As orcas, também chamadas – «erradamente», de acordo com os especialistas – de «baleias assassinas», são na verdade golfinhos, o maior golfinho que a ciência conhece. Animais muito inteligentes, complexos e com personalidades distintas que, «como parte da sua inteligência, têm também algo que nos é familiar: a cultura». Ou seja, segundo a bióloga marinha Sofia Esteves da Silva, todas as aprendizagens são «passadas de geração em geração», e aí incluem-se estratégias de caça/defensivas, linguagem, entre outras, «sendo conhecidas pelas suas elaboradas estratégias para capturar as suas presas de forma coordenada e em grupo». Um exemplo dessa aprendizagem, de acordo com o IFLScience, site de ciências britânico, foi a tendência do chapéu salmão morto em 1987. Na área de Puget Sound, no nordeste do Pacífico, uma orca fêmea começou a carregar um salmão morto no seu dorso, sobre a cabeça. Nas cinco a seis semanas seguintes, o comportamento espalhou-se e, no final, eram muitas as orcas que usavam o mesmo «adereço». Tempo depois, a moda acabou. Ou seja, alguns desses comportamentos culturais, mostram-se úteis e podem ser transmitidos durante gerações, enquanto outros – como os chapéus salmão – desaparecem e são esquecidos.
Em Portugal, as orcas podem ser observadas em qualquer altura do ano, com maior incidência na primavera-verão no sul do país, seguindo as rotas migratórias do atum em direção ao Mediterrâneo, «a presa preferencial desta população». No entanto, desde 2020, na Península Ibérica, estes animais têm causado grandes transtornos aos barcos com os quais se cruzam e, ao que parece, o cenário tende a piorar.
Os casos mais recentes ocorreram no princípio da semana. No domingo, um grupo de orcas danificou um veleiro com bandeira polaca ao largo da Barra da Armona, Algarve. «Recebemos um alerta de que havia um veleiro com dois tripulantes a bordo que tinha tido uma interação com orcas e que estava à deriva porque ficou com o leme danificado. Por ser um perigo para a navegação, fizemos o reboque do barco», explicou Alexandre Algarvio, comandante da Polícia Marítima de Olhão, ao Correio da Manhã. Horas antes, um ataque de orcas a 2,8 quilómetros da Culatra, na mesma região do Algarve, deixou um catamarã francês sem leme, obrigando ao resgate pela autoridade marítima. Segundo Bertrand d’Enquin, o catamarã de 15 metros, um Azimut Lagoon 380, foi atacado por um grupo de seis orcas às 11h30, a 1,5 milhas (2,8 quilómetros) da ilha da Culatra.
A pergunta que se coloca é: por que razão estes mamíferos marinhos, considerados os mais cosmopolitas e com dietas muito versáteis, têm realizado estes ataques? Estaremos perante uma vingança? Ou apenas uma diversão? Terão as orcas entrado numa guerra declarada aos humanos?
Cada vez mais interações
De acordo com os dados do site orcas.pt, da responsabilidade de Rui Alves, que tem monitorizado os encontros das orcas com barcos (tanto avistamentos como ataques), os incidentes com orcas têm aumentado na costa de Portugal e perto do Estreito de Gibraltar, entre Espanha e Marrocos. Segundo o mapa de junho, houve pelo menos um encontro de orcas todos os dias na área – o mapa mostra 10 ataques desde 1 de junho e 12 avistamentos adicionais de orcas no mesmo período.
«Nos últimos tempos elas estão mais presentes em algumas áreas, como a costa de Sines, Cabo Espichel, Cabo da Roca, etc.», afirma Rui Alves ao Nascer do SOL.
A ideia do site nasceu de uma vontade de partilhar entre uma comunidade náutica sem fronteiras toda a informação relacionada com os ataques, assim como a localização na costa portuguesa e espanhola. De acordo com o responsável, neste momento, o «ponto quente» está no Sul de Espanha, entre Barbate, Tanger e Tarifa. «Elas deslocam-se agora para norte, ou seja, em direção ao Algarve e à costa oeste de Portugal, e mais tarde até à Galiza», explicou. «Em abril tivemos 12 ataques, em Maio 20 ataques e em Junho até agora são 10 ataques», continuou. Interrogado sobre a forma como são feitos os ataques, Rui Alves garante que estes não têm sido todos iguais. «Há embarcações que acham que os ataques são mais violentos e temos três embarcações afundadas como consequência direta ou indireta dos ataques. Alguns ataques duram mais tempo que outros, ou seja, vão de meia hora a três horas», contou.
Além disso, segundo os dados publicados no site do Grupo de Trabalho Orca Atlântica (GTOA) – população única que vive no nordeste atlântico –, em 2022, foram mais de 200 as interações entre orcas e barcos registadas na costa atlântica de Portugal e Espanha. Em 2020, foram registadas 52 interações entre julho e novembro entre o Estreito de Gibraltar e a Galiza, incluindo a costa ao longo de Portugal continental. «Dois novos casos foram registados em janeiro de 2021 na costa atlântica de Marrocos e no Estreito de Gibraltar, evidenciando a persistência deste novo comportamento ao longo do tempo, atingindo 197 interações. Em 2022 foram registadas 207 interações», indicam os mesmos dados. De acordo com o GTOA, há três anos, este novo comportamento foi observado quando alguns elementos juvenis interagiram principalmente com veleiros, mas registaram-se também casos de interação com embarcações de pesca e pneumáticas.
Uma luta desequilibrada
No início do mês passado, por exemplo, seis animais da espécie Orcinus orca atacaram um veleiro que navegava pelo estreito de Gibraltar. A bordo da embarcação estava Greg Blackburn, que diz ter percebido como uma orca mãe apareceu para orientar os golpes de seu filhote. «Era definitivamente alguma forma de educação, de ensino», disse ao 9news.
Segundo a publicação alemã Yacht, apenas dois dias depois, no mesmo local, um grupo de três orcas atingiu um iate, perfurando o leme. «Havia duas orcas menores e uma maior», detalhou o capitão Werner Schaufelberger. «Os pequenos sacudiram o leme na parte de trás, enquanto o grande repetidamente recuou e abalroou o navio com força total do lado», continuou. Segundo o capitão, as orcas menores imitavam as maiores. «As duas pequenas orcas observaram a técnica da maior e, com uma leve correria, também batiam no barco». A guarda costeira espanhola resgatou a tripulação e rebocou o barco para Barbate, no entanto, este acabou por afundar na entrada do porto.
Os animais cercaram ainda, no dia 22 de junho, as embarcações à passagem pelo Estreito de Gibraltar no percurso da sétima e última etapa, que liga Haia a Génova, palco da final: «Três orcas vieram na nossa direção e começaram a bater nos lemes. É impressionante ver animais tão bonitos, mas também perigosos para nós. Reduzimos a velocidade do barco o mais rápido possível e, após alguns ataques, as orcas foram embora. Foi um momento assustador», afirmou o capitão da Team JAJO, Jelmer van Beek. Felizmente, não houve registo de feridos nem de danos.
Além disso, também se conhecem alguns casos de ataques no largo de Sines. No dia 31 de julho do ano passado, um encontro com orcas, nesse mesmo local, esteve na origem do afundamento de um veleiro. De acordo com o comunicado divulgado pela Marinha, foi articulada uma operação de salvamento dos cinco tripulantes que se encontravam na balsa salva-vidas. O resgate acabou por se concretizar graças à ação de uma embarcação de pesca que se encontrava perto do local. O veleiro afundou a cerca de seis milhas da costa de Sines.
No mês seguinte, noticiava o Correio da Manhã que duas interações de orcas com embarcações, em 24 horas, na área de Sines, provocaram danos nos veleiros. Um deles, que tinha três homens portugueses a bordo e teve mesmo de ser rebocado para o porto de Sines «após ter ficado sem leme e governo», confirmou à mesma publicação, o capitão do Porto de Sines, comandante Rui Silva Filipe.
Segundo o responsável, o primeiro incidente ocorreu no dia 29 de agosto, a 12 milhas a largo do Cabo Sardão, com um ataque a um veleiro de dez metros. «A embarcação reportou a interação diretamente à Marinha, informando danos menores no leme. Seguiram a sua navegação sem necessidade de apoio», explicou. Um dia depois, no largo de Melides, um outro veleiro, de bandeira portuguesa, foi alvo da interação de «um grupo de 4 a 5 orcas», que danificou o leme de tal forma que a embarcação «ficou sem governo». Acabou por ser feito o pedido de auxílio e uma embarcação da Estação Salva Vidas de Sines rebocou o iate até ao porto local, onde foi reparado. Os três homens que se encontravam na embarcação, não sofreram ferimentos.
«Conheci um casal de estrangeiros aqui em Sines. Foi no ano passado. Tinham um iate à vela que foi atacado por uma orca, mesmo aqui no largo de Sines. Contaram-me que estavam há mais de dois meses à espera de uma peça que foi danificada e que precisavam para se poderem colocar de novo no mar. Não sabia que elas conseguiam vir tão perto desta zona e que atacavam assim os barcos», conta Marta Fonseca, moradora de Sines.
Moda, interação ou ataque?
Mas, para Sofia Esteves da Silva, não devemos classificar estas «interações» como «ataques». «‘Ataque’ implicaria assumir que existe agressão direcionada contra uma potencial vítima», afirma. «Da minha perspetiva, não se trata de agressividade. As orcas são golfinhos como os restantes e, portanto, velocidades, ruídos e partes móveis debaixo de água, despertam interesse nestes animais. Se realmente quisessem ser agressivas, diria que poderíamos ver batidas com a barbatana caudal nas embarcações ou investidas de baixo para cima como vemos por exemplo com o que fazem com icebergs ou plataformas similares», explica. Segundo a especialista, o que vemos «são pancadas laterais pela popa dos lemes e desinteresse total depois destas partes móveis pararem/perderem a sua funcionalidade». «No sentido literal de ataque, se este animais quisessem realmente virar uma pequena embarcação, com o peso, dimensão e força que possuem…seria fácil. Comportamentos agressivos também mais facilmente poderiam partir de adultos do que de juvenis. Adultos tendem a ser mais conservadores a nível comportamental, enquanto os juvenis mostram mais variação associada à curiosidade», detalha a bióloga. Importa salientar que mundialmente não existe qualquer registo de ataques de orcas a humanos em meio natural. «São sem dúvida situações delicadas, que por vezes envolvem danos materiais elevados, mas é preciso entender a capacidade de real ataque destes animais, bem como as possíveis consequências de uma interação, devido ao seu porte e fisionomia», salienta.
Segundo Sofia Esteves da Silva, apesar de existirem diversas teorias – que vão desde simples comportamentos lúdicos, alterações da presença/pressão humana no seu habitat, comportamento defensivo e apreendido derivado de um trauma passado, entre outros, «ninguém sabe ao certo as razões que estão na origem destes comportamentos».
Em 2022 foi publicado um estudo na revista Marine Mammal Science que relata que os «ataques» das orcas começaram em 2020. Uma das teorias expostas para justificar estes acontecimentos diz-nos que uma orca fêmea, chamada de White Gladis, sofreu ao colidir com um barco ou armadilha durante a pesca ilegal e «passou a ter uma reação extrema ao ver embarcações». Estima-se que as orcas tocam apenas um navio em cada cem que navegam nas mesms águas.
«Uma das teorias aponta, de facto, para o desenvolvimento deste comportamento como reação defensiva associada ao ferimento – compatível com embate de embarcação, encontrado numa das 3 orcas que o iniciou há 3 anos», explicou a bióloga marinha.
Sendo uma espécie com elevadas capacidades cognitivas, o comportamento acabou por ser aprendido por outras orcas, tendo-se dispersado. «É importante ter em mente que os motivos tanto da origem como da dispersão e persistência, podem não ser os mesmos e são desconhecidos cientificamente. Assim, importa não incentivar nem estimular uma ‘guerra’ porque, a acontecer, as orcas vão perder», alertou.
Segundo Deborah Giles, diretora de pesquisa da organização de conservação sem fins lucrativos Wild Orca, podemos estar apenas diante um «modismo», tal como acontece com o comportamento das orcas na Colúmbia Britânica, que, nos últimos anos, «começaram a atacar potes de caranguejo, levantando-os e movendo as suas âncoras sem motivo aparente». Ao The Washington Post, que tem acompanhado os acontecimentos, a responsável revelou que também já observou jovens orcas machos a agarrarem-se às barbatanas dorsais de machos maiores para «apanhar boleia». «Parece-me a mesma coisa que estão a fazer com os veleiros de Gibraltar», acredita.
Medidas a tomar
Na segunda-feira, o presidente da Associação Nacional de Cruzeiros (ANC), António Bessa de Carvalho, revelou à Lusa que um novo aparelho acústico para dissuadir as orcas de interagirem e pôr em risco os veleiros de recreio vai ser testado este Verão na costa portuguesa, «numa altura em que vários navegadores já evitam águas nacionais». «Estão a ser desenvolvidas algumas linhas de desenvolvimento de dissuasores acústicos que serão testadas este Verão, de forma a tentar encontrar opções de proteção de veleiros e minimizar o número de interações», disse à agência de notícias.
De acordo com o responsável, os proprietários de veleiros estão «muito preocupados» e, neste momento, têm medo de levar as suas embarcações para o Algarve, «como fazem todos os anos». Além disso, Bessa de Carvalho referiu ainda o caso de «muitos estrangeiros que evitam as águas portuguesas» e, vindos do Norte da Europa, vão diretamente para a Madeira e as Canárias, «evitando descer ao longo da costa Oeste do país»: «Esperamos que este trabalho conjunto seja profícuo e consiga desenvolver um aparelho que permita proteger as embarcações e o grupo de orcas», afirmou o presidente da ANC.
Interrogada sobre se brevemente haverá retaliação por parte dos humanos, Sofia Esteves da Silva defende que esta já começou. «Já existe – admitida (e até exposta) por alguns navegadores. Na verdade, não demorou muito até que inúmeras embarcações começassem a estar ilegalmente carregadas de armas, nomeadamente arpões, petardos, espingardas, entre outros materiais perigosos, não só para a vida marinha, mas também para quem os manuseia», lamenta a bióloga marinha.
Segundo a especialista, já existem inclusive inúmeros registos de retaliação direta para com estes animais – desde o lançamento de petardos, como serem regados diretamente com gasolina. «A abordagem agressiva e indiscriminada, mesmo quando nos encontramos fora do nosso habitat natural, é muito característica do ser humano», frisou.
Quem decide ir para o mar deve procurar ter o mesmo tipo de atenção que um condutor quando tenta evitar um acidente/obras na estrada: seguir as indicações/recomendações das autoridades. «O mapa de risco disponível no site GTOA fornece uma recomendação à navegação com base nas informações recebidas dos navegadores e serviços de salvamento, interações e avistamentos. Na mesma página encontram-se recomendações específicas no caso de avistamento dos animais, onde se inclui desligar o motor e não tocar no leme», afirma a especialista.
Já quem sofreu uma interação deve também tirar fotos/vídeos e contactar a Autoridade Marítima Nacional (AMN). Esta encontra-se em contacto com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e o GTOA. «O ICNF trabalha com o grupo oficial e só com a passagem destas informações pode ser possível aos cientistas estudarem e conhecerem melhor estas interações para se conseguirem melhores planos de gestão de situações destas», acrescentou. De acordo com Sofia Esteves da Silva, esta coordenação internacional entre administrações, navegadores e cientistas é essencial é urgente para que se possam desenvolver ações cada vez mais apropriadas para evitar danos futuros a pessoas, orcas e embarcações.