Eddy Merckx. O sítio do Canibal Amarelo

Nasceu na Bélgica mas era em França, no Tour, que se sentia em casa. Ganhou cinco Voltas a França e foi, muito provavelmente, o maior ciclista de todos os tempos. Passou da vida real para o lugar inalcançável dos grandes mitos. As suas façanhas ficaram para a lenda.

Meensel-Kiesegem. no Brabante Flamengo, não parecia destinada a entrar na História da Humanidade. Mas entrou e lá ficará para sempre por mais difícil que seja pronunciar-lhe o nome corretamente. A culpa é de Édouard Louis Joseph Baron Merckx, uma daquelas figuras imensas destinada a entrar no lugar inalcançável dos grandes mitos. Bem, inalcançável não é porque houve vários que lá chegaram. Por isso leiam este inalcançável como um espaço para muito poucos eleitos. Sint-Pieters-Woluwe, outra povoação que é preciso procurar no mapa com uma lupa, já fica na região de Bruxelas. Merckx passou lá a infância. Os pais eram proprietários de uma mercearia. Nascido no dia 17 de Junho de 1945, completou há pouco 78 anos, Eddy, como era tratado, tratou de colecionar um ror de títulos não totalmente desprezíveis, por muito que o velho Camillo Castelo Branco pudesse cuspir-lhes em cima com a sua prosa plena de veneno: Cavaleiro da Legião de Honra, Comandante da Legião de Honra, Oficial da Ordem de Leopoldo II, Ordem do Mérito da República Italiana, Marca Leyenda, Mendrisio d’Or, Prémio de Mérito dos Desportos da Bélgica, doutor honoris-causa da Vrije Universiteit de Bruxelas, Cidadão Honorário de Bruxelas. Se cada uma destas distinções valesse uma medalha vistosa, o homem andaria por aí a tilintar como os apalhaçados marechais da Alemanha nazi. Por outro lado, se tivesse nascido nos dias de hoje, estaria com o organismo carregado de ritalina. Era um miúdo hiperativo que não parava quieto e queria dedicar-se a todos os desportos que lhe ficassem ao esticar da mão. Jules Merckx e Jenny Pittomvils, os pais, que a seguir a Eddy ainda produziram um par de gémeos, Michel e Micheline, andavam com a cabeça à roda por causa do seu primogénito. O miúdo era bom em tudo: basquetebol, futebol, ping-pong e boxe. Mas parecia não conseguir fixar-se em nenhuma atividade em particular até descobrir o prazer de pedalar uma bicicleta. Na primeira tentativa que fez de abarcar um percurso caiu com as ventas no empedrado e isso, para ele, tornou-se um desafio e não uma desilusão. Como um domador de leões do Circo Areola Paramés tratou de aprender a dominar o aparelho de duas rodas. E de que maneira o fez!

Aos 7 anos já Eddy ia e vinha da escola de bicicleta todos os dias e sonhava ser como o seu herói: Constant Ockers, mais conhecido pelo diminutivo de Stan. Ockers nasceu no dia 3 de Fevereiro de 1920, em Borgerhout, e morreu no dia 1 de Outubro de 1956 em Antuérpia. Foi provavelmente o melhor dos ciclistas profissionais belgas da era pré-Merckx e embora nunca tenha vencido a Volta à França ficou por duas vezes no segundo lugar (1950 e 1952). O jovem Merckx ultrapassaria de forma inequívoca o seu ídolo de infância.

Em 1961, já Ockers tinha ido pedalar pelas estradas da eterna saudade, Eddy venceu a primeira competição ciclística. Coisa de amadores, como está bem de ver, não se salta para o selim do profissionalismo com a facilidade com que o grande Baptista Pereira atravessava o Tejo a nado. Mas serviu não apenas para dar confiança ao jovem Merckx e, sobretudo, para o convencer que era aquilo que queria para a sua vida. Tinha 16 anos e foi chamado por Félicien Vervaecke, um dos grandes nomes do ciclismo belga da época que conseguira um segundo e dois terceiros lugares no Tour, para treinar com ele.

O Canibal

Os belgas gostam de dizer, por chalaça, que a França é aquele país grande ao sul da Bélgica, mas a verdade é que sentem uma irresistível atração por tudo o que é francês. Depois do tal triunfo de estreia em Petit-Enghien, Eddy conquistou o primeiro lugar numa corrida de quermesse, algo muito típico na Bélgica e na Holanda, provas desportivas realizadas a par de festarolas de aldeia. Ganhou o vício.

Durante todo o ano de 1962, participou em 55 competições. Como seria inevitável passou a ser, concomitantemente, um aluno fraco. Aliás, nem se dedicava aos estudos. Ouvia os professores debitarem a matéria enquanto olhava pela janela e espreitava a lisura dos campos da Flandres que o chamavam para pedalar até ao horizonte. A certa altura desistiu. A escola não lhe dava nada que ele precisasse de saber para se lançar na aventura de querer ser o maior ciclista do mundo. Precisava de treinar e de competir o mais possível. E foi isso mesmo que fez. A sua vitória na Volta à Bélgica para amadores foi encarada com naturalidade. Bem como a chamada para a equipa nacional que participou nos Jogos Olímpicos de 1964, em Tóquio. Terminou no 12º lugar. Não ficou satisfeito. Não ficou mesmo nada satisfeito.

No ano seguinte entrou para o circuito profissional assinando um contrato com a equipa Solo-Superia, patrocinada por uma marca de margarinas e comandada por um dos grandes sprinters belgas, Rik Van Looy, o Imperador de Herentals (pequena cidade onde vivia), vencedor da Volta a França e da Volta a Espanha por pontos, vencedor do Prémio de Montanha da Volta à Itália e do Prémio de Combatividade do Tour. Eddy entrava no mundo dos grandes. Por uma porta pequena mas não certamente pela porta do cavalo.

Édouard Louis Joseph venceu 525 provas ao longo da sua carreira de 18 anos. Foi a filha de um dos seus colegas de equipa que, ao ouvir a forma como o pai se queixava de que Merckx não facilitava de forma alguma e não deixava ninguém ganhar uma corrida por mais insignificante que fosse, que o tratou pela primeira vez por Canibal. O epíteto ficou. Só na Volta à França somou vitórias em 34 etapas, foi primeiro em 1969, 1970, 1971, 1972 e 1974; vencedor por Pontos em 1969, 1971 e 1972; Prémio de Montanha em 1969 e 1970; Prémio do Combinado em 1969, 1970, 1971, 1972 e 1974; Prémio de Combatividade em 1969, 1970, 1974 e 1975. Canibal sim! Sedento de vitórias como nenhum outro.

Instinto assassino

Em 2019, Eddy estava orgulhosamente em Bruxelas. A capital da Bélgica tinha sido escolhida para servir de partida para a primeira etapa da Volta à França desse ano e aproveitou-se o momento para comemorar o 50º aniversário da sua primeira vitória no Tour.

A competitividade de Merckx fez dele um verdadeiro assassino. A sua gaveta das medalhas teve de passar a ser um baú: Volta a Itália – vencedor em 1968, 1970, 1972, 1973 e 1974; vencedor por Pontos em 1968 e 1973; Prémio de Montanha em 1968: 24 vitórias em etapas; Volta a Espanha: vencedor em 1973; vencedor por Pontos em 1973; Prémio do Combinado em 1973; vencedor de 6 etapas. Pelo meio, um ror infinito de vitórias em outras grandes competições, desde a Volta à Sardenha à Volta à Catalunha, desde o Dauphiné Liberé ao Paris-Roubaix e à Volta à Flandres, campeão do mundo em amadores em 1964 e, depois, campeão do mundo de profissionais em 1967, 1971 e 1974, and so on and son on…

Canibal mas não santo

É fácil escrever sobre Édouard Louis Joseph e, ao mesmo tempo, difícil escrever sobre ele algo que nunca tenha sido escrito. Por isso libertei-me a mim próprio dessa obrigação. Agora que la Grande Boucle percorre as estradas do Hexágono, trazer Eddy Merckx à conversa é praticamente inevitável. Mas há momentos que ele gostaria de não ter vivido, sou capaz de apostar nisso singelo contra dobrado como nos livrinhos de cowboys do Texas Jack. Por exemplo aquele dia 1 de Junho de 1969 em que, no final de uma etapa da Volta a Itália, em Savona, o seu teste anti-doping deu positivo por anfetaminas. Ah pois! O Canibal também não foi nenhum anjo. O choque foi duro. Era a terceira vez que participava no Giro e viu-se expulso à 16ª etapa. Toda a gente estava crente de que ele iria repetir a vitória do ano anterior mas a guilhotina da opinião pública caiu-lhe em cima do pescoço. Defendeu-se como pôde: «Já fui testado em oito etapas. Agora na nona é que dou positivo? Ainda por cima numa etapa sem interesse, corrida a 30 km por hora e sem nada de especial para garantir na classificação…». Ficou o lamento, mas não houve perdão.

O Canibal, que na altura representava  a equipa da Faema, foi à luta. Estava nos alicerces do seu feitio. Numa entrevista concedida ao Le Figaro lançou o contra-ataque: «Não tenho dúvidas que fui vítima de sabotagem. E vou apresentar recurso». Valeu a pena. A Federação Internacional de Ciclismo Profissional deu-lhe razão e levantou-lhe a pena de suspensão mesmo a tempo de Merckx participar na Volta a França que, não por acaso, venceu. Mas o caso ficou-lhe atravessado na garganta como uma espinha de safio. Muitos anos mais tarde voltou à carga: «Esse episódio marcou a minha vida. E foi absolutamente obscuro. Nesse dia fui o único ciclista a ir ao controlo. Antes, houve controlos individuais feitos dentro da equipa. Se tivessem dado positivos não participaria na etapa. Senti-me envergonhado e pensei que era o fim da minha carreira. Foram dias muito, muito difíceis».

Passaram-se os dias difíceis pela garganta da ampulheta. Um mês e meio para ser mais preciso. No dia 15 de Julho, durante a sua primeira presença no Tour, Eddy enfrentou a dureza do Tourmalet de dentes cerrados batendo o seu companheiro de equipa Martin van Den Bossche e os seus principais adversários, Roger Pingeon e Raymond Poulidor. Mas não se ficou por aí. Logo de seguida iniciou um fuga louca e solitária durante 130 quilómetros cruzando a meta com mais de oito minutos de avanço sobre o segundo. O povo das estradas gritava o seu nome até à rouquidão. Os grandes especialistas ficavam boquiabertos. Parecia que não havia limites para o Canibal da Camisola Amarela. Cinco dias mais tarde tornava-se pela primeira vez vencedor da Volta à França. A vingança estava consumada. Não havia sabotagem que o impedisse de conhecer a glória nos Campos Elísios.

Oito minutos. Eis um período de tempo que também marcou a carreira de Eddy. Foi com oito minutos de avanço que, em 1971, na 11ª etapa do Tour, o espanhol Luis Ocaña cruzou a meta em Orcières-Merlette à fente de Merckx. Um jornal francês berrou em manchete, impressionado com a prova de Ocaña e com a quebra do belga: «Le Cannibale mord la poussière!». Eis o tipo de título que bulia com todos os nervos do corpo de Eddy. «Mordi a poeira, eu?», terá questionado de si para si. Ainda por cima havia, entre ambos os ciclistas, um clima de rivalidade ao nível da eletricidade estática. Basicamente não se podiam ver. E se eram obrigados a ver-se que fosse um a olhar para as costas do outro.

No dia 12 de Julho, uma terrível tempestade caiu sobre o pelotão. Os trovões rebolavam pelas escarpas das montanhas e os relâmpagos disparavam no céu. A 14ª etapa, entre Revel e Luchon, era uma descida vertiginosa. A estrada encharcada aconselhava a não se correrem riscos desnecessários. Mas o Canibal tinha o sangue a ferver. Com o sabor da raiva na boca e num cenário apocalíptico, Eddy lançou-se numa das mais impressionantes exibições de toda a sua carreira descendo o col de Menté a uma velocidade enlouquecida levando Ocaña nos calcanhares. As quedas começaram a multiplicar-se mas, na frente da corrida, Merckx não olhava para trás. Nunca abrandou o ritmo. Nem quando Luis, apanhado num trambolhão coletivo, mordeu o alcatrão e teve de abandonar o Tour. Foi internado num hospital com diversas contusões graves. «Não consigo gozar o prazer desta vitória», diria Eddy no final. «Queria ter disputado a etapa em condições iguais. Assim não tem valor. Não posso ficar contente ao ver o meu adversário desistir por causas dos ferimentos».

Já Ocaña foi menos cavalheiro quando, em 1973, venceu a Volta a França mas sem a presença de Eddy que, nesse ano, decidiu dedicar-se ao Giro e à Vuelta. Cheio de si próprio, Luis resolveu soltar uma piadola sem graça e que só o apequenou: «Agora tenho um cão e chamei-lhe Merckx. Sou o chefe dele e vou continuar a ser o chefe». Nunca mais venceria um Tour. E teve de assistir, de bico calado, a nova vitória do Canibal no ano seguinte. Em França, Eddy sentia-se em casa e não era nenhum Ocaña que lhe iria pôr os pés em cima da mesa da sala dos Campos Elísios.