Pouco tempo depois da polémica sobre o cartoon do primeiro-ministro que o próprio classificou como «racista», surge outra discussão também sobre um cartoon e também envolvendo o ‘racismo’.
É caso para dizer que ‘o racismo está na moda’; não o racismo propriamente dito – felizmente – mas as alegações e acusações de racismo.
É uma palavra que hoje faz tocar todas as campainhas, e por isso cada vez mais é usada na luta política.
Agora foi um cartoon animado, transmitido pela RTP, onde se vê um agente da Polícia a disparar com uma pistola contra alvos que representam raças com diferentes cores de pele. E a fúria do agente vai aumentando à medida que a cor da pele escurece.
Os polícias seriam pois, de uma forma geral, racistas.
O ministro da Administração Interna protestou junto do presidente da RTP, a PSP processou a mesma RTP, e houve explicações.
André Carrilho, responsável pela rubrica onde a emissão do cartoon teve lugar, afirmou que a ideia era visar a Polícia francesa, na sequência do assassínio de um jovem de 17 anos de origem magrebina – facto que deu origem a manifestações violentíssimas por toda a França.
Não sei se a intenção foi essa ou não, mas valerá a pena discutir o alegado racismo da Polícia francesa.
É verdade que os gendarmes são brutos. Eu próprio o confirmei. Mas são brutos porquê? Se calhar porque têm sido, ao longo de décadas, expostos a situações de extrema violência.
Basta lembrar o Maio de 68 em Paris. E os bairros onde a Polícia não pode entrar. E mais recentemente os coletes amarelos. E, pelo meio, sucessivos episódios de perturbação da ordem, com assaltos a lojas, carros queimados, cidades vandalizadas.
A violência da Polícia francesa não será obra do acaso. Corresponderá à violência dos desacatos que tem tido de enfrentar. Verdadeiras situações pré-insurreccionais.
E, depois, a Polícia tem contra si a maioria da comunicação social. O cartoon que citamos é, aliás, um exemplo disso.
No caso do jovem de 17 anos morto, as notícias referem quase sempre «um jovem baleado numa ação policial». E algumas adiantam que foi morto «com um tiro na cabeça».
Ora, terá sido mesmo assim?
Tanto quanto apurei, a história começou com o roubo de um carro (de cor chamativa, amarelo) por um grupo de três jovens. Nenhum deles teria carta, pois o que se sentou ao volante não tinha idade para conduzir.
O carro percorreu várias artérias de Paris, deu nas vistas e começou a ser perseguido pela Polícia – mas não parou. Em fuga, meteu-se por ruas em sentido proibido. Até que a Polícia conseguiu imobilizá-lo. Não se tratou, pois, de uma ação de rotina, como se tentou fazer crer: tratou-se de uma perseguição por condução perigosa.
Aí, dois agentes aproximaram-se do carro e um abordou o condutor. Verificou que o jovem não tinha carta. E a partir daqui as versões divergem: a avó do jovem diz que o agente disparou antes de o carro arrancar (e que este arrancou depois de o jovem tirar o pé do travão, pois era um veículo automático), o agente diz que disparou porque o carro arrancou.
Mas o jovem não foi baleado na cabeça – foi atingido num braço: a bala atravessou-o, entrou de lado no tronco e atingiu o coração. A morte foi imediata.
É uma história horrível. Qualquer morte nestas circunstâncias é horrível. Mas isso não dá aos jornalistas o direito de a contarem à sua maneira para afeiçoarem a realidade à ideologia.
Se o jovem tivesse sido morto com um tiro na cabeça, teria sido um assassínio a sangue-frio, eventualmente um crime de ódio, com conotações racistas, pelo facto de o jovem ter origens magrebinas; tal como ficou descrito, terá sido uma morte acidental.
Enquanto diretor de jornais tive sempre um lema: não guardar notícias na gaveta. Publicar tudo o que se conseguisse apurar e tivesse dignidade para ser noticiado, quer fosse conveniente ou inconveniente.
Mas esta atitude supõe um compromisso com a verdade.
É preciso noticiar com verdade.
Não é admissível que, para sustentarem as suas teses, os jornalistas torçam a realidade.
No caso da morte deste jovem, lamentável a todos os títulos, não é claro que a intenção do agente fosse matar nem que se tenha tratado de um episódio racista.
Mas dá jeito dizer que sim.
Adiante-se, como conclusão, que a fragilização das autoridades legítimas nos países do Ocidente só pode contribuir para um objetivo: semear o caos.
A Polícia tem a obrigação de respeitar a lei; mas as pessoas têm a obrigação de respeitar a Polícia.
Atacá-la, acusá-la, achincalhá-la, só pode agradar aos interessados na subversão deste modelo de sociedade.
Nenhuma democracia caiu por excesso de autoridade; mas muitas já caíram por falta de autoridade.