por Rui Patrício
Hoje deveria continuar a dar os meus dois centavos sobre o tema de há duas semanas (’justiça, ódio e ignorância atrevida’). Mas há que adiar, porque o mundo da justiça é uma animação e impôs-se uma urgência que também me suscita duas moedas pequenas de opinião. Alguns meios de comunicação social estiveram entretidos com o que se chegou a chamar «a debandada» de juízes do tribunal central de instrução criminal, que é o nome (um tanto atoleimado) que leva o tribunal que faz em Lisboa as tarefas instrutórias (em inquérito e em instrução). Ou seja, há um grande número de juízes que lá está e vai sair, diz-se, uns ascendendo à Relação, outros rumando a outros tribunais de primeira instância.
Não é tema para tanta emoção, acho eu. Mas – isso sim – deveria levar a uma reflexão sobre uma questão que se prende com aquela, mas que nela não se esgota, e que já tem sido também noticiada (e façamos fé nesses dados): porque é que há pouca apetência dos senhores juízes para se candidatarem a este tribunal, ao ponto de os lugares poderem ser preenchidos (tem-se também dito, e em dada altura foi até muito comentado) por quem não tem ainda o lastro de carreira que a colocação pediria? Dito de outro modo, em tempos de amor aos provérbios na justiça: porque é que ninguém, passe o exagero, quer casar com a carochinha?
Não sei exatamente porquê, até porque não perguntei aos candidatos e não candidatos (seria inapropriado, mesmo que recebessem ou falassem com advogados – o que é, aliás, cortesia que vai escasseando, como se os causídicos tivessem peste). Mas tenho as minhas desconfianças, palpites e suposições. Vale o que vale. Mas deve valer alguma coisa, até porque essas desconfianças, palpites e suposições são prova indireta e, como venho aprendendo em muitos tribunais nos últimos anos, a prova indireta serve para quase tudo e tem muita força, sobretudo quando não há mais nenhuma, e tapa buracos a contento. Ora, eu, bom aprendiz, aferro-me a ela e digo que as minhas suposições apontam para uma causa principal (deve haver outras, e até as suponho, mas aqui fico por esta): o assédio. Sim, o assédio. Não o sexual, nem o moral. Nada disso. Mas o assédio da comunicação social e da opinião publicada sobre muitos dos processos que vão parar ao tribunal central de instrução criminal. Assédio do intenso, do que invade, constrange, enerva, deprime, destrói. Assédio difícil de suportar, difícil de gerir. Ora, com uma carochinha destas, admiram-se da alegada falta de interesse? Era sobre isto que se devia refletir, a começar pelos autores do assédio, que tendem a só medir, avaliar e criticar os atos (reais ou supostos) dos outros, e não os seus.
Perante tanto e tão intenso assédio, das três, uma: ou um candidato à colocação gosta do assédio e deslumbra-se com as luzes, o que não será para muitos; ou é-lhe indiferente, e tanto se lhe dá, e deixa andar, carimba aqui, encolhe os ombros ali, e tanto monta, o que espero que não seja para muitos; ou não lhe é indiferente, e então é preciso muita resistência e também muita capacidade de aguentar e porfiar, o que gosto de crer que é para vários, mas, perante outras opções, muitos talvez prefiram, o que compreendo e respeito, rumar a outros ares. Alguns destes ficarão, quero crer (quero mesmo, aliás a bem da nação, em sentido próprio e sem ironia), mas talvez não sejam muitos. Isto sim, merecia, comoção não digo, mas pelo menos um bocadinho de reflexão. Trabalhosa, sim, incómoda, talvez, mas seguramente útil e, sobremaneira, importante. Embora porventura tardia, se as tarefas de instrução (esse empecilho) estiverem, como se anuncia e até reclama, com os dias contados.