Ricardo Arroja. “Se reduzirmos a taxa de IRS há no imediato um aumento dos salários”

Ricardo Arroja admite que a carga fiscal é demasiado elevada e que no caso do IRS estamos perante valores recorde. ‘Em Portugal temos aquela infelicidade de pagarmos desde há muito preços europeus, mas continuarmos a ter salários portugueses’, lamenta.

Como vê a situação da economia portuguesa? Fica surpreendido com os resultados?

Está num ciclo que conjunturalmente face a outras economias europeias é mais favorável, porque estamos a beneficiar de um influxo muito grande de fundos europeus, não só os quadros plurianuais habituais, de que temos beneficiado nas últimas décadas, mas também por causa do PRR que, na prática, permite financiar um conjunto de investimentos não só privados, mas sobretudo públicos que, nos últimos anos, foram sistematicamente abandonados face às restrições orçamentais que o Estado português atravessava. Temos taxas de crescimento que são superiores, neste momento, à média de alguns dos países mais avançados na Europa. No entanto, temos sempre de pôr estas coisas em perspetiva e o que vemos ao longo dos últimos 10, 15 anos é uma trajetória de crescimento abaixo do esperado, tendo em conta as expectativas de convergência económica que ao longo dos anos temos vindo a alimentar e que os políticos nos têm vindo a entreter, mas que infelizmente não têm conseguido obter. E isso vê-se nas estatísticas do PIB per capita, numa base de paridade de compra, que é um indicador que permite ver a riqueza média por habitante ajustada ao custo médio de vida de cada país. Nesses rankings, Portugal tem vindo a baixar em percentagem da média europeia e tem vindo a ser ultrapassado pelos países do Leste e dos Bálticos. Neste momento temos na União Europeia um conjunto muito diminuto de países que estão piores do que nós, ou seja, estamos a ir no sentido da cauda da Europa, sem prejuízo de em 2022 e também em 2023 podermos beneficiar de taxas de crescimento mais elevadas do que é habitual. A questão é sempre o que vem a seguir? E o que as estimativas portuguesas evidenciam é que, passado este momento inicial em que tendemos a beneficiar mais do tal influxo de fundos vamos regressar a uma taxa de crescimento de médio prazo que é insuficiente para fazermos a tal convergência europeia.

É a falta do tal crescimento de 3% ou 4% anual, que muitos dizem que devia ser um desígnio nacional? 

Os tais 3% e 4% são as taxas de crescimento que vemos em muitos países do Leste e dos Bálticos, os países que nos têm vindo a ultrapassar nesses rankings internacionais. Se formos perguntar ao comum português, vemos que não sente no seu dia-a-dia que esteja a beneficiar desse tal crescimento de 2,5% ou 3% que se observa nas estatísticas oficiais. Os salários são baixos, as condições de empregabilidade são ainda frágeis e vulneráveis, existe também dificuldade por parte dos jovens de singrarem no mercado profissional e as pensões não são especialmente elevadas. Há um conjunto de indicadores, como o acesso a serviços públicos, nomeadamente a saúde, a educação, a justiça, entre outros, que é deficitário e não sentimos no bolso essa tal taxa de crescimento. 

No caso dos salários continua a haver alguma resistência em maiores aumentos para evitar a chamada espiral inflacionista…

Tem havido um esforço de atualização salarial, os salários no último ano estão a crescer, em média, 7%/8%, até um bocadinho mais no setor privado e menos no setor público. O problema está na baixa base de salários em Portugal. O salário médio bruto é 1.350 euros. As empresas de micro dimensão, aquelas que têm entre um ou quatro trabalhadores e que é a grande maioria das empresas em Portugal, têm um salário médio de 940 euros. Entre os cinco setores da economia portuguesa que mais contribuíram para o emprego, temos salários inferiores à média nacional. É o que acontece, por exemplo, nas indústrias transformadoras, que até devia ser um setor potenciador de maiores níveis de produtividade e logo de possibilidades salariais mais altas. Vemos isso no comércio e no retalho, no alojamento e restauração e na própria construção. Há um conjunto de setores que contribuem muito para a empregabilidade em Portugal, em que os salários são mais baixos do que em média se pratica a nível nacional e, quando assim é, é difícil as pessoas terem grandes perspetivas de vida. Em Portugal temos aquela infelicidade de pagarmos desde há muito preços europeus, mas continuarmos a ter salários portugueses. 

Isso vê-se pelo problema da habitação. O que acha do programa apresentado pelo Governo que foi aprovado esta semana apenas com votos do PS? 

De acordo com as sondagens, a fiscalidade e a habitação ocupam lugares cimeiros nas preocupações das pessoas. É natural, a fiscalidade tem vindo a aumentar ano após ano e temos hoje uma carga fiscal que é recorde. E no que diz respeito ao IRS, em particular, temos vindo a assistir a um aumento muito grande dos impostos já desde os tempos da troika. Todos se recordam do enorme aumento de impostos e que não foi grandemente revertido ao longo dos anos. E temos depois problemas específicos, nomeadamente da habitação, que se sente mais nas grandes cidades e agora é potenciado pela subida dos juros. As pessoas dedicam uma grande parte dos seus orçamentos familiares ao pagamento de prestações ou de rendas e há uma grande escassez de oferta no mercado. As medidas que este Governo tem vindo a implementar não vão necessariamente ao encontro dos entraves e dos obstáculos que temos no mercado da habitação, o que deveria ser feito passaria por um maior incentivo ao arrendamento. Ora, quando se começa a introduzir limites ao arrendamento, nomeadamente às atualizações de rendas e à forma em que o arrendamento é contratado, naturalmente que uma das consequências que pode ser contraproducente é a redução da oferta no mercado. E isso vai ao arrepio daquilo que o Governo pretende, que é precisamente estimular a possibilidade de as pessoas arrendarem em melhores circunstâncias. Por exemplo, teria sido preferível que houvesse uma política mais generosa de subsidiação ou de apoios em sede de benefício fiscal às famílias para efeito de arrendamento. O que vemos em Portugal é que, comparado com os outros países da União Europeia, temos um gasto público em habitação inferior ao que muitos outros países praticam. E não estamos a falar necessariamente de países onde a matriz política seja de esquerda, até há países onde a matriz política é de direita que, talvez não fazendo tanto gasto público em determinadas áreas, acabam por dedicar fatias relevantes do Orçamento de Estado ao apoio ou à subsidiação, neste caso, do arrendamento. Estou a falar, por exemplo, no caso do Reino Unido, onde cerca de 1,4% do PIB é investido em políticas de habitação. Também na Holanda ou noutros países nórdicos, o Estado fornece habitação social numa elevada proporção. Isso são coisas que em Portugal não são feitas e poderiam ser antes de se imporem limites à contratação no setor privado de arrendamento. O problema, estando bem identificado, depois é endereçado de forma errada e, na minha opinião, não vejo que as medidas do Governo possam resolver grande coisa. 

Portugal tem uma cultura de proprietários, com o aumento das taxas de juro vai ser cada vez mais difícil comprar uma casa… 

Temos mais proprietários do que é habitual por essa Europa fora, mas isso tem a ver com várias razões. Em primeiro lugar, com as idiossincrasias do nosso mercado de capitais – como não existe, as pessoas acabam por ser levadas a aplicar as suas poupanças na compra de habitação própria e secundária. Segundo ponto, a compra de casa ao longo dos últimos anos tem sido muito mais favorecida pelas políticas públicas do que propriamente o arrendamento. E para a esmagadora maioria das pessoas, a opção de compra com recurso a empréstimos é mais económico do que arrendar e, ainda por cima, pagar um arrendamento por uma casa que nunca será sua. Houve incentivos ao longo dos anos que foram acabando por criar este efeito perverso, em que somos um país de baixos recursos, mas onde as pessoas estão empatadas em termos financeiros por muitos anos com créditos à habitação e, infelizmente, também muito indexados à taxa variável, o que nesta conjuntura acaba por prejudicar a situação financeira das famílias. E esse é um ponto que pode ser muito relevante na evolução económica em Portugal, principalmente se a evolução económica em Portugal for afetada por novas subidas das taxas de juros.

Tudo indica que será na próxima semana…

Pode aumentar mais 50 pontos base ou mais 1%. A parte relevante do ajustamento da taxa de juro já foi feita nos últimos meses. O problema é se nós na Europa e em particular em Portugal tivermos nos próximos anos taxas de inflação mais elevadas do que aquelas que temos neste momento e certamente mais elevadas do que aquelas que tivemos nos últimos dez anos. Aí sim, se tivéssemos outro puxão nas taxas de juro igual ao que tivemos nos últimos 12 meses, a situação em Portugal poderia tornar-se muito difícil, porque há muitas famílias que estão numa situação de sobre-esforço para pagar os seus empréstimos e teriam de se desfazer dos seus imóveis. 

O que aconteceu na altura da troika. Corremos o risco de voltar a repetir? 

Não antecipo isso, até porque neste momento, a taxa de inflação está próxima dos valores que, em média, têm vigorado ao longo das últimas décadas. Se observarmos a tendência de muito longo prazo, a taxa de inflação nos países desenvolvidos será, em média, de 5% ao ano. Em Portugal, a estimativa para o final do ano anda em redor de 5% e é a taxa de inflação que vigora também na União Europeia. Os Estados Unidos já estiveram nesse patamar e agora está nos 4%. Isso revela que a inflação está essencialmente no ponto em que, a médio longo prazo, é de esperar que esteja. Agora, isso nada invalida que haja uma nova crise energética, que haja novas disrupções. 

Temos agora em mãos uma possível crise dos cereais…

Exato e tudo isso pode fazer com que os preços conjunturalmente possam regressar a taxas de inflação que tivemos, por exemplo, nos anos 80. Não é da nossa geração, mas se perguntarmos às gerações antigas certamente ouviremos relatos de taxas de juro de 20%, em que os juros eram pagos à cabeça porque havia racionamento do crédito. Não estou a dizer que esse cenário vá acontecer, a probabilidade de isso acontecer é muito baixa. Mas, de qualquer maneira, é sempre um cenário a ter em conta.

Disse que uma das grandes preocupações dos portugueses, a par da habitação, é também os impostos. A carga fiscal continua a ser o nosso calcanhar de Aquiles?

A carga fiscal é demasiado elevada. Há uma perceção, que a mim me parece correta, de que o Estado não retribui na mesma medida. Em segundo lugar, porque os rendimentos são baixos. A primeira forma de aumentar os salários seria precisamente reduzir os impostos. Se reduzirmos a taxa de IRS há no imediato um aumento do salário líquido. Era importante que houvesse esse sinal, como também era importante que houvesse uma menor progressividade do sistema fiscal em Portugal. Estamos a criar incentivos perversos, no sentido de penalizar quem tem salários mais altos e quem tem salários mais altos, diz a teoria económica, é quem em média produz maior valor acrescentado. Só quando há produção de valor acrescentado e produtividade é que é possível pagar salários altos. Era importante que, havendo um problema de falta de geração de riqueza, não se desincentivasse a geração de riqueza e a via fiscal seria uma forma de dar esse sinal ao desagravar a progressividade que o sistema tem na sua estrutura e, eventualmente, apostando em outros modelos alternativos de fiscalidade direta, nomeadamente a possibilidade de termos menos taxas a vigorar no IRS.

E o IRC é outro problema… 

Há alguma evidência de que as empresas são sensíveis às taxas de imposto no momento de fazerem os seus investimentos e a principal vantagem na redução de IRC seria precisamente aumentar o investimento privado e, com isso, melhorar o potencial produtivo das empresas. Seria também uma forma de atrair investimento direto estrangeiro, porque as grandes multinacionais continuam a ser muito sensíveis às taxas de imposto. Outra forma de nos diferenciarmos seria através dos custos de contexto, como habitualmente se diz. No caso do IRC, a taxa marginal pode ir até mais de 30%, no caso das empresas de grande dimensão com lucros tributáveis relevantes. Isto é um absurdo num país que quer estimular não só empresas que tenham lucros tributáveis, como também efeitos de aglomeração com vista a tornar as empresas com maior dimensão. 

Mas acaba por ser um incoerente com medidas que são apresentadas, como por exemplo, o IVA zero… 

O IVA zero é uma medida que procura ir ao encontro de uma situação conjuntural. Foi implementado para um conjunto de produtos e bens básicos de grande consumo, com vista a travar o aumento de preços. O problema é que é um penso rápido e não resolve necessariamente um problema de base. O problema de base é que o preço destes bens é influenciado pelo nível de fiscalidade, mas também por condições de mercado internacionais que Portugal não controla. Mesmo com IVA zero é perfeitamente possível, por exemplo, que o preço dos cereais continue a crescer acima da taxa de inflação média. Há circunstâncias em que a fiscalidade pode ser eficiente, há outras em que pode ajudar, mas não resolve necessariamente o problema de base. E para combater a inflação, o alcance de medidas como o IVA zero é curto e pode não ser muito eficaz se nos setores e nos bens sobre os quais incidir a medida existir uma situação concorrencial que seja longe da situação de concorrência que desejavelmente gostaríamos de ter. A crítica que houve é que a redução do imposto seria capturada pelo aumento das margens dos operadores que atuam nesse setor, mas até ver não há evidência disso. Em Espanha, onde foi encetada uma medida semelhante, também não houve evidência de que a redução do IVA tivesse sido capturada pelo aumento das margens dos operadores e até ver está a ser eficaz. 

Seria preferível alocar esta verba a outras medidas que favorecessem os mais vulneráveis?

A redução do IVA pretende facilitar o acesso a esses bens essenciais, outra forma poderia ser com a subsidiação direta às famílias mais vulneráveis. As medidas que forem adotadas neste domínio dificilmente vão escapar a uma dessas alternativas: ou redução dos impostos ou algum tipo de subsidiação, mas devem ser dirigidas às famílias de menores recursos, caso contrário, acaba-se por utilizar uma medida transversal, beneficiando vários segmentos da população que eventualmente não estejam tão carenciadas do mesmo tipo de apoio.

A ideia de contas certas não permite o Governo ir mais longe…

As contas certas têm muito que se lhe diga. Em primeiro lugar, é bom que qualquer país tenha contas certas, porque se um país não tiver vai ter défice. Se tem défice tem dívida e se tem dívida estamos a onerar o futuro. Mais dívida significa sempre, a médio prazo, mais impostos sobre as gerações vindouras e, por isso, é bom que o país tenha contas certas. O problema em Portugal é que frequentemente atiramo-nos aos fins sem ter em conta os meios. E ao abrigo desta ideia das contas certas foram prejudicadas algumas intervenções do Estado e nem sempre foram salvaguardadas as condições, em que os recursos públicos são utilizados. O que quero dizer com isto? Por exemplo, nos últimos anos tivemos contas certas, mas o investimento público que foi sistematicamente apresentado pelo Governo como um traço marcante da sua atuação política foi sistematicamente posto na gaveta. Agora está a ser executado porque finalmente há dinheiro europeu, através do PRR, para financiar alguns projetos. E isto aconteceu porquê? Porque o Governo preferiu dar prioridade à despesa corrente do Estado e sacrificar o investimento público. E quando há este desencontro entre os propósitos políticos que são anunciados e a execução orçamental que depois é levada a cabo, mesmo que se chegue às contas certas, chega-se aos tais fins sem ter em conta os meios. Isso politicamente deve ser censurado. Segundo ponto, os portugueses pagam uma carga fiscal recorde que, em larga medida, serve ou serviria para financiar um conjunto de serviços que os portugueses depois utilizam, designadamente na saúde e na educação, que são os mais relevantes na vida da generalidade das pessoas e o que vemos é que o acesso a esses dois mesmos serviços públicos tem sido também, ao longo dos anos, sacrificado, nomeadamente com menores condições de acesso, um maior recurso a prestadores privados por insuficiência de prestação do setor público. Desigualdades crescentes, no que diz respeito a quem acede ao SNS versus quem tem a possibilidade de aceder ao no setor privado ou mesmo na educação. As contas certas são um valor que devemos prosseguir, mas tem de ser feito de forma adequada e isso nem sempre acontece. 

Daí já ter afirmado que o Estado se serve das pessoas em vez de servir as pessoas? 

Quando há recursos que não são utilizados como deveriam ser, sim. O problema é que em Portugal também é muito difícil aferirmos se os recursos estão a ser bem ou mal gastos, porque ao contrário de outros países, em que no momento em que fazem o Orçamento de Estado dizem imediatamente quantas pessoas vão tratar na saúde, quantos estudantes vão abranger na educação, quais são os objetivos a que se propõem em termos de metas curriculares e em intervenções cirúrgicas, a par de outras intervenções públicas. É a chamada orçamentação por objetivos, mas em Portugal não fazemos nada disso. No início do ano ou no final de cada ano tendemos a discutir os grandes números: ‘A despesa pública vai ser superior a 100 mil milhões’. De facto é um valor enorme. Mas isso é pouco? É muito? Como é que isso vai ser gasto? Como é que podemos aferir a eficácia do gasto público? Em Portugal não fazemos esse exercício e é pena que não se faça, porque permitiria aos contribuintes perceber exatamente onde é que estão as lacunas, onde é que o Estado entrega bem, onde é que entrega mal, assim como perceber a vantagem de modelos alternativos de prestação dos serviços públicos, porque são financiados com receitas dos contribuintes, no entanto, não têm necessariamente de ser prestados pelo Estado. O Estado pode recolher os recursos e depois financiar a prestação através de operadores privados. Isso tem acontecido na saúde e na educação.

O caso mais recente é nas maternidades… 

Nas maternidades, nos hospitais em regime de parcerias público-privadas e que foram elogiados em auditorias sucessivas do Tribunal de Contas.

Mas que foram ‘saneados’ por este Governo… 

Também é justo reconhecê-lo que tem havido poucas PPPs na saúde, mas os casos em que tem havido, o Estado tem conseguido exercer o seu poder regulatório, nomeadamente vistoriando os contratos que são realizados com esses operadores privados. Tem a tal lógica de definição de objetivos e a experiência tem sido boa e eficiente. É uma alternativa de prestação do serviço público que deve ser expandida e não retraída, como tem vindo a acontecer. O mesmo acontece na educação. Todos os anos são publicados os rankings com as notas dos estudantes e todos os anos vemos as escolas privadas a apresentarem cada vez maior sucesso escolar. Evidentemente que no caso da educação temos sempre que ter em conta o contexto socioeconómico das famílias e a comparação tem de ser feita de forma muito cautelosa. Mas de qualquer modo, o ano que passou foi um bom exemplo. Ou seja, neste ano letivo que terminou tivemos greves em catadupa nas escolas públicas e na generalidade das escolas privadas esses problemas não aconteceram. É de prever que os alunos que estiveram no ensino privado este ano tenham tido melhores condições para terem sucesso escolar. 

Esta resistência deve-se por uma questão ideológica? 

É por uma questão de ideologia, mas também por falharmos sempre na avaliação dos resultados da intervenção do Estado e isso obviamente interessa a quem pretende expandir o Estado e quem, infelizmente, pretende que o Estado sirva de porto de abrigo a atividades que não teriam de estar necessariamente sob a alçada do Estado. A partir do momento em que tivermos os tais objetivos sobre os quais possamos aferir da eficácia do gasto público, todas as alternativas de política ficam mais fáceis de balizar porque sabemos exatamente com o que é que contamos e isso permite-nos de imediato contratualizar com outro sítio ou com outro tipo de prestador para depois avaliarmos se um é mais competitivo ou não que o outro, se um produz tendencialmente melhores resultados ou não do que o outro. Tenho sempre a perspetiva de que o Estado tem, antes de mais, de ser um bom regulador. Se o Estado não for capaz de regular a atividade económica, nomeadamente fazendo cumprir as regras, auditando os contratos que faz com prestadores privados dificilmente poderá ser um bom prestador. Seria mais importante o Estado remeter-se ao papel de regulador da atividade económica, suprindo eventuais lacunas que possam existir no mercado, do que estar sistematicamente a querer colocar-se na função de prestador, em condições de menor eficiência, de menor agilidade, porque o Estado é uma entidade muito grande. Em Portugal temos um Estado muito centralizador, que descentraliza pouco e quando o faz tende a descentralizar as funções, mas não propriamente os recursos, o que depois acaba por estrangular também a qualidade do serviço que é prestado. Se influenciasse as decisões do Governo colocaria um grande foco no Estado regulador, no Estado árbitro e deixaria para segundo plano a figura do Estado árbitro jogador, o que por si só também encerra um problema. Uma das questões que o Tribunal de Contas nesses relatórios de auditorias às PPP tem observado é que o Estado tende a impor aos privados que atuam no setor da saúde condições mais exigentes do que as condições que o próprio Estado depois impõe a si próprio, enquanto prestador no SNS. Isto é um conflito de interesses e depois acaba também por desnivelar a concorrência em que há regras que valem para uns, mas não valem para outros. E isso parece-me errado.

Todos estes problemas estão identificados e porque é que não se resolve? É a resistência a reformas… 

Em primeiro lugar, a ausência de uma orçamentação por objetivos, depois o facto de Portugal estar há muitas décadas sem grande crescimento económico, quando o país não tem crescimento económico não avança, as pessoas ficam desencantadas e deixam de acreditar. E quando as pessoas deixam de acreditar depois também são mais facilmente levadas a soluções paternalistas. Hoje em dia temos em Portugal uma população que, em larga medida, quando vê um problema, pergunta logo o que é que o Estado vai fazer por nós? 

Viu-se na pandemia, agora com a guerra… 

A pandemia foi um caso concreto com características muito especiais, em que o Estado aumentou em todos os países e serviu como rede, prestando apoios que foram importantes e, na prática, refletindo também a vontade maioritária da comunidade, de haver um espírito mais solidário naquele momento muito específico. Mas não vivemos permanentemente em pandemia e esperamos que não volte a acontecer tão cedo e quando estamos numa condição normal seria de esperar que a sociedade civil, as famílias e as empresas tivessem iniciativa e não estivessem sistematicamente a olhar para as orientações do Estado, que não tem racionalidade económica no cerne das suas decisões, em que frequentemente as decisões são tomadas sem qualquer racionalidade económica, apenas por critério e conveniências políticas. Seria importante que a sociedade não estivesse refém dos apoios.

É a ideia de andarmos ‘de mão estendida’…

Infelizmente de mão estendida e isto acontece porque, por este motivo ou por aquele não temos conseguido ter crescimento económico. 

E como vê as críticas da presidente do BCE a dizer que os países têm de começar a retirar os apoios que foi alvo de críticas tanto de Marcelo como de Costa?

Tenho alguma simpatia pelo protesto que foi feito, mas por outro lado também critico. A posição da presidente da Banco Central Europeu tem de ser muito cuidadosa e, neste momento, Lagarde tem tido um discurso muito duro, mas é importante não nos esquecermos, e é aí que acho que a crítica se calhar foi bem vista, é que esta mesma presidente do Banco Central Europeu desvalorizou ostensivamente a questão da inflação quando começou a ser evidente, em 2021. Na altura, o Banco Central Europeu disse que estivéssemos tranquilos, que não era um problema de médio prazo e agora mudou diametralmente deposição. É bom que haja o reconhecimento do erro, mas tendo havido esse erro seria prudente e socialmente mais aceitável que houvesse algum comedimento na forma como se fazem determinadas afirmações. Até porque a política monetária dos bancos centrais deve ser gerida sem grandes espalhafatos e os bancos centrais devem definir a sua taxa de juro em função das expectativas de inflação. Este deve ser o referencial da atuação dos bancos centrais e todas as outras considerações, nomeadamente sobre questões salariais devem ser deixadas para outros decisores.

E como vê a questão da TAP? Acha que houve uma intenção de ‘limpar’ a imagem do Governo?

Vi as grandes conclusões deste relatório e a minha primeira reação foi: de futuro, se calhar não seria mal visto termos relatores que fossem independentes do próprio Parlamento, porque da forma como as coisas estão organizadas corre-se o risco de ter um relatório final que não represente o que se viu nas audições. A comissão de inquérito foi evoluindo de uma avaliação de uma situação muito pontual para um exercício de escrutínio de todo o governo societário da TAP e o que vemos é que o governo societário da TAP não esteve à altura da dimensão que a empresa tem. A empresa deveria ter sido governada com procedimentos mais rigorosos e que tivesse evitado a situação que acabou por se gerar. Não me surpreende que a TAP esteja a atravessar os problemas que está a ter, porque a opção política, a partir do momento em que se decidiu nacionalizar, levou a que a atuação política na TAP passasse a ser uma constante e a politização da empresa é uma consequência natural da opção que foi feita. 

E ficámos todos com a certeza que a TAP era administrada a partir do Ministério… 

Foi certamente essa perceção que passou. Sou crítico da TAP mas, no que diz respeito às empresas públicas, devíamos fazer uma avaliação mais global e o setor empresarial do Estado requer muito mais transparência e profissionalização de gestão. A Direção-Geral do Tesouro e Finanças fazia habitualmente uma resenha da situação económica e financeira do setor empresarial do Estado. Ora, deixou de o fazer em 2015. Desde aí então quem tem feito algum escrutínio? O Conselho de Finanças Públicas, que tem feito um bom trabalho, assim como o Tribunal de Contas. As duas entidades têm feito um bom trabalho, no sentido de colmatarem essa deficiência de auditoria própria por parte do Estado. Persiste muita opacidade e isso nota-se nos hospitais públicos que estão, na esmagadora maioria dos casos, tecnicamente falidos. Nota-se nas nomeações dos gestores públicos, onde também há pouca transparência e frequentemente não se percebe qual é o critério que preside à sua nomeação. Se são critérios político-partidários ou profissionais. Sou da opinião que o setor empresarial do Estado deve ser permanentemente escrutinado em sede parlamentar, nomeadamente tendo no Parlamento os responsáveis pela auditoria interna dessas mesmas organizações, porque, no limite, aquelas são empresas onde o acionista somos todos nós.

A única empresa pública que escapa é a CGD? 

Ponto e vírgula, já ninguém se lembra disso mas, em 2017, a Caixa de Depósitos foi objeto de um aumento de capital, porque nos anos anteriores tinha consumido muito mais capital do que aquele que tinha distribuído na forma de dividendos. O que temos agora é uma história de relativo sucesso, porque tem tido bons resultados, mas é um sucesso que é alimentado ou é suportado por uma lógica de gestão privada pura e dura. Aquilo que a Caixa Geral de Depósitos faz hoje em dia é exatamente o mesmo que fazem os outros concorrentes bancários no setor privado.

E depois da nacionalização da TAP, o Governo mudou de ideias e agora diz que afinal é preciso privatizar a empresa de bandeira…

Vamos pagar para vender a TAP, porque o montante que lá foi colocado não será recuperado através da privatização. Quanto às empresas de bandeira, é apenas uma questão de compararmos com o que acontece no resto da Europa. Temos alguns casos de empresas de transporte aéreo que eram empresas de bandeira e que hoje já não são. Mantêm o nome, mas o Estado tem participações minoritárias e mesmo o tipo de intervenção que fizeram, na altura da pandemia, verdade seja dita, foi completamente diferente daquele que foi seguido na TAP. Em alguns casos, os empréstimos que foram feitos estão a ser reembolsados. Noutros casos, as aquisições de capital que foram feitas abaixo do valor de mercado, porque algumas dessas empresas são cotadas em bolsa, como é o caso da Lufthansa, em que o Estado recapitalizou a empresa, comprando ações mas com desconto face ao valor que estavam cotadas no mercado e entretanto já vendeu com lucro. A intervenção do Estado na economia pode ser feita através de múltiplos instrumentos, desde que salvaguarde os interesses contribuintes. No entanto, o que vemos em Portugal – poderá haver exceções – é que sistematicamente os contribuintes colocam mais recursos em entidades do Estado e depois não os recuperam, nem no reembolso dos recursos, nem necessariamente na qualidade do serviço prestado. Isto faz lembrar um bocadinho o que dizia Milton Friedman: quando uma entidade privada é deficitária vai à falência, desaparece e permanece as que são mais produtivas, quando um Estado vai a falência pede mais dinheiro.

Em 2019 foi cabeça de lista da Iniciativa Liberal. Neste momento, como vê a imagem do Governo parece estar cada vez mais desgastado e o PSD envolvido em investigações? Isso leva os portugueses a estarem cada vez mais afastados da vida política e não acreditarem tanto nos políticos?

Estou completamente fora da vida partidária, desde logo porque nunca fui membro da Iniciativa Liberal. Concorri como independente e assim me mantenho. Nunca fui membro de nenhum partido, nem tenciono ser. Isto dito, acho que o ambiente político em Portugal está longe de ser o ideal porque, mais uma vez, o país não cresce e as pessoas ficam mais sensíveis às situações de injustiça e às situações de corrupção que vão observando. E os partidos políticos nem sempre dão o melhor exemplo. Quem está na política, seja em funções representativas, seja em funções executivas, tem de ter uma sensibilidade muito apurada, no sentido de que se sobre eles ou elas recai a mínima suspeita têm de salvaguardar a sua posição e retirarem-se da vida pública e isso nem sempre acontece. É importante que surjam partidos com ideias novas, ideias diferentes e que possam contribuir para alguma modernização do ambiente que se vai respirando e que também não tenham o legado e a bagagem que estes partidos transportam. 

Daí ter dito que a discussão deixou de ser esquerda/direita?

Quando tive essa breve incursão na política tentei passar uma mensagem, provavelmente não foi inteiramente percecionada, de que o debate político não se devia limitar à ideia de esquerda e de direita, até porque essa é uma forma de arregimentar politicamente as forças que está ultrapassada. Isso é um desenho ou uma imagem que vem dos tempos da Revolução Francesa e que está obsoleta. Aquilo que deveria ser mais importante era distinguir uma sociedade em que os cidadãos organizam-se de forma livre e utilizam o Estado enquanto meio da ação coletiva para determinados fins e utilizava sempre a figura em alternativa ao eixo horizontal esquerda/direita a figura do eixo vertical, em que no topo estão os cidadãos e em baixo está o Estado, por alternativa ao sistema que vejo hoje em Portugal, em que está o Estado no topo e os cidadãos em baixo. Esse é o posicionamento que me pareceria mais relevante, pois há uma responsabilização das próprias pessoas. Acho que a política em Portugal tende a infantilizar as pessoas e era um exercício de perceção política, em que se poderia cultivar mais a ideia do mérito. E, às vezes, as pessoas não têm noção da importância que a cultura do mérito representa para um determinado país. Um país onde acreditamos no mérito é um país onde o elevador social vai funcionar mais facilmente, é um país onde haverá menor tolerância face a comportamentos menos próprios.

E ter-se-ia evitado aqueles ‘casos e casinhos’ deste Governo?

Penso que sim. Mas como disse, há partidos novos, que podem preencher esse espaço e espero que assim aconteça. Agora estou longe da política e não terei intervenção nesse nível.