Crianças. ‘Molhei-a toda com água fria. Foi remédio santo’

É uma das polémicas do momento: mães que submergem filhos na piscina para parar com birras; outras que tomam banho com as crianças enquanto acariciam os seios. Quais os limites que os pais devem ter com os filhos?  

Desde o fim de semana passado que não se fala de outra coisa nas redes sociais. As críticas multiplicam-se, o caso é espalhado, os vídeos de reação não acabam e o caso já chegou ao Ministério Público. Joana Mascarenhas, uma influencer portuguesa de 35 anos, partilhou com os seus seguidores a «fórmula mágica» que encontrou para que a sua filha, de três anos, parasse com as birras: água fria. Mas o que é que realmente pode acontecer? Estaremos realmente perante um caso de maus tratos? Poderá realmente esta mãe perder a guarda da filha? 

Joana começou uma série de vídeos partilhados com a #maternidadecomaJu, onde desabafa sobre o trabalho que tem tido no último mês com a filha de três anos, Julieta, que tem sofrido com «alguns terrores noturnos». A menina acordava a meio da noite a gritar, começa por explicar a influencer, acrescentando que por serem tantos episódios, acredita que a criança «ganhou uma manha». «A certa altura já não tinha terrores noturnos, só acordava a fazer birras», afirmou. Então, sempre que a menina pedia colo, ou queria ir para a cama dos pais porque se «sentia sozinha», a mãe não cedia: «Pensei que estava a criar uma rainha», revela. 

Nos vídeos, Joana conta que num dia em que estavam na piscina, Julieta começou a chorar a pedir à mãe que a fosse buscar porque não conseguia andar:  «Chorou durante 15 minutos sem parar». E Joana lembrou-se que a filha odiava água fria: «Por isso, peguei nela e submergi-a até ao pescoço na piscina. Aquilo tirou-lhe o foco da birra, porque ficou com frio. Desde então nunca mais fez birras na piscina», congratulou-se. Após esse episódio, ao perceber que a água acabava com o choro da filha, a mãe fez o mesmo à noite. «Antes de ontem, eram para aí cinco da manhã, e a Julieta acordou a berrar porque queria que fosse para perto pé dela (…) Peguei nela, levei-a para a banheira e dei-lhe um banho de água fria ainda com o pijama. No final despi-lhe as roupas molhadas, ficou só de fralda, embrulhei-a numa toalha deitei-a na cama e dormiu logo durante três horas. (…) Hoje dormiu tranquilamente e às 7h20 veio para a nossa cama e deitou-se calmamente, sem chorar. Quem ganhou?», questionou Joana Mascarenhas.

 

O que poderá acontecer?

As vozes críticas fizeram-se ouvir, tanto por pessoas anónimas, como por profissionais e outras influencers que condenam o comportamento da mãe, alegando que a criança é vítima de «violência doméstica». E, há mesmo quem defenda que Julieta seja retirada a Joana Mascarenhas. 

Na terça-feira, o Ministério Público anunciou que abriu um inquérito à mãe. «O inquérito corre termos na Secção Especializada Integrada de Violência Doméstica de Lisboa», disse a PGR.

Segundo a advogada Sofia Matos, «trata-se de uma influencer cujo objetivo é esse mesmo, o de influenciar a opinião de quem a segue nas redes sociais. As alegações que faz podem ser verdade ou não. Pode pretender apenas gerar polémica ou então, de uma forma pouco inteligente, confessar a prática de um crime de violência doméstica contra a sua própria filha, punido com uma pena de prisão que pode ir até 5 anos», explicou a especialista.

Tratando-se de uma vítima menor, conta Sofia Matos, terá necessariamente de ser aberto junto do Tribunal de Família e Menores um processo de promoção e proteção da menor, até que o processo crime esteja concluído. «Pretende-se com o referido processo de promoção e proteção verificar se a mãe tem ou não condições para cumprir com as obrigações naturais e legais de uma mãe, a de garantir a segurança da sua filha», revela, acrescentando que o Tribunal de Família pode, cautelarmente, afastar a menor da mãe, inibindo-a no imediato, do exercício das responsabilidades parentais. Agora, de acordo com a advogada, o MP vai investigar os factos que são do conhecimento público e chegar a uma de duas conclusões, «proferir despacho de acusação» ou «despacho de arquivamento dos autos». 

 

Como parar as birras?

E, ao que parece, as opiniões têm sido unânimes entre psicólogos e psiquiatras. Mas afinal o que é uma birra? Como devem os pais gerir? Que mazelas podem advir deste tipo de comportamento por parte dos pais?  

Segundo Filipa Castanhinha, Psicóloga Educacional, as birras são normais, em crianças e em adultos. «São processos neurológicos que produzem cortisol e adrenalina (hormonas que estão ligadas ao stress) e que ativam o nosso instinto de sobrevivência primitivo (amígdala, que está ligada ao nosso sistema límbico – e ao nosso sistema nervoso central), que vai produzir 3 tipos de reações: luta, paralisação ou fuga. Neste caso concreto houve um processo de paralisação, e é o que acontece normalmente quando a criança sente medo», explica a especialista, acrescentando que é por isso que as birras «são transversais à idade». 

De acordo com a psicóloga, é preciso reter que as birras «não se fazem, as birras têm-se (porque não são manha, não são intencionais, não são para provocar nem para desafiar os pais)».

«Estão estudadas cientificamente estratégias para parar uma birra de forma mais rápida e eficaz, mas isso não significa que não possam continuar a acontecer», acrescenta Diana Fonseca, psicóloga especializada em Psicologia Sistémica, Familiar e Comunitária. «Nas birras é fundamental dar espaço e tempo à criança para se acalmar, tranquilamente, garantindo que está num local seguro e que os pais estão acessíveis caso precise», explica. Só quando a criança se acalma é que «se conversa sobre a birra, explica os sentimentos envolvidos e o que se espera dela numa situação semelhante».  

E Elsa Rocha Fernandes concorda. Segundo a médica e docente convidada na Faculdade de Medicina de Lisboa, o primeiro aspeto relativamente à gestão das birras pelos pais, e cuidadores, é a normalização e a aceitação que estas «são um elemento do normal desenvolvimento das crianças pequenas». Outro aspeto importante é a prevenção das birras, até certo ponto, e que pode passar por tratar as causas frequentes: o cansaço, a fome ou alguma doença que a criança apresente. «Passa ainda por dar muita atenção positiva à criança, por exemplo, brincar 10-30 minutos por dia ao que a criança escolher; dirigir-lhe elogios; ser consistente (mantendo as regras, que não são alteradas em função das birras) e permitir à criança a hipótese de escolha em certas situações, para que sinta que também tem controlo», afirma. 

Quando a birra não pode ser prevenida «existem práticas e estratégias que podem minimizar o seu impacto: manter-se calmo e firme, com um tom de voz neutro referindo-lhe uma ordem simples. Outro método é a distração, desvio de atenção da criança, retirando-a da sala ou espaço onde se encontra até que se acalme; pode ainda validar os sentimentos da criança, no momento, como sejam a frustração, mas não deve ceder às exigências da criança uma vez que reforçará os comportamentos indesejados», revela. 

 

‘Técnicas de tortura’

Para Filipa Castanhinha, as técnicas relatadas por Joana Mascarenhas fazem lembrar «técnicas de tortura utilizadas na guerra, e há limites que não se passam. A violência, seja ela de que forma for, não é admissível e é punida por lei», garante a psicóloga. «Porque é que a criança parou de chorar? Porque teve respeito? Não, porque teve medo e em vez de se sentir confortável e num ambiente seguro para chorar e para expor as suas emoções, com esses ‘mergulhos’ ela parou de chorar, não porque aprendeu a dormir sozinha ou porque já não tem medo da piscina, mas sim porque agora se contém emocionalmente, porque aprendeu que se chorar, mesmo que a meio na noite, é levada para um banho-maria, porque aprendeu que se chorar é castigada, logo aprendeu a esconder o que sente, por medo e pânico, da própria mãe», lamenta. 

Já Tânia Correia, psicóloga clínica, lembra que crescemos a ouvir a frase «de pequenino se torce o pepino», que temos de «ter mão neles (miúdos)» e «pulso firme». «A geração dos nossos pais contava com orgulho como bastava abrirem os olhos para ficarmos petrificados e cedermos. Resumidamente, aprendemos desde cedo que as crianças são seres inferiores, que precisam de ser torcidas precocemente para se ajustarem, ou seja, que adultos e crianças são adversários num jogo pelo controlo e poder», conta, frisando que «os adultos que mais dominavam a criança eram aplaudidos». 

 Contudo, os tempos são outros, «agora existem (felizmente) mais adultos conscientes das necessidades e direitos das crianças». No entanto, a partir do momento em que uma mãe viola os direitos da criança, nomeadamente o direito a ver a sua integridade física preservada, a ser protegida pelos adultos que a rodeiam e estar em segurança, «estamos perante um cenário de maus-tratos, potenciador de um trauma», garante a psicóloga clínica.  

E as consequências podem ser graves. «Além deste estímulo ao medo, há estudos que comprovam que crianças vítimas de maus tratos e filhos de pais severos aos três anos de idade têm maior probabilidade (em cerca de 50%) de desenvolver psicopatologias como a ansiedade ou a depressão, aos nove anos de idade», revela Filipa Castanhinha, acrescentando que isso influenciará tanto a parte social, emocional, física e até cognitiva (com consequências também na parte académica) dessas crianças.

Além disso, segundo Diana Fonseca, a partilha destes conteúdos online remete para a exposição destas crianças que «não pediram para ver as suas vidas expostas» e «terão provavelmente em adulto acesso a todos os conteúdos, bem como aquilo que foi falado na internet sobre a sua família o que poderá fragilizar ainda mais a criança». 

Num outro vídeo que circula na internet há umas semanas, uma outra mãe, Letícia Ribeiro, filma-se a tomar banho com o filho. Nas imagens, o menino molha-lhe o cabelo e, a mãe, filma-se completamente nua, e toca nos seios enquanto partilha com o filho que já está «toda molhadinha».  «O vídeo tem um caráter completamente sexual com uma criança atrás», afirma Filipa Castanhinha, revelando ter ficado completamente chocada. De acordo com a psicóloga educacional, o vídeo  demonstra duas coisas: que as redes sociais precisam de fiscalização e legislação mais apertada, e mais uma vez, uma exposição sem nexo, de cariz sexual. «Acaba também por nos  colocar a questão: ‘Até quando podem os pais tomar banho com os seus filhos?’», alerta. «O menino não parecia prestar atenção ao que a mãe estava a fazer e, por isso, estava a brincar. Neste caso específico a questão não são as consequências deste momento específico, a questão é: ‘Como acabou este banho?’. O ato da mãe é condenável e tem um cariz sexual envolvido num momento de brincadeira com o filho, não podemos normalizar este tipo de partilha», frisa a especialista.