É um tema incómodo, que poucos têm coragem para abordar. Mas a intuição diz-me que o tempo das democracias como existem no Ocidente está a aproximar-se do fim.
Não será para amanhã nem para depois, mas começará a falar-se seriamente disso dentro de uma ou duas gerações.
A ascensão de partidos de extrema-direita na Europa é já um sinal do que está para acontecer.
Hoje ainda há muita gente a pensar que esta democracia que temos representa ‘o fim da História’.
Que, depois de ter sido descoberta, ela irá conquistando cada vez mais adeptos – e que nesse sentido evoluirão os regimes autoritários ou antidemocráticos da África, da Ásia e da América Central e do Sul.
Ora, a História ensina-nos que nunca se atinge ‘o fim da História’.
Quando julgamos que já alcançámos aqui e ali a perfeição, o ponto máximo, vem sempre qualquer coisa a seguir.
Depois da democracia também virá alguma coisa que ainda não sabemos o que é.
Este modelo político que hoje vigora no Ocidente foi inventado há dois séculos, com a revolução liberal – quando não havia jornais, nem telefone, nem telégrafo, nem TV, nem internet, nem redes sociais.
É anterior à revolução industrial, quando não havia comboios, nem automóveis e muito menos aviões.
É ainda do tempo do colonialismo, quando hoje estamos no tempo das migrações. É do tempo das economias nacionais, quando vivemos o tempo da economia global.
Este modelo político foi, portanto, criado num mundo que já nada tem que ver com o de hoje.
O Parlamento era a sede do debate político.
Ora, hoje, as grandes discussões fazem-se nas redes sociais, nos debates televisivos; os debates parlamentares são uma coisa do passado.
E que, além disso, proporcionam espetáculos deprimentes.
Não são lutas de ideias – são meras lutas pelo poder.
Que levam as pessoas a terem cada vez menos respeito pelos partidos e pelos políticos.
Já ninguém pode com as suas guerras, que só a eles interessam.
Os partidos são indispensáveis. Sem partidos não há democracia.
Mas transportam com eles os piores vícios do sistema: facciosismo, compadrio, tráfico de influências, nepotismo, corrupção.
Como não estão focados no interesse nacional mas nos seus próprios interesses particulares, as suas lutas enfraquecem internamente as nações.
Apesar de tudo, a existência de dois grandes partidos, como acontecia no princípio do constitucionalismo, tornava o funcionamento do sistema mais simples.
Era o rotativismo.
Como ainda existe nos EUA, com democratas e republicanos alternando no poder.
Mas a pulverização do universo partidário complicou enormemente a formação dos governos e tornou os regimes mais instáveis.
Podia continuar a elencar questões, como a existência (em Portugal, sobretudo) de um Presidente da República e de um primeiro-ministro que tendem a ser dois galos numa mesma capoeira.
Vejam-se os confrontos Eanes-Soares (e Sá Carneiro), Soares-Cavaco, e agora Marcelo-António Costa.
Mas não vale a pena dizer mais.
Do que já foi dito, resultam dois graves problemas que afetam o funcionamento das democracias:
1. Falta de autoridade do Estado;
2. Fragilidade do poder executivo.
A falta de autoridade do Estado reflete-se em tudo, a começar pelo caos no sistema educativo, onde a hierarquia se desmoronou e se instalou um clima de violência e indisciplina (por parte de alunos e professores).
Outro exemplo é a França, que já vive há anos em ambiente pré-revolucionário.
Quanto à fragilidade do poder executivo, reflete-se na constante incapacidade de decisão.
Como os partidos vivem do voto, temem tomar decisões que afrontem os interesses deste ou daquele grupo – e ficam paralisados.
Veja-se a dificuldade de decidir a localização do novo aeroporto de Lisboa; que não é de hoje: o tema vem do tempo de Marcello Caetano, que deixou o poder há 50 anos!
A estes dois problemas graves do funcionamento interno das democracias veio somar-se mais recentemente uma ameaça externa: as migrações.
Que estão a testar os sistemas democráticos e a pressioná-los, de fora e de dentro.
Contribuem em cada país para os choques culturais, o enfraquecimento da coesão, a conflitualidade, a corrosão da identidade nacional.
Sei de pessoas que viviam na Bélgica, na Holanda, em Inglaterra, nos EUA, e que deixaram os seus países e vieram viver para Portugal – não por causa do nosso belíssimo clima mas porque começaram a sentir-se mal onde viviam.
Começaram a sentir-se intrusos na sua própria terra.
Tudo isto indica que este modelo de democracia está gasto e carece de ser reinventado.
A minha intuição diz-me que vamos evoluir na Europa para regimes com um poder mais centralizado – um chefe do Estado com poderes executivos – e um Parlamento com a importância diminuída.
Também haverá uma tendência para um reagrupamento das forças políticas em dois grandes blocos, com capacidade para governarem sozinhos.
Será um sistema mais ‘musculado’, se quisermos.
Que se traduzirá num acréscimo de autoridade do Estado, diminuição da conflitualidade ao nível superior do poder, maior capacidade de decisão, redução da intensidade das guerrilhas partidárias, menor instabilidade política.
Tenho uma forte convicção de que as democracias irão evoluir neste sentido.
E, se não o fizerem, serão provavelmente substituídas por modelos autocráticos. Por ditaduras. Por não aceitarem certas transformações, algumas democracias acabarão por se entregar aos inimigos.
As colunas ‘Política a Sério’ e ‘Viver para contar’ (na revista LUZ) não serão publicadas na próxima edição, estando de regresso a 11 de agosto