por Luís Filipe Pereira
Economista, gestor
O SNS foi concebido, há cerca de 44 anos, para prestar a todos os portugueses cuidados de saúde, de forma geral, universal e gratuita, o que está inclusivamente garantido na Constituição.
O SNS continua, hoje, porém, com problemas graves de acesso aos cuidados de saúde, por parte da população, que se traduzem, no essencial: por elevadas e persistentes listas de espera para consultas e cirurgias, devido a tempos de resposta que ultrapassam meses ou mesmo anos (e que não são casos pontuais); pelo mau funcionamento de muitas unidades de saúde-hospitais e centros de saúde – com destaque para a incapacidade de resposta das urgências hospitalares; e pela falta de médicos no SNS, em especial na especialidade de medicina geral e familiar, levando a que existam hoje cerca de 1,7 milhões de portugueses sem médico de família.
Estes problemas de acesso conduziram a uma situação em que cerca de 3,5 milhões de pessoas, para ultrapassarem a incapacidade de resposta do SNS, recorrem, pagando, ao setor privado através de seguros de saúde privados.
Se a este número de pessoas adicionarmos os funcionários públicos e suas famílias (incluindo as forças de segurança) que recorrem também ao setor privado, através de subsistemas públicos de saúde (como a ADSE), conclui-se que cerca de 4,7 milhões de pessoas (quase metade da população) recorrem ao setor privado, pagando, por falta de resposta do SNS.
Esta situação penaliza, em particular, as pessoas carenciadas e mais desfavorecidas, que não tem capacidade económica para aceder, pagando, ao setor privado, e introduz na sociedade portuguesa uma situação discriminatória e dual: as pessoas que tem recursos financeiros recorrem ao setor privado e as pessoas mais carenciadas e vulneráveis tem que suportar a incapacidade de resposta do SNS e permanecem nas listas de espera.
A falta de investimento no SNS tem sido apontada, por muitos, como sendo a principal causa desta situação.
É certo que as despesas de investimento, ou seja aquelas que podemos denominar de despesas de capital (para a construção de novas unidades de saúde – exemplos: hospitais e centros de saúde – ou, por exemplo, para a compra de equipamentos de imagiologia) tiveram, nos últimos 7 anos dos Governos Socialistas, valores muito baixos de realização – execução -.
Desde 2015, com especial referência para o período da ‘geringonça’, os valores de realização das despesas de investimento foram, de facto, muito baixos, apesar dos Governos Socialistas anunciarem e inscreverem, em cada ano, valores mais elevados nos Orçamentos da Saúde. Isto é, todos os anos eram orçamentadas despesas de investimento que na prática não eram realizadas devido, em grande medida, às cativações do Ministério das Finanças.
Desde 2015 a 2019 (ano do inicio da pandemia) as taxas de execução das despesas de investimento rondaram, em muitos desses anos, à volta de 50%.
No entanto, se é verdade que os baixos níveis de investimento limitaram a expansão do SNS em termos de novos hospitais e centros de saúde (é preciso referir, aqui, que os únicos hospitais construídos de raiz, nos últimos 20 anos, foram aqueles em Parcerias Público Privadas (PPP) que foram, na prática, abandonadas por razões ideológicas, por parte dos Governos do PS) não é menos certo que as despesas correntes, ou seja aquelas respeitantes ao funcionamento do SNS (salários, medicamentos, consumos intermédios, fornecimento de bens e serviços, etc.) conheceram uma grande expansão.
Em 2015 os custos de funcionamento do setor público da saúde foram de cerca de 9,5 mil milhões de euros (dados da *Pordata) e em 2023 o Orçamento desses custos é de mais de 14 mil milhões, o que significa um aumento de cerca de 50%. Ou seja, durante o período dos Governos Socialistas, a uma expansão dos recursos do SNS correspondeu uma pior resposta às necessidades da população.
Esta situação: incapacidade de resposta às necessidades de saúde da população e elevada ineficiência nunca foi resolvida pela gestão pública do SNS.
Hoje, os problemas desta gestão pública colocam-se a vários níveis:
– Na gestão das unidades de saúde, em especial hospitais, em que não tem havido autonomia das equipes de gestão, o que as desresponsabiliza pelos resultados a atingir, a par da nomeação de equipes dirigentes e quadros superiores por via partidária;
– na gestão de Recursos Humanos feita num enquadramento contrário à existência de uma gestão por meritocracia, com falta de avaliação efetiva de desempenho individual, ligada a incentivos e penalizações, e num enquadramento de pressão sindical para promoções (e remunerações) automáticas não ligadas ao desempenho e portanto a resultados para a população;
– na falta de médicos no SNS quer nos cuidados primários (falta de médicos de família) quer nos cuidados hospitalares (em algumas especialidades) e isto apesar de Portugal deter, a nível mundial, um dos rácios mais favoráveis de médicos por 1.000 habitantes. Esta falta de médicos deve-se à incapacidade do SNS de atrair e reter novos profissionais (por baixos salários, por falta de oportunidades de crescimento profissional e de diferenciação, e por desorganização) o que leva esses profissionais de saúde a procurarem oportunidades no estrangeiro e no setor privado.
Existe até quanto a este último aspeto uma perversão que se tem vindo a registar: a ineficiência do SNS conduz a uma procura elevada do setor privado pela população, como atrás se referiu, o que por sua vez leva este setor a ter melhores condições e a ser mais atrativo para os profissionais de saúde levando à saída destes do SNS.
Os problemas graves do SNS não podem encontrar uma solução estrutural, estável, no quadro do modelo atual do SNS: a gestão pública do SNS vem há anos a produzir os mesmos resultados: ineficiência estrutural e incapacidade de resolver os problemas da população.
Há que introduzir uma reforma profunda no setor da saúde através da criação de – estímulos ‘vindos do exterior do SNS que induzam uma eficiência, estrutural, sustentada. Estes estímulos passam pela efetiva liberdade de escolha dos utentes e pela contratualização com o setor privado e social dos cuidados de saúde para a população no quadro de um novo conceito: a criação de um Sistema de Saúde em que coexistam as iniciativas pública, privada e social.
A contratualização é um fator fundamental porque permite ao Estado:
– Impor objetivos a atingir pelo setor privado ou social, pagando apenas por resultados obtidos para a população (de qualidade, de custos, de atendimento, de eliminação de listas de espera etc.;
– criar mecanismos de concorrência/competição a favor do utente que estimulem o desempenho e aumentem a eficiência quer através da seleção das entidades privadas e sociais (quando do lançamento dos concursos para a contratualização) quer na divulgação pública, sistemática, dos resultados atingidos (clínicos, de custos) fazendo a comparação (’benchmarking’) entre as iniciativas privadas e sociais e, entre elas, e a iniciativa pública.
A criação do Sistema de Saúde, como descrito, tem sido atacada, em especial pelos partidos de extrema-esquerda com base em dois alegados factos:
1.Esta solução significaria o fim do Estado, enquanto prestador de cuidados de saúde, e a entrega ‘aos privados’ do setor da saúde.
Na realidade o Estado continuaria a ter a gestão das unidades não contratualizadas e a ser determinante no Sistema de Saúde.
O Estado tem que garantir os cuidados de saúde a toda a população mas não tem que ser exclusivamente o prestador desses cuidados. A diferença entre ‘garantir’ e ‘prestar’ foi o que já sucedeu nos hospitais geridos em PPP’s, a que a população, acedeu de forma livre e gratuitamente, e em que a gestão privada alcançou excelentes resultados (melhor resposta, mais qualidade e menores custos) como foi completamente provado por entidades credíveis, oficiais, como o Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde.
2. O Estado, nesta solução, estaria a financiar ‘os privados’ e o seu crescimento.
Na verdade, o forte crescimento do setor privado da saúde não se deve a transferências ou ao seu financiamento pelo Estado mas sim à procura elevada dos cidadãos, a ele dirigida, por ineficiência e falta de resposta do SNS às necessidades da população. Ou seja, é a ineficiência do Estado que tem alimentado o crescimento do setor privado.
O pagamento pelo Estado aos setores privado e social é a contrapartida da prestação, à população, dos cuidados de saúde contratualizados. Trata-se, portanto, de pagamentos por serviços prestados. Estes pagamentos foram até bastante mais baixos, no caso dos hospitais em PPP´s, do que aqueles que se registavam quando estes hospitais estavam sob gestão pública.
Por fim, é tempo de reconhecer que o fator fundamental não é o de saber se os cuidados de saúde à população são prestados pela iniciativa pública ou privada, mas sim se eles servem e satisfazem as necessidades dos portugueses, independentemente de quem os presta, nas condições garantidas na Constituição: acesso geral, universal e gratuito.