Ao que nós chegámos!

Se não forem tomadas medidas, não faltará muito para se ouvir dizer que não há dinheiro para comer. Paradoxalmente, Portugal parece estar a tornar-se num país de contrastes…     

Ainda há pouco tempo num dos seus pertinentes e esclarecedores comentários ao domingo na SIC do dr. Luís Marques Mendes dos quais sou um assíduo espetador, chamou-me à atenção um gráfico por ele apresentado com uma elevada percentagem de portugueses que, face às precárias condições económicas, já não consegue adquirir medicamentos. Como profissional de saúde, mas também como cidadão interroguei-me logo, fiquei pensativo, mas, não posso dizer que tenha ficado surpreendido.

Conhecedor do problema, ainda comentei com a minha mulher: ‘Ao que nós chegámos’! Lia-se nas entrelinhas que aquele conceituado analista estava mesmo preocupado com a gravidade da situação e lançava o seu alerta aos principais responsáveis pelo estado a que se chegara. Nos dias que se seguiram (e ainda hoje isso acontece), alguns doentes meus falaram-me no assunto procurando saber a minha opinião. Tenho alguma experiência na área visto ter lidado de perto com esta realidade enquanto médico de família. A principal causa tem a ver com os baixos salários dos portugueses que, lutando desesperadamente pela sobrevivência, se veem na necessidade de cortar aqui e ali para não lhes faltar o essencial no dia a dia. Trata-se, portanto, de um problema estrutural que sucessivos governos têm deixado arrastar sem a devida sensibilidade para atacar o ‘mal pela raiz’. Depois, é preciso não esquecer como está hoje a medicina onde, por tudo e por nada, se usa e abusa da medicação e se recorre indiscriminadamente aos meios complementares de diagnóstico nem sempre justificados. Daí eu entender que a minha classe tem sempre uma palavra a dizer sobre o assunto, não podendo demitir-se dessa responsabilidade.

Já lá vão uns anos quando eu participava com alguma regularidade no Jornal das 9 da SIC-Notícias conduzido por Mário Crespo e numa dessas entrevistas este categorizado jornalista de quem ainda hoje sentimos a falta nos ecrãs, questionou-me sobre o tema. Para seu espanto e de muitos telespetadores, ao falar na minha experiência, denunciei casos flagrantes em que muitos doentes me perguntavam nessa altura, quanto custava a medicação, enquanto outros confessavam mesmo terem de tomar fármacos em dias alternados para o tratamento durar para mais tempo. Conforme se vê, o problema não é de agora e arrasta-se há vários anos com tendência para o agravamento. Recentemente quis referenciar um doente a um especialista hospitalar mas como ele não trabalhava para o seguro de saúde que o cliente dispunha, voltou à minha consulta pedindo-me outras alternativas, já que não tinha possibilidades de pagar aquele serviço do seu bolso. E estamos a falar, por enquanto, da área da saúde. Se não forem tomadas medidas, não faltará muito para se ouvir dizer que não há dinheiro para comer. Paradoxalmente, Portugal parece estar a tornar-se num país de contrastes: por um lado são evidentes estas falhas preocupantes aos olhos de toda a gente. Por outro, constatamos que os andares de luxo são os primeiros a serem vendidos, os carros de gama alta estão com uma lista de espera superior a um ano e os salários de alguns imoralmente elevados. O retrato da situação é este.

É preciso atuar o quanto antes. Aos nossos governantes recomendaria que olhassem para o problema com olhos de ver e não o deixassem agravar ainda mais. É a eles que compete tomar decisões e travar esta tendência desastrosa de caminhar para o abismo. Aos meus colegas, que tenham bem presente as recomendações da nossa Ordem: ‘O médico tem o direito à liberdade de diagnóstico e terapêutica, mas deve abster-se de prescrever exames ou tratamentos desnecessariamente onerosos ou realizar atos médicos supérfluos’. Aos cidadãos, que não desanimem nem percam a esperança, devendo apresentar os problemas junto de quem os possa ouvir, como, por exemplo, as autarquias. Cruzar os braços nunca! Como o dr. Marques Mendes nos lembra com a lucidez que o caracteriza: «É preciso ter mais ambição». E não terá ele razão para o dizer?