Proa ao Mar porque aos políticos falta-lhes água salgada nas veias

Vivemos numa autoflagelação constante. O queixume lamenta-se, a inveja apega-se e o ressentimento golpeia-nos. Sobram comédias para os que pensam e tragédias para os que sentem.

Por Luís Castro, Jornalista

Os Portugueses não sabem admirar, mas admiram-se; não elogiam, mas gabam-se; não reagem, mas queixam-se; não se somam, mas subtraem-se. Enfim, reclamam muito, mas exigem muito pouco. Enquanto uns jogam às cartas com a miséria dos outros e se se riem à beira da cova, a sete palmos empilham-se as caveiras umas sobre as outras. Foram-se as almas e ficaram-nos os murmúrios.

Vivemos numa autoflagelação constante. O queixume lamenta-se, a inveja apega-se e o ressentimento golpeia-nos. Sobram comédias para os que pensam e tragédias para os que sentem. E se os tolos não vão ao Teatro porque a Televisão lhes leva o circo visto de perto – mesmo que lhes falte o pão –, os sábios já não se querem porque a audiência da tragédia é maior do que a da esperança. 

Há quem nos diga que a grande fatalidade do mundo é não cultivar a Memória; que ela é a nossa identidade e guarda tudo o que vale a pena – ou todas as histórias não começassem com uma memoração. Mas a Memória já não mora cá – fundearam-na – e dela já só restam gotejos desses passados que alguns preferem apagados. 
Há vinte e cinco anos, por estes dias, regressavam a Lisboa quase mil soldados e com eles milhares de portugueses resgatados de uma guerra que os correu a tiro. Foi a maior operação de sempre das Forças Armadas Portuguesas em quase cinquenta anos.

Não tiveram honras à chegada. A gratidão já tinha memória curta e os políticos não eram diferentes. É verdade, os devedores sempre tiveram pior memória do que os credores.

Enquanto António Guterres e Jaime Gama coçavam a cabeça, generais e almirantes como Gabriel Espírito Santo, Reis Rodrigues ou Vieira Matias, já falecidos; outros, ainda vivos, como Luís Araújo, Melo Gomes e Braz de Oliveira, punham uma força naval, aérea e terrestre às portas da Guiné-Bissau. Bastaram quatro dias e foi necessário que um deles ameaçasse com a imprensa para que a decisão política saísse e tivessem ordem para subir a foz do Geba até Bissau.

A tomada de decisão dos políticos é diferente da dos militares e na Guiné a dessintonia só não deu em asneira porque a tropa mostrou o sentido do dever e porque tinha bem definidas as regras de empenhamento. No meio dos bombardeamentos, sem qualquer enquadramento militar, o embaixador Henriques da Silva conseguiu retirar os primeiros portugueses, metendo-os num navio mercante. Revisitar as imagens dessa altura ainda arrepia. 

As histórias da ‘Operação Crocodilo/Falcão’ estão atracadas nos livros Bissau em Chamas (Reis Rodrigues), Crónicas dos Desfeitos da Guiné (Henriques da Silva) e Repórter de Guerra (meu). O comandante militar levanta âncora desde o momento em que a Marinha desfilava no Tejo para inaugurar a Expo-98 e o embaixador marola o dramatismo de quem sabia que tinha nas mãos a vida de milhares de portugueses e cidadãos europeus. O repórter, lá da vigia, assume o que fez – e fez muito mais do que se pede a um jornalista –, no caso repórter de guerra da RTP.

Sim, organizei as primeiras reuniões que conduziram ao processo de paz, levando os rebeldes da mata para a mesa das negociações na fragata Vasco da Gama. Sim, fiquei com a fama de ser do SIS. Não era, não fui e não sou, mas fiz o que qualquer espião faria. Portugal pediu-me e eu servi a Pátria por um bem maior – a Paz. Não me arrependo. Orgulho-me.
Sim, alterei o curso da guerra na Guiné-Bissau e vou contá-lo nas próximas edições do Nascer do SOL. Valeu-me uma sentença de morte que só não foi executada porque o fogo cruzado que estava preparado para a minha chegada foi descoberto pela fragata e pelo embaixador. Intercetada a comunicação, os fuzileiros portugueses extraíram-me. Devo-lhes a vida.

Esta semana, a RTP 2 exerceu o direito à Memória em dois programas do Sociedade Civil que estão disponíveis no RTP Play. Neles, são exibidas imagens nunca emitidas e os protagonistas contam na primeira pessoa. São documentos históricos que deviam ser revisitados pelo abstrato Comandante Supremo, mas ele percebe pouco disto – o padrinho safou-o de ir para o Ultramar.