“Não sou um DJ, sou um alquimista de frequências”

Andou por Angola, Brasil e Canadá, onde viveu um redespertar espiritual. Atualmente reside em Tulum, a capital da música eletrónica, e faz tours por todo o mundo. Esta é a história singular de i.am.nãda, um DJ nascido em Portugal que registou um sucesso meteórico e vai em breve apresentar o seu segundo live-set, gravado num…

As portas são umbral, trânsito, mas também parecem ligadas à ideia de casa, pátria, mundos que abandonamos e a que voltamos passando sempre através delas. A porta é um símbolo feminino no sentido de abertura, de convite a penetrar no mistério, o oposto ao muro, que seria o masculino.»
Juan Eduardo Cirlot, 
Dicionário dos Símbolos
 
Estudou Genética na Universidade de Nottingham, fundou uma empresa em Londres e viveu em França. Em 2012, a sua vida ficou virada do avesso com a morte inesperada do pai em Angola. Mudou-se para o Lobito, onde acabaria a dedicar-se à pesca desportiva. Depois andou pelo Rio de Janeiro e geriu um restaurante italiano no Canadá. Quando descobriu o poder da música eletrónica, reinventou-se como DJ e produtor, criando o alter ego i.am.nãda, uma palavra em sânscrito que significa ‘frequência’.
Faz regularmente performances ao vivo em cidades como Los Angeles e Nova Iorque, e o seu vídeo no Youtube ‘i.am.Nãda ft. Dominique Zuniga & Hernán Suárez’ teve em nove meses perto de cinco milhões de visualizações.
Hoje vive numa reserva natural paradisíaca em Tulum, México, mas conhecemo-nos há 30 anos quando vivíamos na mesma torre de habitação às portas de Lisboa, a dois andares de distância. Andámos na mesma turma, passámos férias – e algumas aventuras – juntos e éramos os melhores amigos.
Depois, como tantas vezes acontece com os melhores amigos, a vida foi-nos afastando.
Falámos por breves minutos quando o seu pai, o empresário Rui Câmara e Sousa, foi assassinado no Lobito. E pouco mais.
Um dia destes, recebi uma mensagem sua. Estava no México. Vinha tocar a Portugal e ia passar alguns dias em Lisboa. Voltou a contactar-me duas vezes, uma da Colômbia e outra do aeroporto de Nova Iorque. Combinámos almoçar num restaurante em Oeiras.
Amigos comuns já me tinham avisado como o Ricardo estava transformado. Por isso, a aparência de feiticeiro, com a barba longa, o colar de búzios e os braços cobertos de tatuagens, não foi para mim uma surpresa – e muito menos um choque. Apresentou-me a namorada, Erica, uma simpática russa nascida em Nova Iorque. Pedi-lhe que me contasse o que tinha feito e por onde tinha andado todos estes anos em que estivemos afastados. Alguns minutos foram o suficiente para concluir, que, apesar de todas as experiências e transformações por que tinha passado, continuava, no essencial, exatamente a mesma pessoa.

Lembro-me que, depois de terminares o curso em Inglaterra, foste à Holanda fazer alguma coisa para a Philips.

Foi giro porque passámos oito dias num castelo em ‘s-Hertogenbosch, a formar grupos de trabalho e a fazer projetos. No seguimento disso tive dois convites para a Philips. O primeiro para trabalhar com máquinas hospitalares. Ainda fui a uma entrevista em Paris, em La Défense, mas não gostei. Eram todos franceses, muito fechados. Depois tive outro convite para trabalhar na área da iluminação, que era mais giro. Em Roterdão. Para um cargo de diretor, uma boa proposta. Mas tinha de ficar demasiado tempo em formação, eram vários módulos, tudo junto quase três anos. Pensei se queria realmente investir tanto tempo da minha vida naquilo. E concluí que não.

O que foste fazer então?

Como tinha o curso de genética e um mestrado em Empreendedorismo, fiquei como uma espécie de mediador entre o mundo académico e o mundo empresarial. No fundo, o que eu fazia era facilitar contactos e encontrar sinergias. Acordava cedo, vestia o fato e ia falar com os professores e responsáveis das faculdades de Londres. Só que a certa altura os fundos deixaram de destinar-se a estes projetos e abriram-se mais às universidades. No fim, com 27 anos, ainda fiquei como diretor do projeto, porque a diretora, como era professora catedrática, não quis ficar associada ao seu fim. E saiu do barco. E eu lá fiquei a tocar o meu violino enquanto o barco se afundava… Nisto, joguei um bocado, porque o que eu via acontecer era que cinco milhões de dólares tinham sido investidos no projeto que agora vai fechar e ninguém quer saber de nada.

Havia um grande desperdício, portanto.

O que é que eu pensei?Como tínhamos criado muito conteúdo e bons contactos, abri uma empresa de consultoria, meti as pessoas que trabalhavam no projeto – sobretudo professores catedráticos – no advisory board [como conselheiros], e fiquei um bocado como ponta-de-lança, que ia a vários sítios, universidades e àquilo a que eles chamam centros de conhecimento, dizer: ‘Temos este programa que ajuda a passar do conhecimento aos produtos e serviços’. Durante esse processo fazia cursos em várias universidades e uma delas era a Queen Mary University of London. Tinha um workshop que os post-docs podiam fazer, em que apresentavas uma ideia para qualquer coisa, e depois durante as oito semanas ias aprender os vários passos para criar um negócio, culminando com um plano de negócios.

Ou seja, aprendiam a passar da teoria à prática.

Nesse processo, conheci um grego, engenheiro de antenas, que tinha uma ideia engraçada. Chama-se metamateriais. Imagina uma película que pões em cima dos painéis solares e aumenta em 80% a capacidade de absorver a energia. Uma tecnologia bastante nova, horizontal, ou seja, com várias aplicações. Juntei-me a ele e como eu tinha todos esses contactos, com uns business angels e mais uma bolsa daqui e um grant [incentivo] dali, criámos uma pequena empresa, onde trabalhei durante um ano e meio. Mas foi importante porque me permitiu a saída do mundo corporativo e seguir o meu próprio caminho. Deixo de trabalhar todos os dias às oito da manhã, fazer a barba e vestir o fatinho. Não ganhava nada, nessa altura não tinha dinheiro, davam-me 500 libras ou perto disso, e pensei: ‘Não posso viver assim. Mas o que posso fazer é não viver em Londres’. Já nessa altura se podia fazer muitas coisas por email. Fui viver para França, para Nantes. Encontrei um apartamento que custava 300 euros, em vez de quase dois mil, e tinha um voo da Easyjet a dez euros que me levava de Nantes para Londres em 90 minutos.

O tempo de um jogo de futebol.

Tornei-me um bocado um nómada digital já nessa altura. O meu sócio era muito focado na tecnologia, enquanto eu era mais virado para o negócio. Mas a tecnologia era muito inicial, e a empresa não descolava. Entretanto o meu pai morre e eu vou para Angola.

Em agosto de 2012.

Nessa altura deixo a empresa – não tinha cabeça para pensar naquilo, e mesmo antes já não estava o mais alinhado… Passei cinco anos em Angola.

Não sabia que tinhas lá estado tanto tempo. No Lobito?

Sempre no Lobito. Foi um choque mas ao mesmo tempo um renascimento. Nos primeiros meses andei lá um bocado a vaguear. Mas o meu pai tinha um amigo chamado Claude, um suíço. Os pais eram missionários e tinham ido para lá para o fim do mundo e ele nasceu em Angola. Era engenheiro, acabou no Lobito e tinha uma empresa de tornos. Eu nem sabia o que era um torno…

Tornos mecânicos?

Exato. A empresa dele era uma automecânica, e praticamente fazia a manutenção da indústria que havia no Lobito, porque estão lá as petrolíferas, que têm as plataformas ali ao largo. Era um homem mais velho, um tipo duro, um bocadinho velha escola, inteligente, educado na Suíça, mas um bocadinho um McGyver da savana. Foi uma espécie de segundo pai para mim.

Apadrinhou-te?

Ele gostava muito do meu pai e apoiou-me. Fui ajudar, fiquei como gerente, a organizar um bocado a empresa. Foi um endurecimento para mim, que vinha de Londres, um bocado ‘menino’. Então o Sr. Claude Maeder deu-me uma nova educação ‘rough’ angolana. Entrava às seis e um quarto da manhã, depois ao fim de semana íamos pescar juntos. Começo a pescar muito e a passar muito tempo no mar.

Ele tinha um barco?

Sim. Saíamos às seis da manhã. Se não estivesses lá às seis em ponto ele deixava-te em terra.

Pontualidade suíça.

Trabalhei lá seis meses. Obviamente o Claude tinha-me dado aquele trabalho para me ajudar. Não era extremamente necessário. E ele tinha um filho que tinha alguns ciúmes meus. Um bocado rebelde.

Um caso clássico.

E então ele criava um bocado de animosidade contra mim. ‘Quem é este gajo que veio aqui roubar o meu pai?’. O pai, por outro lado, ficava contente por me ter a mim, que era um bocado o filho que ele não tinha tido. E eu também contente por ele ser o pai que eu já não tinha. Mas o mais interessante desta história foi ele ter-me introduzido à pesca desportiva.
Pescavam peixes grandes?

Sim, marlins, veleiros, dorados.

Tipo Hemingway?

Exatamente. O Claude era exatamente o velho de O Velho e o Mar. Trabalho com ele durante seis meses e conheço outro angolano, branco, que tinha várias coisas e entre elas ficou com uma representação de máquinas pesadas, uma empresa chinesa. Estamos a falar de rolos para fazer estradas, retroescavadoras, pavimentadoras. Mas também – muito importante – gruas. Gruas muito grandes, de cem toneladas, para o porto. E convidou-me para eu ser diretor comercial. O engraçado é que a empresa se chamava Sousa Motors, porque ele era o senhor Sousa.

E tu também. [risos]

Eu também. Mais uma vez, toda a gente achava que eu era o filho do Sr. Sousa, que também tinha filhos em Angola. E mais uma vez criando essa animosidade. Mas era uma vida interessante, completamente diferente da minha experiência de viver em Londres, andar de fatinho todos os dias. Mas ao mesmo tempo tinha aqueles tipos, que nem sempre são as pessoas mais evoluídas, a chatearem-me a cabeça. Pessoas um bocado com a mania, porque têm dinheiro, matumbos [grosseiros]… Mas fico super agradecido pela experiência, até porque me permitiu ganhar bastante dinheiro. Acordei uma percentagem das vendas e, se uma empresa precisava de alugar equipamento, eu arranjava ligações e cobrava um X por dia. Às tantas já ganhava mais dinheiro do que o meu ordenado pelos meus contactos por via informal. Depois chegava à sexta-feira, metia-me três horas no carro, e ia passar o fim-de-semana todo a fazer pesca submarina, a coisa de que eu gostava. O trabalho era giro, mas havia muita pressão… A certo ponto enchi o saco. Então faço um bocado um grito do Ipiranga. ‘Vou fazer o que gosto’. E comecei a ir pescar todos os dias. Com alguns amigos, tínhamos um barco grande, de cem mil dólares, e levávamos os expatriados que estavam lá a trabalhar na Chevron, na BP, na Total – à pesca no fim-de-semana. 2000 dólares por um dia inteiro. O que é que acontecia? Vínhamos com cem quilos de peixe. Eles levavam um ou dois, cozinhávamos para eles, mas ainda ficávamos com 80 quilos de peixe. Isto ao fim de semana. Mas à semana também ia pescar. Mais e mais peixe. O que é que vamos fazer com isto? Vamos vender aos restaurantes. Começou um novo negócio. Um dia, na marina do Lobito, uns tipos bêbedos põem-se a brincar com os flares [foguetes de sinalização], um cai dentro de um barco, ardem três ou quatro barcos, incluindo o nosso. 

Não tinham seguro?

Não há seguros, não há responsabilidade, nada. Foi mais ou menos uma fénix outra vez. O meu amigo Pedro tinha um barco mais pequeno que a gente usava para ir ‘brincar’. Continuámos na pesca, já estávamos acelerados naquele negócio, tínhamos pescadores locais a quem comprávamos o peixe, compro um camião de 3,5 toneladas de frio para meter o peixe e para o levar mais longe. Mas é Angola. Agora o camião não funciona, tenho mil quilos de peixe e o frio não está a funcionar… O peixe começa-se a estragar no camião, estás a ver?

Acho que estou…

E eu às tantas, fico a pensar: ‘Acordo todos os dias às seis da manhã, estou sempre na pesca, cheiro mal para caraças, cheio de sangue de peixe, a guiar o camião… Estou farto disto. Está-me a tirar o gozo’…

Aquele gozo que tinhas ao princípio.

Nessa altura separo-me da minha namorada e fico sozinho. Não estou assim muito contente… O que é que vou fazer? Vou para o Brasil.

Porquê o Brasil?

Havia um amigo dos meus primos, o Manuel, que estava a fazer um estágio no Rio. E também tenho lá uns primos em segundo grau da minha mãe. Fui um bocado ver o que havia lá, arranjei um apartamento porreiro na Barra da Tijuca. Meio sem fazer nada, honestamente. A aproveitar a vida. Andava de chinelo, ia para a praia, fui conhecer as favelas… Uma escola de vida. Fiz isso durante um ano e estava bastante bem adaptado. Tinha uma namorada brasileira… O Rio também é um mundo um bocadinho… não é falso, mas…

Mundo de aparências?

Tens os pobres nas favelas. Mas depois sim, há pessoas que vivem muito na base das aparências, das roupas, do físico. E eu até estava um bocadinho enturmado nisso. Entretanto a história tem aqui um pivô. A minha mãe tinha feito uma mudança de vida e tinha ido para o Canadá. ‘Há um ano que não vejo a minha mãe, vou ao Canadá passar o Natal com ela’. Saio do Rio de Janeiro em dezembro, onde estão 40 graus, paro em Miami para comprar uns casacos, e vou para Toronto, onde estão 20 graus negativos. A minha mãe faz o jantar de Natal em casa de uma amiga, eu vou a esse jantar e apaixono-me pela filha da amiga. Começámos uma relação intensa. Passava três meses no Canadá com ela, meio sem fazer nada, depois ia para Angola fazer umas coisas, coordenar os meus arrendamentos, depois ia ao Rio dançar. Andava um bocado neste…

Carrossel.

Carrossel. E essa namorada viajava comigo.

Portanto andaste assim meio vagabundo durante uns tempos.

Nómada. Literalmente. O conceito é: sem casa fixa, e viajante. Criou uma espécie de realidades paralelas, quase como se eu tivesse uma vida e amigos em Portugal, uma vida no Rio, uma vida em Angola, e uma vida no Canadá. [Tira um pedaço da carne de porco com amêijoas. ‘Huuummmm. Muito bom!’] A nossa relação já durava há dois anos, pensámos: ‘Temos de fazer uma coisa mais séria’. Ela era de uma família italiana que tinha vários restaurantes, e o pai decide abrir um grande restaurante italiano numa marina do Lago Ontario. Eu sou a pessoa em que ele pega: ‘Tu és de confiança, vais-me ajudar’. Estive lá desde o início, a montar um restaurante para 500 pessoas, com 80 empregados, eu fico a gerir aquilo durante um ano e meio. Tinha de ir às seis da manhã para abrir a porta ao chef pasteleiro francês, e aos fins-de-semana saía às três da manhã depois de fechar, pagar aos empregados, fazer tudo. Como eu era ‘da família’, ele tinha a teoria de que eu tinha de sofrer, portanto recebia menos que toda a gente. Aprendi, gostei e contactei com muitas pessoas. Mas chegou a um ponto em que a nossa relação amorosa já não era aquilo que eu queria, mas estávamos muito interligados, porque eu estava completamente metido nesse projeto. E, ainda mais dramático, quando estávamos já numa de os nossos caminhos irem-se separar, acontecem duas coisas: ela fica grávida, e ao mesmo tempo descobre que tem cancro da mama. Com trinta anos.

O que fizeram?

Outro choque. Muda a nossa forma de estar, ela aborta, resolvemos, juntos, não enveredar pelo caminho normal, ela faz um tratamento completamente natural, mudamos a nossa vida, tornamo-nos vegans, tiramos os açúcares… Cambia tudo. Mais ou menos por essa altura fiz ayahuasca pela primeira vez. Sabes o que é ayahuasca?

Uma espécie de peyote?

O peyote é mescalina. A ayahuasca é um chá da Amazónia, feito com uma série de plantas, que contém o componente ativo DMT – dimetiltriptamina, que dizem que é algo segregado pela nossa glândula pineal quando nascemos e quando morremos. Chamam-lhe a ‘molécula do espírito’. Dá uma espécie de um novo despertar de consciência. E entro um bocado nesse caminho da medicina – ‘medicine path’ – dos índios. Isso começa a mudar a minha forma de pensar. A ayahuasca é muito estudada, o que dizem é que ajuda-te a redefinir os neuropathways [circuitos neuronais].

E isso é uma coisa que fazes uma vez ou torna-se um hábito?

É uma cerimónia, deitas tudo cá para fora, purgas tudo, tens conexões e supostamente traz à parte consciente o não consciente para que possas lidar com esses blocos e abrir o caminho. Entro um bocado nesse esquema e começo a ir a festivais na floresta. O primeiro é muito engraçado, porque vou num BMW baixinho, a rasar o chão, para o meio do mato, no solstício de verão, 21 de junho, e tenho um renascimento total. O meu amigo Anthony dá-me cogumelos mágicos, um cenário espetacular no meio da floresta, 1500 pessoas a viver em comunidade, com drum circles, e eu: o que é isto?!

Um mundo à parte?

Tenho um reawakening [redespertar] e vivo uma experiência muito gira com esses psicadélicos em que tenho um encontro espiritual com o meu pai como nunca tinha tido. Sinto como se estivéssemos aqui os dois. A minha vida nunca mais pode ser igual a partir daí. E a música eletrónica, a que eu não estava muito ligado, mas naquele ‘pum-pum-pum’ sinto a música dentro de mim. Mexo-me e danço e liberto-me. Nessa altura vivo numa casinha, um bungalow em que atrás tenho um pequeno quintal e começo a fazer festas para os meus amigos.

Em Toronto?

Em Toronto. Fazemos uma fogueira, monto uma tenda, com umas 20 pessoas, e entro naquele esquema. Aí começo como DJ – embora não seja ainda DJ nenhum, sou um seletor de música. Um pianista tem de saber tocar piano, e eu não sou pianista. Entretanto continuava a trabalhar no restaurante, mas o que me movia eram as festas.

Quase toda a gente tem o emprego e depois os hobbies de que gosta mesmo.

Só que aquele emprego era para o pai da minha namorada [risos]. E eu também não precisava muito do dinheiro. Estava numa de seguir o que sentia. Mas com responsabilidade. Entro muito nisso e começo a ouvir sets de DJs do Burning Man pela primeira vez. Não os martelinhos de como me lembrava do Kremlin e da Kapital, mas o uso de todos os sons, com diferentes posições dos sons. Cada vez mais interessado naquilo, e começo a entrar na comunidade dessas festas, pessoas muito mais abertas, dos gays, transsexuais, disto e daquilo. Entretanto acabo por me separar dessa namorada e namoro um tempinho com uma DJ. Ela literalmente leva-me a comprar uma misturadora e eu começo a mexer nessas coisas, com interesse, mas sem pensar nisso como trabalho ou objetivo. Viajava muito, andava com a mochila e com uma mala extra para a misturadora e umas colunazinhas, ia para um sítio e andava lá a misturar. Andei a fazer isso, até que vou ao Burning Man, em 2019.

Que é onde?

No deserto do Nevada, perto de Reno. É um lago seco, constroem uma cidade para 80 mil pessoas, e duas semanas depois tiram tudo, não está lá nada. Tem muitas instalações de arte em que as duas estruturas principais são o man, o homem, e o templo. Queimam o homem no sábado, tudo cheio de música, 80 mil pessoas, uma loucura completa, e no domingo queimam o templo, 80 mil pessoas em silêncio, ouves o crepitar das chamas. Muita energia, uma vibe muito new age. Saio do Burning Man e vou para o Brasil, para Florianópolis, e faço um curso de hatha ioga de 500 horas, completamente imersivo, e começo a abrir o corpo e os nadis.

Nadis?

Tal como as veias carregam o sangue, os nadis carregam a energia. Começo a abrir isto tudo, a expandir a mente, e a tocar em bares com o Haani, um amigo brasileiro que conheci no Burning Man, criamos um DJduo a que chamamos Txaiman. E aí sinto-me bem, porque tenho o meu amigo que há 18 anos é DJ. Estou lá três meses, vou para Tulum a convite da Zohar, uma amiga mexicana que tinha um pedaço de terra na reserva natural de Sian Ka’an. Estamos em dezembro de 2019. E vamos para lá como coletivo de artistas, 12 pessoas, viver no meio da natureza, sem água nem luz. Chego lá em dezembro de 2019, a covid começa em março. Ficamos 12 pessoas presas na reserva. Mas como havia outras pessoas da música, artistas, começámos a fazer festas, aí com 80 pessoas. E eu entrei nisso e a gostar, mas ainda um bocado na brincadeira. Depois todos os DJs que eu admirava estavam lá e ficavam uns dias na nossa casa. Um dia faço uma festa e aparece um tipo mais velho, Fernando del Sol, que é o líder de um campo do Burning Man bastante conhecido, um ‘baba’ vestido de branco, e diz-me: ‘Gosto muito desta vibra. Não queres tocar na nossa festa?’. Eles tinham lá uma espécie de hotel, Treehouse Tulum, onde estavam hospedados. Eu nunca tinha tocado sozinho, a não ser num bar, uma coisa pequena. Estamos a falar de uma festa de uma coisa super conhecida dentro do meu estilo…

Uma grande responsabilidade.

Grande responsabilidade e com 400 pessoas. Pior: o meu amigo brasileiro, que era a minha ‘muleta’, volta para o Brasil. ‘Agora que tenho oportunidade de tocar numa coisa que sempre quis, ele vai-se embora. Não consigo fazer isto sozinho. Mas vou fazer’. Aceito o desafio, vou lá tocar, e o Haani até volta nesse dia e vai lá tocar comigo. Mas aí já ganhei a minha pujança.

Já te tinhas emancipado.

Já tinha conquistado o meu medo. ‘Agora vou em frente’. E toco numa festa com 400 pessoas, tenho um sentimento que nunca tinha tido na vida de ser o centro de toda aquela energia. Também tinha feito muitas cerimónias de psilocibina, o componente activo dos cogumelos mágicos, e também ayahuasca, peyote, DMT, tepezcohuite várias vezes, já tinha entrado muito nesse mundo da medicina do México, e, com a música, porque é tudo vibração, sentes muito as pessoas. Uma festa espetacular – e estou lançado. Nessa altura chamava-me Dark Wizard [risos], Mago Obscuro. Estou na meca da música eletrónica, toquei numa festa importante, do nada começo a ter visibilidade. Sou convidado para uma residência artística no Papaya Playa Project, um dos maiores hotéis de Tulum, onde tocam todos os DJs do mundo, e desenvolve-se o meu personagem artístico. Então vem o Nãda, que significa ‘tom’ ou ‘frequência’ em sânscrito, a energia que se move dentro de nós e em tudo. Por isso eu digo que sou um alquimista de frequências, não sou um DJ. O Nãda nasce e começo a ser conhecido dentro daquele mundo. Podia ter sido na Amadora, mas foi em Tulum, que é a meca da música eletrónica. Começo a tocar com aqueles que são os meus ídolos, começo a crescer, a crescer, a crescer. Por outro lado já tinha 40 anos, não era um miúdo iludido com aquilo, era uma felicidade mais…

Consistente?

Sim, sempre com calma, mas coisas bonitas a acontecer. Quando a pandemia passa, vou para a Cidade do México, para Oaxaca, começo a tocar aqui e ali, às tantas tenho o meu primeiro festival na Califórnia. Convidam-me para tocar com uma comunidade de Los Angeles, depois toquei em Nova Iorque, em Denver, em Washington DC, em todo o sítio e mais algum. No fundo existe uma comunidade nómada que se move à volta do mundo entre Ibiza, Mikonos, Tulum, e todas essas pessoas se conhecem e criam esse tipo de música e de vibração. Faço uns tours – Panamá, Costa Rica, Guatemala. Sempre a tocar e a viajar. Vim à Europa, toquei no Líbano, em Inglaterra, e vou construindo isto. A certa altura estou em Tulum e… lembras-te do Café del Mar, do Buddha Bar, essas coisas?

Muito bem.

Hoje em dia há uma coisa que é o Café de Anatolia. São uns tipos da Macedónia que criaram um movimento, mais que uma label, de música folktrónica, ou etnohouse, ou seja, usam folclore misturado com música eletrónica. E eu, como sempre gostei de música mais mística, entro nisso, através de um dos fundadores, o Nick. E dizem-me: ‘Gostávamos de fazer uma festa do Café de Anatolia em Tulum, podes-nos ajudar?’. E eu sugiro: ‘Por que não fazemos um live set em Tulum?’. E ele: ‘OK, vamos fazer’. Reúno os meus amigos – Tulum tem muitos criativos -, uma amiga é realizadora de cinema, mais dois operadores de câmaras, dois operadores de drones, mais o hotel de uma amiga.

E fazem o vídeo. O que eu vi parecia altamente profissional.

Mas não é nada. Fiz isto com 800 dólares – paguei 200 dólares a cada. Mas é profissional ao mesmo tempo porque são pessoas criativas que acreditaram no projeto. Isto em março de 2022. Vou para os EUA, faço o meu tour – Los Angeles é onde toco mais. E vou para o Burning Man. O Burning Man não é um festival, é uma comunidade que se organiza. Ninguém é pago, não há line ups, não há telemóvel. O tempo não existe, o dinheiro não existe, vives noutro mundo. Estou lá 15 dias e saio na segunda-feira, ligo o telefone na terça e tenho centenas de mensagens. O que aconteceu? No sábado tinha saído esse vídeo. Eu nem sabia quando ia sair, Tinha mandado e tinha-me esquecido. Sai o vídeo. Em três dias tem 150 mil visualizações. Passaram-se 9 meses, estamos com 4 milhões e 600 mil visualizações. E recebo mensagens do Paquistão, da China, das Maldivas. Não sei se é a energia que eu transmito, mas entrou muito nesta onda da espiritualidade pela música. Não que tivesse essa intenção direta, mas as pessoas quase começavam a ver como xamã, ainda por cima com este ar de Jesus Cristo… O que gostei muito é que diziam: ‘Libertei-me’, ‘A música tirou-me da minha depressão’, ‘Tirou-me da ansiedade’. O que me fez cada vez mais acreditar que aquilo que eu criei, que era a ideia de um alquimista de frequências, é verdade.

Entretanto também estiveste na Colômbia, não foi?

O que é mais ou menos normal e também me aconteceu é passar de ser DJ para ser também produtor de música. Comecei a produzir os meus próprios temas, já tenho dois feitos. Comecei na Costa Rica, aluguei uma cabana com o meu amigo DÂNTE, e fechámo-nos só a criar. Depois fui para a Colômbia terminar a produção num estúdio e, como gosto muito dos instrumentos ao vivo, tenho uma violinista a tocar, uma guitarra elétrica e uma cantora. Vão sair agora no Verão. E filmei também  o meu segundo live-set. O film director é o meu grande amigo mexicano Yamill Villar, o operador de câmara é um colombiano que trabalha com a National Geographic, outro é um expert em drones que veio do Canadá… Uma equipa fantástica. Fomos para cima dos Andes, para o Vale do Cocora, onde tem as palmeiras mais altas do mundo, um sítio lindíssimo. Subimos as montanhas com os equipamentos carregados por mulas, depois vestimos as nossas capas à magos da floresta, e fizemos isto com a violinista, cantora, percussionista e guitarrista a tocar ao vivo. Foi isso que estive agora a fazer na Colômbia. E agora começo o tour na Europa e Ásia. Mas não é aquela ideia de as pessoas irem para a discoteca beber e ouvir ‘martelinhos’. Estas festas hoje em dia são mais tipo um concerto.

E tu és um bocadinho o maestro.

O maestro da energia. Sinto energia a passar por mim e passo-a a outras pessoas.