Há pessoas com muito talento menos com o talento de o usar

Da capital saem bojardas e mentirolas, há lavagem e rebatina e sobram predadores e lafardos – Lisboa tem pouco interesse pelo país. Para lá das muralhas, fica o formigueiro, onde pouco mais resta do que atilhos e cadilhos. Há infiéis aos seus princípios, há calúnias, barbárie e decadência.

por Luís Castro
Jornalista

Há sábios que não dizem a verdade porque pode parecer mentira; escasseiam os sensatos que ajustam a crença à evidência – daqueles que confiam mais nas ideias do que nas circunstâncias; rareiam os que vivem na verdade para aprender e sobram os que mergulharam na mentira para sobreviver. Há Castelos mal frequentados e Palácios mal alumiados.

Continuamos o povo da navalha e da taberna; das procissões e romarias; do albergue e dos tamancos; dos compadres e regedores. Com palmadas na pança, risadas, empurrões e varapaus, ainda passam copos e mastigam os queixos. Amarrem o avental, galanteiem a cozinheira e baixemo-nos sobre o prato nesta mesa do botequim chamado Portugal. Há chistes e dichotes; piadas e gracejos; há ditérios, mas também os há diletantes.

E a galhofa está ao serviço da Justiça. Mas a gargalhada é castigo e o riso já não é salvação, só opinião. Há hereges e apóstatas, há autos de fé com fogueiras e mortes por garrote, outros açoitados ou degradados. O pátio enche-se de cães, serpentes e diabos, todos de boca aberta. O espetáculo é público porque quer-se a notícia corrida e que acorra muita gente.

Os justiceiros seguem à frente. Eles vestem de negro, vão devagar, descalços e de vela na mão – dizem-se de alma limpa. A corte assiste pela janela porque alguns procuram-se lá em baixo. No Pelourinho, há ordem pelo desdém e o povo diverte-se a ver esturricar as suas elites – há lá espetáculo mais bonito do que ver arder os patifes que meteram as mãos na hóstia e a boca no espiche? Ao menos, Blimunda conheceu Baltazar e ambos juraram guardar os segredos dos infelizes e humilhados, assim grafou o Nobel. Mas ainda não têm honras de giz e lousa – lá, no bar do Bairro Alto.

Neste Portugal onde a incompetência é fatalidade, o jurisconsulto da sintaxe figurada pede-nos padre-nossos e avé-marias, mas perdeu-se nos papéis que leva no bolso. O espalhafato virou moda – ou não fôssemos um país que não se levanta, mas ri – e dão-nos farsa com lustres e orquestra. Nadamos todos no sentido da correnteza. Que não se admirem porque a natureza produziu semelhanças e os políticos são apupados e desautorizados. Outros são convidados a entrar porque fizeram bons negócios, daqueles que correram bem ao lambisco – por enquanto. Alguém lhes lembre que em Portugal o lobby ainda é proibido.

Enquanto o povo rói as unhas, outros a roem-lhe o estômago. Ele anda à solta, bisbilhoteiro e à nora. E como não tem rumo conhecido, vive sem programa de vida e sem projeto. Mais do que atitude da consciência, a massa prefere a atitude da conveniência. Cresce-lhe a raiva e o desprezo pelos governantes, por isso gosta dos bobos; diminui-lhe a esperança e a tolerância, por isso ele escolhe os demagogos; o Estado é chamado de ladrão e visto como inimigo, por isso ele elege os populistas.

Da capital saem bojardas e mentirolas, há lavagem e rebatina e sobram predadores e lafardos – Lisboa tem pouco interesse pelo país. Para lá das muralhas, fica o formigueiro, onde pouco mais resta do que atilhos e cadilhos. Há infiéis aos seus princípios, há calúnias, barbárie e decadência. As Ordens vão ruindo à nossa volta, os sábios vão-se distanciando e o homem vulgar, antes dirigido, passou a governá-las. Com eles veio o retrocesso.

Eça diria que assim jaz o Bocejo da Pátria. O país não perdeu os velhos hábitos da vaidade e sente-se bem na vulgaridade. A maioria não tem opinião, vem-lhe de fora e à pressão, como um lubrificante para as roldanas da imbecilidade. Não se admirem da estupidez dos julgamentos e dos pensamentos. Até porque os sábios também podem ser medíocres e os tolos serem homens notáveis.

Mais do que por toques ou sinais, exigem-se palavras e reputação – dentro e fora. Mas encurtaram a visão e foram perdendo a audição. Na Tribuna ficaram os copos de água intactos – talvez para que obreiros possam descansar; no jardim do Saber fala-se baixinho, talvez para tramar e intrigar. Espreguiça-se devagar, sem ideias e originalidade. Há quem não compreenda os novos tempos, nem ninguém os compreenda a eles. Não se renovam nem se reformam. Estão ali – e é o que basta.