João Miguel Tavares e Rui Ramos têm um programa na Rádio Observador, com o nome E o Resto é História, onde tratam de assuntos os mais variados mas sempre envolvendo a História (Ramos é historiador profissional).
O programa é em jeito de entrevista: Tavares vai lançando os temas, qual pivot televisivo, mete de vez em quando a sua colherada, e Ramos desenvolve. Há uns tempos falaram do meu pai – António José Saraiva. E confesso que fiquei impressionado com o conhecimento que dele tinha Rui Ramos. Disse coisas que eu próprio não sabia, mostrando uma notável erudição. E ‘apanhou-o’ bem. O meu pai era um homem especial, foi comunista e saiu, esteve no exílio, teve uma vida aventurosa, marcou gerações com a sua História da Literatura Portuguesa, e foi do princípio ao fim da vida um homem inquieto, criativo, fervilhante de ideias, com pouco sentido prático. Não era uma figura fácil de retratar. E Rui Ramos fê-lo com notável mestria, bem acolitado por João Miguel Tavares.
Mas no melhor pano cai a nódoa, se nódoa se lhe pode chamar.
Para ilustrar uma certa excentricidade de António José Saraiva, Rui Ramos contou uma história divertida, supostamente vivida por ele em Paris. Um dia esqueceu-se da chave do apartamento, regressou a casa tarde e, para não incomodar ninguém, acabou por passar a noite na rua, num banco de jardim, fazendo ginástica e dando umas voltas ao quarteirão para espantar o frio.
Ora, essa história não se passou com o meu pai. Ele nunca esteve em Paris uma noite ao relento. Passou-se… comigo. E contei-a no livro Confissões de Um Director de Jornal, onde Rui Ramos a deve ter lido. E misturou as coisas (o que não é difícil, pois trata-se de pai e filho e os nomes são quase iguais).
Eu deveria ter uns 17 ou 18 anos, era Natal e ia passá-lo com o meu pai em Paris. Enviei-lhe um telegrama a anunciar a chegada, o que significava um risco, visto não ter a certeza de que ele o receberia a tempo, e meti-me no comboio.
Era o Rápido, o comboio dos emigrantes, que saía de Lisboa às oito da manhã de um dia e chegava a Paris à meia noite… do dia seguinte. Cerca de 40 horas de comboio, com mudança em Hendaia. Os compartimentos iam cheios, cheiravam mal, pois além dos odores corporais muita gente levava comida que naqueles ambiente fechado se estragava.
Eu não levava água, e a água da casa de banho do comboio não era potável, além de que se esgotou a meio do trajeto, pelo que não bebi nada nesse dia nem no seguinte. Cheguei a Paris, à gare de Austerlitz, morto de sede, debrucei-me da janela do comboio para ver se via o meu pai na plataforma, mas nada. Percebi logo que não tinha recebido o telegrama.
Na altura ele morava em Viry-Châtillon, um bairro moderno na banlieu (arredores de Paris). Eu tinha meia dúzia de francos no bolso e fui para a estação donde partiam os comboios locais.
Meti-me no comboio, saí na estação respetiva e pus-me a andar em direção à urbanização onde o meu pai vivia, que ainda ficava longe. Devia ser 1h00 da manhã. Continuava morto de sede e carregava com a mala de viagem. A certa altura passei pelo jardim de um moradia onde estava uma torneira bem visível – e dispus-me a saltar o muro para entrar. Mas nesse instante preciso apareceu um enorme mastim a ladrar. Se eu tivesse saltado, tinha-me desfeito…
Continuei a andar, cheguei ao bloco do meu pai, toquei à campainha e… nada. Insisti, insisti, com o mesmo resultado. Concluí que não estava. Deveria ter ficado no quarto de uma senhora – Teresa Rita Lopes – com quem tinha uma relação. O quarto era em Paris, em Kremlin-Bicêtre, perto da Porta de Itália.
Voltei à estação, disposto a regressar a Paris.
Estava exausto e continuava sequioso. Dirigi-me ao guichet para comprar o bilhete e pedi ao funcionário se me podia arranjar um copo de água. O homem olhou-me com ar desconfiado (os franceses são desconfiados e eu devia estar com um aspeto horrível, depois de 40 horas no comboio, sem comer nem beber e quase sem dormir). Mas lá me indicou as casas de banho onde, segundo esclareceu, a água era potável.
Se não fosse, eu teria bebido na mesma! Mais aliviado, voltei ao guichet e perguntei a que horas era o próximo comboio para Paris. Era às 4h15. Como seriam 1h30, teria de esperar quase 3 horas. Sentei-me num banco da estação e pedi ao homem que me avisasse quando o comboio estivesse a chegar.
Não dei pelo tempo passar. No momento seguinte o homem estava a abanar-me e o comboio a entrar na gare. Trepei lá para dento, mais a mala, chegámos a Paris, saí, e enfiei-me no Metro para ir para a Porta de Itália. Lá chegado, encaminhei-me para o prédio (antigo) onde morava Teresa Rita, subi ao 4º andar, sempre a arrastar a mala, respirei fundo e toquei à campainha. Rezei para que do interior viesse algum som. Mas nada. Voltei a tocar. Bati com os nós dos dedos na porta e chamei «Pai!». Mas o meu pai ouvia muito mal e vi logo que não ia resultar.
Estava eu nisto, quando se abre a porta do quarto ao lado e surge na ombreira um velhote em camisa de noite que eu conhecia de outras vezes: Lionel Pachman; um pianista polaco fugido à guerra, reformado, mas que de vez em quando fazia umas récitas.
Deu-me uma descompostura. Tinha um concerto no dia seguinte, queria dormir e eu acordara-o. Pedi desculpa e conformei-me.
Sentei-me na escada, encostado à mala, e preparei-me para esperar. Estava um frio de rachar. Seriam umas 4h00 da manhã. Adormeci. Acordei de madrugada, às 6h00, petrificado. Lá fora os vidros estavam cobertos por uma camada de gelo. Levantei-me a custo e fiz uns exercícios para restabelecer a circulação.
Escrevi um papel contando ao meu pai o que se passava, e meti-o por baixo da porta. Saí para a rua na intenção de apanhar os primeiros raios de Sol para aquecer o corpo. Paris acordava. Decidi ir ao hotel onde vivia uma amiga do meu pai, Maria Lamas: o Hotel Saint Michel, na rua Cujas.
Fiz horas deambulando pelas ruas e cheguei lá por volta das 9h00. Atendeu-me a dona, que fazia de rececionista, chamada Madame Salvage, a quem perguntei por Maria Lamas. Esta, avisada, desceu pouco depois. Vinha de roupão. Contei-lhe a história. Ouviu-me com ar compungido e acabou por me informar:
– Olhe, o seu tio Fernando está cá mas vai hoje para Lisboa, o seu pai deve ir despedir-se dele à estação, o comboio parte por volta do meio-dia.
Fui para a Gare de Austerlitz, onde tinha desembarcado umas horas antes. Parei a meio da estação, a ver num painel as horas de partida dos comboios. Mas estava tão cansado que não conseguia atinar com as linhas. Olhava e tornava a olhar, com medo de estar a ver mal. Acho que adormeci em pé. Até que senti umas pancadinhas nas costas, voltei-me – e era o meu pai! Contou-me que dormira na Porta de Itália, leu o meu papel, foi ao hotel de Maria Lamas, ela contou-lhe a conversa comigo e disse-lhe que eu tinha ido para a gare de Austerlitz… e ali estava ele.
Poucos encontros na vida me souberam tão bem!