Vemos, ouvimos e lemos e nem podemos acreditar. A Justiça que temos está pelas ruas da amargura.
Sento-me no banco dos réus e, enquanto aguardo pela minha vez, oiço a «súmula» do acórdão da senhora sentada ao meu lado, que se pegou à pancada com outra num supermercado da comarca. Está de chinelos, calções de ganga e t-shirt, assim como quem vai dali para a praia de Carcavelos, que do Tribunal de Oeiras até dá bem para ir a pé, é um saltinho. O Tribunal deu como provado que a vítima chamara nomes à filha da agressora mas, como resulta das imagens colhidas pelas câmaras do sistema de segurança do supermercado e visionadas em sede de julgamento, a reação da arguida foi violenta e desproporcional e, por isso e por não ter antecedentes criminais, embora se tratasse de crime punível com pena de prisão, o tribunal considerou adequado substituí-la por dias de multa, num total de 900 euros. Advogado de defesa e o procurador do Ministério Público nada disseram e a juíza passou à leitura da sentença seguinte.
Não sem antes a funcionária chamar o jovem advogado de defesa do arguido faltoso. Tendo este, depois de desligar o telemóvel à pressa, tomado o seu lugar na teia. Ao que a magistrada, recebendo uma vez mais o solicitado e devido assentimento do causídico e do magistrado do MP, passou a publicitar o resumo do acórdão em causa. Tratava-se de um caso de violência doméstica, psicológica e física. Diz a magistrada que resultou provado e o arguido até confessou que no dia de aniversário da companheira lhe exigira dinheiro, lhe chamara «p…» e a segurara com força, magoando-a, bem como agarrara a mãe pelos braços, provocando-lhe hematomas, e exigira-lhe aos gritos dinheiro para os seus vícios – consumo de álcool e de substâncias estupefacientes. Tudo provado e inclusivamente confessado.
Mas, adianta a juíza, não foi junta ao processo certidão de nascimento da mulher, pelo que não se provara nem a idade da vítima nem o dia do seu nascimento, além de que também não se provara que não tinha outra forma de reagir ao arguido e podia, portanto, ter contrariado os seus intentos. O que, por junto e acrescido da fundamentação passível de consulta no Citius, culminava no não preenchimento dos elementos constitutivos do tipo de crime que lhe estava imputado pelo MP, pelo que restava saber se o arguido podia, ainda assim, ser condenado por crime de injúrias ou de ofensa à integridade física. Ora, continuou a meritíssima juíza, sendo um crime dependente de apresentação de queixa por parte da vítima, e não tendo sido esta apresentada, e o outro um crime semipúblico que importava saber em concreto em que dia e circunstâncias fora cometido, não tendo tal resultado possível apurar, foi o arguido – que já contava no seu registo criminal com um crime de extorsão – absolvido de todas as acusações pelos atos de violência praticados tanto contra a sua companheira como contra a sua mãe.
Assim mesmo, tal e qual. E à absolvição não reagiu o procurador do Ministério Público, enquanto o jovem defensor, esfregando as mãos de satisfação, se levantou de imediato e abandonou a sala de audiências com um sonoro «Um bom dia para vocês», a que a juíza respondeu com um «Bom dia, ‘Sôtor’, pode sair» – já ia o causídico com a corda bem dada aos sapatos.
Pois é. Poucos dias volvidos, titulava em manchete e a letras bem gordas o Correio da Manhã: «Mortes na praia sem culpados», com o subtítulo: «Seis anos após acidente com avioneta ninguém foi julgado» e «Sofia, 8 anos, foi uma das duas vítimas da aeronave». Para quem não se lembra, trata-se do caso da avioneta que aterrou de emergência na praia de São João da Caparica, atropelando mortalmente a menina e um senhor de 56 anos que se encontravam no areal.
Há, depois, todos os outros casos que se arrastam em investigações sem fim, enredados em recursos sucessivos e em manobras dilatórias, para não falar em processos mais complexos e menos claros que nos fazem temer pela certeza e pela segurança da nossa Justiça.
Não, não há Justiça tão demorada e arrastada, que cede a todos os prazos de prescrição ou pune inoportunamente.
Nem há Justiça quando a forma se impõe à verdade material.
E o verdadeiro criminoso sai em liberdade ou é absolvido enquanto quem age em defesa do próximo e da comunidade acaba condenado por preceitos cegos e absurdos?
Vemos, ouvimos e lemos e não podemos acreditar.
Parafraseando Scolari: o criminoso sou eu? Como dizia o procurador do MP, podia ter fechado o jornal, mandado as pessoas para o subsídio de desemprego ou para apoio da segurança social e pronto. O ‘pronto’ diz tudo.
E, afinal, o Estado não perdeu rigorosamente nada, porque tudo lhe está a ser pago e com juros, continuou a receber milhões em impostos e taxa social única, porque a atividade prosseguiu para bem de todos e, sobretudo, para o bem público.
E foi durante a pandemia, quando outros receberam apoios de milhões ou de centenas de milhares e o Sol e o i zero, sendo que não recorreu a lay-off nem houve um único despedimento.
Onde está a Justiça? Já era!
O Estado reclama-se de direito democrático mas, manifestamente, não é pessoa de bem, porque já não cumpre as suas funções mais básicas, como a Justiça.
Vemos, ouvimos e lemos e não podemos acreditar.