Por António Manuel de Paula Saraiva, Arquiteto paisagista
Os comentários sobre a guerra da Ucrânia no Ocidente transmitem-nos o discurso oficial: é preciso ‘continuar a guerra’ até à ‘vitória final’ da Ucrânia e à ‘punição dos culpados’.
Ora, estes objetivos parecem longe de ser atingidos. A Rússia possui no seu vastíssimo território as matérias-primas necessárias para continuar a fabricar armas e munições, e engenheiros em número suficiente para as conceber (foi a então URSS que lançou o primeiro satélite). E se, contra ela, militam as sete economias mais desenvolvidas do planeta, não deixa de ter alguns apoios, uns mais explícitos, outros mais encapotados, pois para muitos habitantes do Terceiro Mundo o ‘Ocidente’ é visto como ‘o colonialista’.
Mas o mais importante de tudo é o sofrimento: os soldados queimados num tanque a arder, gelados pelo frio ou sepultados em vida por explosões. As mães que ficaram sem filhos e os filhos que ficaram sem pais. Os casamentos desfeitos, as memórias apagadas. O frio, a sede, a solidão, a raiva.
É sobretudo a esse sofrimento que importa pôr fim.
Em tempos de escuridão
Esta guerra tem sido justificada no Ocidente como a defesa dos ‘Princípios Europeus’: a segurança das nações, a liberdade, a inviolabilidade das fronteiras. Razões muito discutíveis, pois durante 45 anos (de 1945 a 1990) a Europa Ocidental viveu paredes meias com a então URSS, sem que isso prejudicasse a sua segurança ou liberdade. E quanto à inviolabilidade das fronteiras, não se trata de um princípio mas de uma regra prática para evitar conflitos. Tanto assim é que as fronteiras de vários países europeus se alteraram através dos tempos. Limitando-nos aos mais recentes, no fim da 2.ª Guerra Mundial alteraram-se as fronteiras da Polónia, da URSS e da Alemanha (o país que mais ficou a perder, pois além da Prússia perdeu a Alsácia para a França). E com o fim do comunismo, a URSS deu origem a 16 países, a Checoslováquia a dois, e a Jugoslávia a seis.
Há sempre alguém que semeia
Resta o mais importante, o Princípio Europeu por excelência, o cerne dos Direitos do Homem: cada um deve poder exprimir-se livremente, sem ser punido ou prejudicado, e viver de acordo com a sua vontade – ou seja, poder escolher o local de residência, o trabalho, a religião – e o direito de eleger quem o governa.
Hoje, a continuação da guerra parece inevitável, pois a Ucrânia (apoiada pelo Ocidente) e a Rússia têm objetivos inconciliáveis: a Ucrânia deseja reconquistar todos os territórios perdidos desde 2014 (além da Crimeia, as ‘repúblicas independentistas’ do Donbass e de Lugansk), enquanto a Rússia pretende integrar, além da Crimeia e daquelas duas repúblicas, as regiões conquistadas na atual guerra: as províncias de Kherson, e Zaporizia.
Como fazer parar estes dois comboios infernais que se precipitam um para o outro?
Canções no vento que passa
Com que base têm os contendores invocado a sua postura? Moscovo afirma que as regiões que pretende integrar são habitadas por russos, de cultura russa – que, aliás, o governo ucraniano não lhes permite exercer; Kiev garante que os povos dessas regiões querem ser ucranianos e não russos.
Mas há um ponto comum às duas posições: ambas afirmam estar procedendo a bem do Povo. Ora, sendo assim, não há que usar a força das armas. Tem é de se perguntar às populações das regiões em disputa: ‘O que querem ser, russos ou ucranianos?’ Esta é a posição civilizada, o espírito europeu. Em resumo, há que deixar essas populações exprimir-se através de um Referendo.
Elon Musk, que ninguém pode acusar de ser ‘contra’ a Ucrânia (é ele que lhe proporciona a cobertura de satélites, garantindo-lhe as comunicações), propôs a realização de um referendo nas zonas em disputa – ideia que foi rejeitada sem ser sequer discutida.
Em igual sentido surgiu o Plano de Paz da Indonésia, que também foi liminarmente rejeitado.
Mas recorrer a um referendo para dirimir situações deste tipo não é novo. Foi utilizado no Canadá, para apurar se o Quebec (francófono) iria, ou não, tornar-se independente, separando-se das províncias anglófonas. Foi praticado em Timor. Foi praticado na Sérvia (levando à separação do Kosovo e da Macedónia do Norte). Mais recentemente, foi praticado na Escócia.
Será fácil implementar um referendo num país em guerra? Os russos aceitá-lo-iam? A sua implementação exigiria, antes de mais, tréguas. Depois, cadernos eleitorais fiáveis (devendo ser usados os de antes da guerra). Uma definição geográfica exata das regiões onde o referendo teria lugar. A possibilidade de votarem as populações deslocadas dessas regiões. Observadores internacionais. Etc. Mas, salvo a aceitação do princípio e as tréguas – que implicam uma vontade das partes em conflito –, os restantes são problemas técnicos, ultrapassáveis. O que importa – importaria – é aceitar o princípio.
Sejamos europeus, sejamos pessoas de paz, ponhamos fim aos sofrimentos.