Era perigoso caminhar pelas ruas de Moçambique. Entre os mitos mais antigos e conhecidos está a crença de que pessoas com albinismo (PCA) podiam ser usadas em feitiços obscuros – no fabrico de poções, por exemplo, ou em amuletos e pós mágicos. Quem os fizesse, seria banhado com sucesso; quem os realizasse, ganharia (muito) dinheiro.
Em comparação com outras partes do mundo, a prevalência da PCA em África é maior – os números são estes: uma PCA por 1000 habitantes no continente, comparadas com uma em 30 mil noutras regiões. E o que também prevalece é a exclusão social.
“Muitos de nós não conseguimos estudar”
O professor Francisco Macamo reconhece, ao Nascer do SOL, que a discriminação no país é um problema estrutural e que surge como um obstáculo para a melhoria da qualidade de vida. “A discriminação origina um outro problema: a pobreza, que está muito acentuada em Moçambique. Muitas pessoas com albinismo vêm de famílias pobres, sem condições mínimas para sobreviver. Falta dinheiro para comprar protetor solar, roupas com mangas compridas e chapéus”.
Para que haja dinheiro, é preciso um bom trabalho. Para haver um bom trabalho, é preciso diplomas. Mas para haver diplomas, para quem tem esta condição, é também preciso um esforço a dobrar. “Muitos de nós não conseguimos estudar. Nascemos com problemas de vista e temos dificuldade em enxergar para o quadro. Há professores que não têm tempo ou paciência para ajudar. Devia ser fundamental que quem tenha albinismo esteja sempre nas filas da frente das salas de aula e, nos exames, os caracteres dos enunciados sempre maiores. Ainda há muitos desafios, o que faz com que muitos de nós desistam de querer continuar a estudar”, explica Francisco Macamo.
O grande desafio foram os anos de 2015 e 2016 com o aumento dos raptos e assassinatos de pessoas com albinismo. Saiu da cidade de Maputo por essa altura em direção à província moçambicana de Zambézia e acabou por aterrar num posto administrativo perto da fronteira com Malawi, para trabalhar como diretor de uma escola, conta o professor, que viu a discriminação nos olhos dos seus colegas de trabalho. “Mesmo aqueles que achamos que estudaram o suficiente têm preconceitos. Eles não me receberam como diretor, esperavam – como me disseram – que eu fosse trabalhar nas limpezas, ou um trabalho parecido. Mostraram-me desprezo e pedi para ser substituído. Mas não aceitaram.” Com o tempo e com a proximidade, o professor foi sendo levado a sério, e o preconceito atenuou. “Começaram a reconhecer-me como gestor”.
Era sabido que muitos malawianos entravam em Moçambique para raptar pessoas com albinismo para fins sombrios. No ano de 2015, assassinaram uma criança a cerca de 15 quilómetros de onde Francisco Macamo estava a trabalhar. Pediu, novamente, para ser transferido, e foi, mas não se escapou de apanhar um susto. “Na noite antes de ir embora, entraram malfeitores em minha casa. Apalparam e queriam ver as cabeças das crianças que lá estavam, depois foram embora. Acho que estavam à minha procura”, recorda.
Foi transferido para Maputo e lá se encontra a trabalhar desde janeiro de 2016. Mas mesmo na grande cidade, a discriminação permanece nas ruas, nos atos, nos olhares e nas atitudes. “O estigma ainda vai ser difícil de superar”, afirma.
“A sociedade nos olha como inaptos”
Também Anselmo, de 29 anos, que vive na cidade de Inhambane, a cerca de 400 quilómetros de Maputo, relembra o ano difícil (e perigoso) de 2016, não muito distante do tempo. “Era assustador. Todo o mundo [com albinismo] precisava de ficar trancado em casa mesmo.” O acesso à informação ajudou a desmistificar ideias antigas, mas nas zonas menos urbanas de Moçambique, algumas ainda param no ar. “Talvez uma vez ou outra por ano tenha aparecido uns ou dois casos de assassinatos por todo o país”.
Nos dias que correm, estas práticas, mais radicais, não são tão frequentes como antigamente; são os mais pequenos atos, mas com grandes consequências, que perduram na sociedade moçambicana, a começar pelo contexto escolar.
“Havia uma exclusão da minha pessoa. Na disciplina de Educação Física, os professores me tratavam de forma especial; para mim, aquilo era uma exclusão. Só me deixavam no banco. E só no final é que me davam a nota da avaliação que achavam que eu merecia”, conta Anselmo, que também diz ter sido alvo de um tratamento desigual pelos seus colegas de turma. “Sentava-me sozinho na carteira desde o primeiro dia do ano curricular até ao último. Ninguém se queria sentar comigo. Eu queria ficar sempre mais à frente para ter mais visibilidade. E eles [os colegas] justificavam-se dizendo que não queriam estar tão perto, mas sabia que era porque não queriam estar ao meu lado.”
Anselmo terminou o curso de Técnico de Nutrição no ano de 2018, mas só este ano é que conseguiu um emprego. Neste intervalo de tempo, afirma que esteve numa “batalha” para encontrar uma vaga. “A sociedade nos olha como inaptos. Mesmo com um diploma, eles [as pessoas] nos olham como se precisássemos de ter um tratamento especial. Como se o nosso trabalho só pudesse ser o de trabalhar com um computador.”
O universo do trabalho não é diferente do da escola no que diz respeito à discriminação. “Há mesmo uma dificuldade para podermos [pessoas com albinismo] ter trabalho. Primeiro, sem formação profissional já fica difícil ter emprego. Alguns trabalham como auxiliares de educação, que é uma categoria mais baixa. Mas mesmo aí. eles não nos deixam ficar com o lugar. Dizem que o cargo envolve atividades muito pesadas e muita exposição ao sol. Consideram as pessoas com albinismo como inaptas.”
É na informação de qualidade, ou na falta dela, que Anselmo acredita estar a origem dos preconceitos que as pessoas com albinismo enfrentam em Moçambique. E é com o toque, com o diálogo, com a aproximação e com a comunicação, que esses “tratamentos especiais” são desconstruídos. “Quando a pessoa fica próxima de mim e acaba conhecendo a minha rotina, que é a mesma rotina que a dela, é que nota que não há nenhuma diferença. E as pessoas não acreditam na informação. Só acreditam ao conviverem com as pessoas com albinismo”.
Os avanços nos direitos das pessoas com albinismo têm ganhado terreno com a ajuda as associações, que “estão a fazer um grande trabalho”, refere Anselmo, mas continua a ser “um desafio” para o Governo conseguir resolver as discriminações de que são alvo. “As pessoas não acreditam quando dizemos que somos iguais. E isso interfere na inclusão social. Se muitas pessoas com informação e com níveis superiores de educação não acreditam que pessoas com albinismo são iguais, então já se pode imaginar o que pensará uma criança da comunidade que não tenha acesso à informação e que ainda acredita nos mitos”, conclui.
Em defesa das pessoas com albinismo
A Kanimambo nasceu no ano 2016 e atua em quatro artérias: Maputo, Nampula, Inharrime e Parque Nacional de Gorongosa. Teve o seu reconhecimento legal em Maputo. Fonte da associação explica ao Nascer do SOL que, desde os tempos antigos, “sempre houve uma atitude discriminatória e de desprezo pelas pessoas com albinismo. Mas no triângulo de Moçambique, Malawi e Tanzânia, veio juntar-se à discriminação um fenómeno novo, com origem na segunda década deste século, que é a perseguição com vista à mutilação e assassínio” de PCA para as tais poções e feitiços. É uma questão de negócio, que pode atingir “dezenas de milhares de euros por cada pessoa morta”.
A Associação aponta os mesmos problemas já aqui referidos: a dificuldade de integração social e pouco, ou quase nenhum, poder financeiro. “Em 2018, prestámos assistência a quase 400 pessoas com albinismo, especialmente crianças”, conta, acrescentando que os eixos de atuação são “na consciencialização da população, envio e distribuição de “materiais de proteção” para Moçambique, como protetores solares, cicatrizantes e chapéus, e, por último, nas “missões médicas de oftalmologia e dermatologia”.
No que diz respeito ao governo moçambicano, a Kanimambo “vem insistindo que é possível o estabelecimento de uma política de apoio cobrindo a quase totalidade do país com alta eficácia e custo muito reduzindo”, diz ainda. O que é preciso, é que “se faça um apelo a ONG adequadas, se incentive a cooperação entre elas, para que a burocracia se reduza”, para que se possa melhorar os cuidados a ter com as pessoas com albinismo.