BRIDGETOWN – Foi aqui perto, ou mesmo aqui ao lado, se preferirem. Ao largo de Bridgetown, capital de Barbados. No dia 4 de Março de 1918, o petroleiro norte americano USS Cyclops, um dos maiores da marinha mercante dos Estados Unidos, desapareceu misteriosamente aqui mesmo ao lado, nas águas cor de cloro que separam Barbados de Santa Lúcia. Saíra de Belém do Pará em direção a Baltimore, Maryland. Nunca lá chegou. Transportava cerca de onze mil toneladas de manganésio e entre tripulação e passageiros pouco mais de 300 pessoas. Ninguém parecia acreditar que um mostro dessa envergadura tivesse pura e simplesmente sido engolido pelo mar sem deixar rasto. As buscas tiveram início imediato e tantos os americanos como as autoridades de Barbados, Santa Lúcia, Granada e Martinica fizeram o que podiam para encontrar ou destroços ou sobreviventes de um mais que provável abalroamento de encontro a rochedos que estão situados no círculo em redor dessas ilhas.
O mistério adensou-se. Porque o capitão do USS Cyclops não fez qualquer tipo de tentativa de contactos com um dos muitos navios americanos que vogavam na zona, porque ninguém da tripulação respondeu às mensagens que foram enviadas para bordo do petroleiro, porque não houve nenhuma alteração súbita na atmosfera e a calmaria tomara conta do mar das Antilhas nos dias anteriores.
O jornal nova-iorquino The Thimes avançou com a teoria de que a embarcação teria sido apanhada por algum dos U-boots alemães, minas que foram colocadas à deriva durante a I Grande Guerra. Não faltou muito para que algumas revistas mais dadas à imaginação e aos escândalos do que à realidade do mundo em que vivemos suportassem com atrevimento que o SSS Cyclops fora apanhado por um polvo gigantesco, tal e qual como o Capitão Nemo das páginas de Júlio Verne. O episódio alargou-se na imaginação de cada um. E começou, a partir daí, a ser comparado com uma longa lista de acidentes marítimos que foi, mais tarde, remetida para um triângulo que tinha como pontas as ilhas de Bermuda e de Porto Rico e o território de Miami junto à costa da Flórida. Alguém lhe deu o nome escandaloso de Triângulo do Diabo, mas ficou sempre mais conhecido por Triângulo das Bermudas.
Estranhos acontecimentos
Uma comissão encarregada de continuar à procura dos motivos que levaram ao desaparecimento do SSS Cyclops manteve-se, entretanto, em serviço. E, no ano seguinte, outro desaparecimento, o de toda a tripulação do veleiro Carroll A. Deering, que foi encontrado à deriva perto da costa da Carolina do Norte, pôs mais pimenta no mistério. É aí que Barbados entra na história. Para muitos dos investigadores teria sido um motim o responsável pela descoordenação a bordo do SSS Cyclops conduzindo o navio de encontro a um grupo fatal de rochedos. O cônsul dos Estados Unidos em Bridgetown ficou de fazer um relatório para a Marinha dos US of A e também tocou nesse ponto. O capitão era um mamífero de maus bofes e detestado pelo resto da tripulação que terá caído na tentação de o fazer cair do pedestal numa zona perigosa e que deveria ser atravessada com a precaução de marinheiros experientes, o que não foi propriamente o caso. O cônsul parece ter sido um fulano de imaginação fértil. No seu relatório acrescentou que o capitão tinha provocado o motim à custa de gestos violentos que meteram o encarceramento de alguns marinheiros e a morte de outros dois, chicoteados como no tempo da escravatura. Mas, enfim, um cônsul é um cônsul, permite-se-lhe alguma liberdade de talento inventivo pelo meio do seu trabalho essencialmente burocrático. Antes de rabiscar o nome no final das muitas páginas que escreveu, ofereceu-nos esta pérola quase poética: «While not having any definite grounds I fear fate worse than sinking, though possibly based on instinctive dislike felt towards master». Isso. O facto de não ter definite grounds é que transformavam o relatório numa obra barata de romances de pirataria.
Nos anos subsequentes o mistério do Triângulo das Bermudas foi crescendo de forma silenciosa. Era referido como uma área de perigo para rotas de navios e de aviões mas ainda não ganhara a dimensão que viria a ganhar a partir dos anos-40. Mas, de repente, no dia 5 de Dezembro de 1945, cinco bombardeiros Avenger Torpedo da Força Aérea dos Estados Unidos resolveram desaparecer dentro da área na qual se desenhara o triângulo do demo. Um vendaval de perguntas sem resposta levantou-se na imprensa americana e de outros países. Será que haveria mesmo algo por detrás de tal fenómeno. Talvez um campo magnético que fizesse com que as tripulações perdessem definitivamente o norte, empurrando as suas máquinas navegadoras ou voadoras para as profundezas do mar. Pela quatro horas da manhã desse 5 de Dezembro foi intercetada a mensagem via rádio de um dos pilotos referindo que a bússola do avião deixara de funcionar e que não estava certo da sua situação no mapa. Depois disso só silêncio…
Diabo das Bermudas e do Japão
Um dos estudiosos dos desaparecimentos acontecidos no Triângulo das Bermudas voltou à carga com a teoria dos campos magnéticos: «A maioria dos desaparecimentos podem ser atribuídos à especial localização da área por ser um dos dois locais do planeta em que a bússola não indica o norte. Geralmente assinala o norte magnético e a diferença entre os dois pode tornar-se significativa já que chega a atingir os 20 graus. Se esta variação não for corrigida por um navegador ou por um piloto experimentado o perigo é grande. Recorde-se que junto à costa leste do Japão também existe uma zona conhecida pelos marinheiros e pescadores como Mar do Diabo».
Admita-se que esta explicação não dava jeito nenhum a quem estava disposto a explorar financeiramente a lenda do Triângulo das Bermudas transformando-o num daqueles lugares em que a morte era certa e que todos teriam medo de percorrer. Livros e filmes foram escritos e realizados sobre o tema, indo ao mais fundo da sua sordidez. E os seus autores estavam-se absolutamente nas tintas para a estatística que mandava dizer que a zona conhecida por Triângulo do Diabo era tão atreita a acidentes marítimos e aéreos como qualquer outra zona dos sete mares.
Em Inglaterra, o Canal 4, trouxe à pantalha uma série de reportagens dedicadas ao Triângulo das Bermudas. Com conclusões muito pouco misteriosas: «Accidents and incidents did not feature the Bermuda Triangle in its top 10. Incidents around the Bermuda Triangle determined that large numbers of ships had not sunk there». Ou seja, não foi preciso muito para a hipotenusa e os catetos do famoso triângulo fossem medidas segundo a vontade de cada um que fazia questão de se meter ao barulho. Resumindo: a maioria dos incidentes eram atribuídos pelos jornais e pelas teorias da conspiração ao desgraçado do triângulo que se tornou numa espécie de culpado por tudo o que de mau acontecia neste lugar do mundo de onde escrevo. Não havia que não aproveitasse a denominação assustadora para criar um monstro que, na realidade, nunca existiu.
O fim do triângulo
Hoje em dia já ninguém fala do Triângulo das Bermudas com medo a entaramelar-lhe a voz. Passou à história. Mas nunca fez parte da História. Pensem lá quando foi a última vez que ouviram falar do assunto. O mais provável é ter sido há mais de vinte ou trinta anos. Como de costume, a imprensa sensacionalista cansou-se de espremer o limão que não dá mais caroços nem sumo, tal como no verso de António Aleixo. E o cinema esgotou as fitas, preferindo manter-se agarrado a sextas-feiras treze a a serial-killers do que ao mar azul-turquesa que se estende à minha frente aqui em Pebbles Beach.
A expressão Triângulo das Bermudas terá sido utilizada pela primeira vez num texto publicado por Vincent Gaddis no qual falava de uma região triangular dentro da qual barcos e aviões desapareciam sem deixar traço. Se foi Vincent ou não a inventá-la já é outro assunto que não dá lugar a certezas. A única certeza que se pode tirar do que escrevi aqui até agora é que o termo, depois de se tornar algo que passou de boca em boca ganhou a capacidade da retroatividade. O SSS Cyclops não desapareceu no Triângulo das Bermudas em 1918. Só veio a desaparecer no Triângulo das Bermudas 46 anos depois quando passou a ser a primeira vítima desta lenda com muito de macabro.
Em 1974, Charles Berlitz escreveu um livro chamado The Bermuda Triangle que foi best-seller nos Estados Unidos e um sucesso universal. Tratou de misturar de tudo um pouco, regressando à Atlântida, mas a confusão deu-lhe lucro. Esqueceu-se de acrescentar que a zona que ganhou a denominação de Triângulo das Bermudas é uma das mais percorridas por aviões e navios de toda a Terra e, portanto, as probabilidades de aí se sucederem acidentes é maior de que em muitas outras bem menos frequentadas.
Detesto estatística. A velha lei que manda dizer que se eu comer um frango inteiro e o parceiro a meu lado não comer nada é certo que comemos meio frango cada um. Pois também o Triângulo do Diabo foi parar à mão de grandes especialistas na matéria. Não bateu a bota com a perdigota. No final de darem a volta ao miolo com contas e mais contas não chegaram a um número exato de incidentes. E, assim sendo, atira-se para o ar: cerca de 50 navios e 20 aviões, seja de que espécie foram, estiveram envolvidos no mistério do triângulo. E ficámos até hoje a saber cada vez menos de quantos e porquê.
Talvez por despeito ou, muito provavelmente, por ter as finanças depauperadas Vincent Gaddis voltou a escrever sobre a zona maldita vários anos após as suas teorias iniciais. Se já não tinha sido levado muito a sério na estreia, perdeu por completo a credibilidade quando papagueou: «Centenas e centenas de navios desapareceram da face da Terra no Triângulo das Bermudas. Ignorar este facto é colocar em risco a vida de muitos inocentes!». Inocente não foi o seu retomar da matéria. Já nada havia mais para escarafunchar num assunto batido e debatido como poucos durante quatro décadas. Vincent fez papel de pacóvio. O mundo já não estava para aturar o diabo do Triângulo do Diabo, desculpem lá a aliteração. Tornara-se uma grandessíssima estucha.