém sabe o que vai acontecer», conta o fotógrafo. A parte da manhã foi «tranquila», já que ainda não haviam muitos barcos no mar. Por isso, conseguiam ter uma distância grande das ondas. Mas a cada hora que passava, as ondas ficavam cada vez maiores e havia cada vez mais pessoas a chegar para observar o fenómeno.
Quando o momento chegou, já no barco, as ondas eram realmente gigantes. «Estavam enormes, na sua beleza pura. Era um sonho realizado», lembrou deslumbrado. «Mas as coisas começaram a perder o controlo. Estávamos num barco onde seguiam os melhores fotógrafos do mundo, por isso, tinha de estar na primeira linha, acontecesse o que acontecesse. Se alguma onda de recorde passasse, teríamos de ser nós a fotografar. Haviam indicações dadas ao comandante do barco para que ele se mantivesse na primeira fila», explicou.
Os barcos começaram a bater noutros barcos, criando quase um «cenário de guerra». O caos tinha começado. Mendo encontrava-se no meio de uma onda gigante, no meio das zonas mais perigosas do mundo, no meio de uma ilha, no meio do nada. A adrenalina estava ao rubro. À medida que os barcos chegavam, o seu barco começava a ser empurrado para cada vez mais perto da onda. «Começámos a passar ondas. O nosso barco estava praticamente na boca da onda. Foi surreal», exaltou. Nesse momento, segundo o fotógrafo, é importante confiar na pessoa que está a comandar. No entanto, nesse momento, «claramente que não havia qualquer tipo de margem de erro». «Era isso que mais me preocupava. Eu via que estávamos a passar as ondas todas e qualquer erro teria consequências devastadoras. Estava muito preocupado e até pensei em trocar com alguém de outro barco», revelou. A pressão era tanta que, na verdade, o foco na fotografia perfeita se ia perdendo.
Foi então que chegou uma onda gigante que acabou por diminuir de tal forma o espaço que já não existia «zona segura». «Quando apareceu esta primeira onda gigante, estávamos mais atrás. Mas depois disso, surgiram três ou quatro ondas que ninguém estava à espera e um dos profissionais acabou por se desequilibrar e cair na água, juntamente com o seu equipamento», lamentou. «Esperámos alguns segundos para perceber se alguma mota de água o apanhava, mas as ondas não paravam de aparece. Veio então a onda que ficou viral», continuou. E se as coisas já tinham fugido do controlo, ainda iam piorar. «Olhei para a frente e vi uma parede de água. Pensei que seria agora que íamos morrer», admitiu. «Fomos todos borda fora. O meu reflexo foi tentar afastar-me o máximo que conseguia do barco. Ele bateu na onda e catapultou de lado», detalhou. «Foi completamente surreal», acrescentou. Felizmente, toda a gente conseguiu ser resgatada. Para Mendo Dornellas, «foi um milagre».
Preparado para os riscos
Interrogado sobre a forma como geriu o medo depois do acontecimento, o fotógrafo admite que todos aqueles que se submetem a este tipo de coisas, «têm plena consciência dos riscos». «Achamos que não estamos preparados para viver estas situações, mas quando passamos por elas as coisas são diferentes», explica. «Foi extraordinário. Uma pessoa, só quando vê as imagens, é que percebe exatamente o que se passou», garante.
Para além desse susto, em fevereiro de 2020, Mendo viveu aquele que viria também a ser um dos momentos mais marcantes da sua vida. O fotógrafo juntou-se a um documentário feito com sete pessoas que foram escolhidas para viajar à volta do mundo durante seis meses. Quando estava no Peru, em Machu Picchu, como tinha chovido muito mais do que o normal nos últimos meses, o lago natural que estava no topo da montanha encontrava-se tão cheio que começou a transbordar, aumentando assim o fluxo do rio. Devido a essa pressão, a parede da barragem acabou por colapsar, criando uma espécie de tsunami que entrou pelo vale. Mais de 200 pessoas desapareceram nesse dia. Felizmente, mais uma vez, para Mendo Dornellas, «um milagre aconteceu».
No futuro, colecionando essas experiências que o fazem sentir vivo, o fotógrafo pretende continuar a fazer aquilo que gosta, sempre desafiando os seus limites e, deseja conseguir catapultar brevemente, com o seu colega e amigo Filipi, a sua produtora de publicidade e moda fixada em Lisboa, a The End Films.