É muito reservado relativamente à sua vida privada como já afirmou em algumas entrevistas. O Rui Melo que conhecemos em cena e na televisão é muito diferente daquele que toma conta do filho ou janta com os amigos? Necessariamente, sim, porque o que as pessoas veem na televisão quase nunca sou eu. Costumo dizer que nós, atores, estamos um bocadinho protegidos pelas personagens. Nós podemos dizer e fazer aquilo que quisermos, porque estamos defendidos, porque não somos nós a fazer. O que as pessoas veem na televisão não sou eu. Eu não sou uma personagem vil e maléfica como o Simão da série, por exemplo, e não sou psicólogo como o personagem da novela.
Acha que é importante manter uma certa reserva nesta área? Não. Eu entendo perfeitamente que haja quem se sinta à vontade e confortável para expor o que quer que seja da sua vida privada. Eu é que não me sinto confortável. Isso é uma característica pessoal. Eu, de facto, sou um bocadinho tímido.
E como é que é o Rui na sua vida pessoal? O que eu gosto mesmo, e cada vez mais, é de ter um grupinho de amigos a jantar lá em casa. Gosto de muito tempo de descanso, tempo para estar com os meus e muito tempo para mim, para poder simplesmente existir. Cada vez mais ando focado nisso. Ter tempo para os meus, mesmo que isso me prejudique a nível profissional. E acontece. Mas é uma opção minha. Quando eu não aceito fazer determinado projeto, porque isso me obriga a trabalhar 12 horas por dia… É difícil. Já aconteceu, está a acontecer neste momento. Quero ter mais tempo para mim, poder ir levar e buscar o meu filho à escola. Isso para mim são as coisas importantes, porque a vida passa a correr. Não estamos a falar de existencialismo, não é nada disso! É só achar que já corri muito, já fiz muitos sprints. Agora quero correr menos!
Mas nasceu no Alentejo, em Évora… Foi lá que passou a sua infância antes de vir para Lisboa. Acredita que crescer num meio mais pequeno acaba por moldar as pessoas? O que molda sempre são as pessoas e a forma como nos relacionamos com elas. O que o que nos molda é a nossa relação com os nossos pais, com os nossos familiares mais próximos, com os nossos amigos de infância. Isso molda-nos. Há uma coisa muito engraçada, às vezes penso nisso: toda a gente me identifica como um ator de humor, de comédia. As pessoas mais engraçadas que eu conheço são os meus amigos de infância de Évora. Foi com eles que eu aprendi a rir. Eram eles que me faziam rir e não o contrário. E foi daí que eu fui beber. E ao longo da vida também. Se calhar o sítio também tem relevância, mas mais do que o sítio as pessoas que existem nos sítios.
Que recordações ficaram da sua infância? Felizmente tive uma infância muito feliz e isso é ótimo. Uma infância sem pressas e sem preocupações, de alguma forma privilegiada. Uma infância onde era possível ficar a brincar na rua até às 23h, meia noite, em tempo de férias, claro. Mas era possível. Não havia perigo. Era possível atravessar a cidade de bicicleta. Poder ir para casa da minha avó… Isso é uma das coisas que mais tenho pena de não poder oferecer ao meu filho.
Nasceu dois meses depois do 25 de abril. É, por isso, um filho da revolução. Mas, ao mesmo tempo, já afirmou que apesar de na sua casa se respirar liberdade, Évora ainda era um meio um bocadinho conservador. Em que medida isso influenciou o seu crescimento? A cidade de Évora é um meio conservador. Não estou a dizer toda a cidade, mas o meu núcleo é. Ainda é um bocadinho. A minha relação com Évora é uma relação próxima, mas agora muito mais à distância. Eu vou lá raramente. Mas influenciou e condiciona sempre. Eu era, e isto é uma coisa que eu não digo com orgulho, até uma certa idade, conservador, homofóbico, um bocadinho misógino. Isso tem a ver com as características do meio. Eu antes achava que a homossexualidade era uma escolha… Tinha isso como verdade aos 15 anos. Julgava. Chegou a uma certa altura que percebi a minha estupidez. A isso chama-se crescer e evoluir. Acho mais difícil para quem continua inserido em meios mais pequenos e mais conservadores, conseguir ter a distância para ver de fora. Felizmente, aos 19 anos, vivi isso, na minha vinda para Lisboa. Comecei a olhar de fora.
E não sente vergonha em admitir esse seu passado… Tenho um bocadinho de vergonha, mas nós estamos aqui para crescer e evoluir.
Apesar de não ser profissional, o seu pai era músico. Em que altura a música entrou na sua vida? De que forma a via e sentia em pequeno? A música esteve sempre presente na minha infância. O meu pai era músico. Desde pequenino que me mostrava discos e eu sempre manifestei interesse por música. Jacques Brel, The Beatles, Joan Baez… Portanto, eu tive contacto com esta diversidade musical desde muito cedo. Ah! E Chico Buarque… Lembro-me também de ter seis ou sete anos e devorar a Ópera do Malandro a ler as letras no vinil. Isso é uma coisa muito marcante. Aprendi desde muito cedo que, de facto, ‘as boas canções são poemas ajudados’. A música esteve sempre presente e os instrumentos também.
E o que mais cantavam juntos? Cantávamos essas canções, muitas coisas do cancioneiro tradicional. O meu pai sempre foi um cancioneiro tradicional em reserva… Também cantávamos algumas canções infantis da época. Lembro-me do Carlos Alberto Moniz e da Maria do Amparo. Lembro-me do Samuel, lembro-me do Zé Barata-Moura, Cantávamos essas todas.
Mas apesar de te esta grande paixão, acabou por estudar Direito em Lisboa. Cedeu a algum tipo de pressão? Tinha algum pudor? Não estava nos horizontes de ninguém em Évora, em 92, ser músico. Num meio conservador, fechado, distante de Lisboa, essa ideia era algo distante. Eu achava que tinha de cumprir o desígnio de todos os outros: fazer o liceu em Évora e um curso superior para depois exercer de novo em Évora o que quer que fosse.
Mas aos 19 anos começou a sua carreira como músico, a tocar no bar do seu amigo Mico da Câmara Pereira. Nessa altura, como via o futuro? A representação ainda não tinha surgido na sua vida… Aí é que eu percebi! ‘Se continuar a estudar Direito vou ser infeliz para o resto da minha vida, não vou ser feliz atrás de uma secretária a trabalhar no escritório. É aqui, no palco, a cantar para três pessoas que eu sou feliz’, pensei. (risos)
E como é que surgiu essa oportunidade? Foi por acaso. Lá está, eu conheço o Mico de Évora e ele tinha um bar em Lisboa. Partilhei com ele numa noite de copos que sentia que estava a perder o meu tempo e ele disse-me que se quisesse podia tocar lá uma vez por semana a ser pago. Depois as coisas aconteceram muito depressa…
A vida noturna não é fácil. Disse numa entrevista que, nessa altura, se deitava com o sol já alto e acordava às 17h. Foi um período importante para o artista em que se transformou? Todos os períodos são importantes, acho eu. Não sei sequer se é do ponto de vista artístico, ou se é apenas do ponto de vista humano. Sim, passei por essa experiência. Vivi intensamente a noite, mesmo muito intensamente. E isso, de alguma forma, moldou-me mais uma vez enquanto pessoa.
E sente que existe algum preconceito ou algum estigma relativamente aos artistas? Ainda se pensa que os artistas são boémios, por exemplo? Não tenho a certeza. Eu até acho que se inverteu um bocadinho a coisa, porque acho que, hoje em dia, a profissão de ator, por exemplo, é vista com glamour e isso é uma coisa de alguma forma perigosa. Eu não acho que a profissão de ator seja glamorosa porque envolve muito trabalho. Acho que a maior parte dos miúdos que dizem que querem ser atores não têm noção do trabalho, das frustrações e das rejeições pelas quais um ator passa. É uma coisa que tem que ser levada muito a sério. Não é um sprint, é uma maratona. Eu digo sempre isto, mas é verdade, é uma profissão difícil, que exige muito de nós, muita entrega. Portanto, esse glamour é só uma ínfima parte que é tristemente a mais visível para as pessoas. Mas tudo o que está por trás disso, implica comprometimento e isso, às vezes, é pesado, cansativo e doloroso. Mas, também por isso, só pode ser feito por quem gosta.
E como é que se deu o salto para a representação e apresentação? Estreou em televisão em 1997 como cantor fixo no programa ‘Paródia Nacional’ da SIC. Para si era um mundo novo… Mais uma vez, por acaso… (risos) Eu tocava num bar chamado Xafarix, um bar emblemático na zona de Lisboa, do Luís Represas e do Cajó. Em 97, a Teresa Guilherme, o António Reis e a Ana Torres, que na altura eram da produtora TGSA, Teresa Guilherme Sociedade Anónima, estavam no bar e, no final da noite, vieram ter comigo e disseram: ‘Olha, nós vamos produzir um programa assim, com estas características. Estamos à procura de atores, cantores…’. Eu às três da manhã, já com uns copos em cima, disse ‘Bora!’. Um dia ou dois depois, fui ao casting e acabei por ficar, meio inconsciente. Não tinha a menor noção da repercussão que o programa ia ter. Era uma coisa divertida. Eu fiz para ver se ganhava mais uns trocos porreiros, ia aparecer na televisão… E, de repente, o programa foi líder de audiência durante um ano. Isso num tempo em que as audiências eram muito diferentes das que são agora. Portanto, foi assim uma mudança muito radical. Eu não procurei isso. As coisas de alguma forma caíram-me no colo, o mérito é saber aproveitá-las. Aconteceu!
Mas quando se deparou com esse universo, ficou assustado? Não. (risos) Eu era inconsciente. Eu acho que a malta que tem 20, vinte e poucos anos agora, é muito mais consciente do que eu era quando tinha 20. Eu acho que era um tonto, não pesava nas consequências, não refletia sobre as coisas e tomava decisões por impulso. Algumas correram bem, outras nem tanto. Mas fui aprendendo com todas as coisas.
O que é que a ‘Floresta Mágica’ lhe trouxe em 2002? A ‘Floresta Mágica’, mais uma vez, foi a oportunidade de dar continuidade a um trabalho dentro de uma equipa que eu já conhecia bem, vinha de uma peça de teatro que se chamava ‘Festa na Floresta’. Transpuseram aquela narrativa e aquelas personagens para o programa de televisão. Aí comecei a fazer o contrário do que fazia. Acordar às 6 e meia da manhã para estar no estúdio, para fazer os espetáculos… De repente a minha vida deu uma volta. Só me custava acordar cedo. (risos)
Vivem momentos muito intensos uns com os outros. No final dos projetos mantém-se contacto? Esta profissão é muito engraçada porque, como dizia um encenador com quem eu trabalhei, nós quando estamos a trabalhar em teatro, por exemplo, estamos a contar com o melhor de cada um. Cada pessoa que está num processo de ensaios, está lá inteiro e, portanto, nós facilmente nos apaixonamos. Platonicamente, claro, mas apaixonamo-nos uns pelos outros. Mas é muito curioso que, passado aquele período em que ensaiámos e fizemos o espetáculo, se calhar depois de terminar o espetáculo, três ou quatro meses depois, nunca mais estamos com essas pessoas. É um bocadinho triste, mas ao mesmo tempo, é como as relações. O tempo que durou foi intenso. Isso é bom. É claro que há exceções. Eu tenho grandes amigos e amigas do tempo da ‘Floresta Mágica’ e da ‘Festa na Floresta’. A produtora do espetáculo ainda hoje mora na minha rua, janto com ela algumas vezes. Outras ficam pelo caminho, mesmo prometendo a nós próprios que vamos combinar um café para a semana.
Como dizia, a televisão está muito diferente. Do que é que sente mais saudades dessa altura? Eu não sou muito saudosista. A única coisa de que tenho saudades é de bons programas de conversa. Eu sou do tempo do Joaquim Letria e do Carlos Cruz fazerem excelentes programas à noite de conversa com entrevistados. São coisas meio biográficas. E como também gosto de ler biografias, sinto falta disso. Os programas de talk shows.
Trabalha como ator, encenador, músico, produtor, escritor… Esse desdobramento faz com que a monotonia não se instale, que seja mais completo? Ou sente que isso o dispersa? Um mal nunca vem só, não é? (risos) Isto pode ser encarado de várias formas… Porque, por um lado, ser e fazer muitas coisas aumenta as minhas possibilidades de sobrevivência. (risos) Esta profissão é tramada. Portanto, quando não tenho tanto trabalho como ator, se calhar , dedico-me à música. Depois, traz-me valências que a maior parte das pessoas não tem. Um encenador que não é músico, não encena da mesma forma um musical. Quando encenei a ‘Avenida Q’, o facto de ser músico ajudou-me muito… Também é um abanar da monotonia, fugir à monotonia. Mas eu vejo sempre isto como: ‘Ok! Eu vou-me safar!’. Posso trabalhar como ator, encenador, músico. E quando puder juntar tudo, perfeito.
Numa entrevista falou de Síndrome do Impostor. Está sempre à espera que alguém descubra que é mau ator. Porquê? Não sei… Estou sempre à espera. Se falares com a maior parte dos atores que conheço eles vão dizer-te que são inseguros. Acho que está relacionado com essa insegurança. Cada vez que partimos para um projeto, partimos do zero. Isso acontece de x em x meses. E quando partimos, partimos para tábua rasa. Agora estamos todos aqui, ao mesmo nível. Isso é muito angustiante.
Mas também diz que tem uma forma um pouco ingénua e muito positiva de olhar para as coisas. Isso ajuda-o a viver neste mundo louco? Eu não me lembro em que contexto disse isso, mas sim, eu tenho essa ingenuidade. Mas, ao mesmo tempo, também sou um bocadinho pessimista. Eu acho que depende sempre da fase. O facto de não ter feito a Escola Superior de Teatro e Cinema dá-me essa ingenuidade de partir para um projeto que é tábua rasa desde o início e atirar-me de cabeça.
Também já disse que tem algum pudor em dizer que é ator precisamente por não ter formação… Sim, mas isso vai passando.
Nesta altura fala-se muito das escolhas de casting, do pessoal sem formação, com seguidores nas redes sociais… Fala-se mais dos números de seguidores do que da formação. A formação é o que menos conta neste momento. Antigamente havia uma coisa muito engraçada, que era a carteira profissional, que eu acho que era fundamental que voltasse a existir. Só que, como está conectado com o Estado Novo, às vezes é mal visto. Mas o que essa carteira fazia? Se tivesses formação ou currículo, podias trabalhar enquanto ator. E tinha uma espécie de níveis: se tivesses feito x espetáculos, tinhas direito a ser de uma determinada categoria que te permitia receber mais. Era a tua formação e currículo que te validavam enquanto profissional. Isso agora não acontece. Qualquer pessoa pode chegar a um casting e dizer que é ator. O que é que define se és ou não ator? Nada… Isso pode ser perigoso.
Porque há espaço para todos, mas ao mesmo tempo não há? Decididamente não há espaço para todos. Decididamente, mesmo para os atores que saem todos os anos de cursos, não há espaço para todos. Formam-se demasiados atores em Portugal. Mas lá está, a vida vai-se encarregando de separar o trigo do joio. Quando eu digo isto, não quer dizer que os mais talentosos fiquem e os menos não. Às vezes são os mais persistentes, ou os que têm maior estrutura emocional e financeira para poder aguentar as fases difíceis de que falávamos…
Em Portugal, os atores não estão tão protegidos como noutros países. A profissão não é contínua, há períodos em que há falta de trabalho, há injustiças nas escolhas de elencos… Como é que vê este panorama? É uma coisa que atormenta sempre, mesmo que se tenha trabalho, não é? Já não. Eu aprendi a lidar com isso. Lembro-me que, há muitos anos, fazia confusão ao meu pai, eu não saber o que ia fazer dali a seis meses. Porque é assim a nossa vida, nós não sabemos de facto o que é que vai acontecer na nossa vida daqui a seis meses.
Isso faz-nos sentir de alguma maneira vivos? A mim, o que me trouxe, foi uma espécie de aceitação. A partir de certo momento comecei a aprender a lidar com isso e comecei a perceber que tenho que poupar dinheiro quando estou a ganhar, porque não sei quantos meses vou ficar sem trabalho a seguir. Mas, ao mesmo tempo, também comecei a aproveitar mais os tempos de pausa. Pena não serem férias remuneradas…
E no palco? Aprende-se sobre a vida? Ensina-se sobre a vida? Depende dos textos, das pessoas, dos encenadores. Tudo pode ser uma aprendizagem. O que o palco nos ensina, acho eu, é esta possibilidade de entrar em contacto com o melhor de cada uma das pessoas. E não há nada que nos ensine mais do que essa disponibilidade, essa disponibilidade para conhecer de facto as pessoas, para conhecer outros pontos de vista, para conhecer outras abordagens a um tema, essa é a melhor aprendizagem.
E também deve aprender muito sobre si próprio… Seguramente, nem que seja: ‘Eu tinha esta ideia e afinal estou completamente enganado!’. E eu sou, felizmente, daqueles que não têm medo nenhum de mudar de opinião.
Isso é uma grande qualidade… Não sei… (risos) Eu acho que nós vivemos numa altura em que toda a gente quer muito ter uma opinião e toda a gente defende a sua opinião como se fosse a mais relevante. E eu, como diz o Jorge Drexler, que é um músico que eu gosto muito, estou naquela idade em que as certezas caducam. Quanto mais velho vou ficando, menos certezas eu tenho. Isso é muito bom.
E nesta profissão, é difícil gerir e lidar com egos? O meio televisivo, em particular, é muito competitivo? É, mas não é que eu sinta isso. Particularmente na televisão, eu passo bem, vou lá, faço o meu trabalho e volto para casa.
E os fantasmas das personagens, vão consigo até casa? Só no processo de construção, mais em teatro do que na televisão. Em televisão tenho 15 cenas num dia, quando acabo de fazer uma, já não me lembro do texto. No teatro é completamente diferente. Eu tenho textos de teatro que disse há 20 anos e que me lembro. Esse processo de descoberta, lá está, de escrever em tábua rasa, pode ser doloroso, por exigir muito trabalho, muita reflexão, muitas abordagens e, muitas vezes, mudanças de direção. Tu achas que é uma coisa e, afinal, o encenador diz-te que não é e tu tens que apagar tudo o que fizeste. Isso é muito doloroso, porque despendeste muito tempo. Essa coisa de ir para casa em processo de teatro, às vezes, é mesmo angustiante. Não desligas. Ficas a pensar.
O texto é a base de tudo? Sim! O texto é a base de tudo! Qualquer ator que achar que vai para um platô ou para uma sala de ensaio, olha e executa é parvo. Se o texto for bom e se o diretor ou encenador for bom, então tu tens que fazer tudo para conseguir corresponder a isso, porque o material está todo lá e a única forma de tu conseguires corresponder a isso é trabalhar afincadamente, ler e ler e ler e ler e ler, nem que seja para na décima leitura perceberes alguma coisa que ainda não tinhas percebido, uma nova forma de fazer as coisas.
É como tocar um instrumento. É impossível tocar um instrumento se não passares muitas e muitas horas a falhar, a pisar mal a corda, a pisar mal no pedal do piano, a dar a nota ao lado. Se tu não passares muito tempo a praticar, nunca serás bom. Quando as personagens não me dão trabalho, eu desconfio.
A série ‘Por do Sol’, uma sátira às novelas, foi um sucesso nacional. Como é que surgiu esta ideia? A ideia surgiu entre amigos, entre mim e o Manuel Pureza, que é o realizador da série. Tinha acabado de filmar o ‘Até que a Vida nos Separe’ há dois ou três dias. Ele, que caiu num pote de criatividade quando era uma criança, ligou-me a perguntar se eu tinha em mente algum projeto. Apetecia-lhe fazer uma coisa fixe, que o divertisse. E eu tinha uma ideia que, na verdade, nem era só minha, era do Henrique Dias, com quem eu já jantei muitas vezes… Fazer uma sátira às novelas. Uma novela a gozar mesmo! No fundo gozar connosco próprios. Marcámos os três uma reunião ZOOM no dia seguinte e ficámos até às 3 da manhã a estruturar o que viria a ser o ‘Pôr do Sol’.
Claro que tinha de ter uma família rica, tinha de se passar numa quinta com cavalos, teria de haver uma empresa, que se transformou numa revista, tinha de ter o grupo dos pobrezinhos que só diz parvidades… Tem de ter uma banda… É isso que existe nas novelas todas. Tinha de ter todos os clichês das novelas da ficção nacional.
E, na sua opinião, qual foi o segredo para este sucesso? Sente que em Portugal, as pessoas têm dificuldade em arriscar em novas produções e histórias? As pessoas não! As estações é que têm medo, dificuldade. Eu acho que os diretores de canais têm de facto medo, mas porque também eles têm de responder a todas as direções dos seus grupos. Se um grupo diz assim: ‘Tens carta branca para nos próximos cinco anos perder não sei quanto dinheiro’. Tenho a certeza que ele iria investir em séries e produtos de outro tipo. Se a direção de uma estação disser que no final do ano tem de ter lucro, não há nada a fazer. Temos de investir nos produtos que sabemos que funcionam.
Da série resultou uma banda, os Jesus Quisto, que tem dado concertos pelo país fora. Já estiveram nos Coliseus, no Nos Alive, Festival da Canção… Isto foi delirante para toda a equipa, não? Como é que isto aconteceu? Cá está… Mais uma vez, como tudo acontece na minha vida. Por acaso! (risos) Começaram a aparecer convites logo na primeira temporada. Eu lembro-me de haver 2 ou 3 festivais a quererem os Jesus Quisto. Mas esta banda não existe, é mera ficção. Insistiram tantas vezes e uma produtora disse-me: ‘Olha e se nós montássemos um espetáculo? Não poderia ser mesmo um concerto, mas uma coisa encenada, com texto, marcações. Uma espécie de uma performance’. De repente marcaram dois concertos, o do Coliseu de Lisboa esgotou e as coisas foram acontecendo. Já temos concertos marcados para setembro…
Foi acontecendo e resultou no filme ‘O Mistério do Colar de São Cajó’. Pode contar-nos um bocadinho sobre o filme? O colar de São Cajó que está na família Bourbon de Linhaça há mais de 300 mil anos tem uma origem…. Portanto, nós vamos recuar à origem do colar. A história começa há 3500 anos, quando, claro, ele é forjado… O filme vai acompanhando a saga daquela família até sensivelmente dois anos antes da estreia da série. E vamos descobrir muitas coisas… Uma das coisas que me diz respeito e que eu gostei mais do argumento, é que nós vamos de facto descobrir porque é que o Simão, o meu personagem, é mau. Saber exatamente o que é que o transformou naquela pessoa. Era o mais puro coração. O que é que aconteceu na vida dele para se tornar o maior vilão de todos os tempos?
Como foi o processo de construção do Simão? Deve ter-se divertido imenso… A ideia da série partiu dos três, mas os guiões foram todos escritos pelo Henrique e pelo Roberto Pereira, na primeira e segunda temporada. O filme é só do Henrique. Eu, como fui acompanhando a sua escrita, tinha familiaridade com todas as personagens. O Simão foi aquele personagem que eu, desde o início, disse: ‘Eu quero fazer este gajo!’. Inicialmente estava previsto eu fazer o engenheiro Eduardo… (risos)
E aqueles copos? Ainda partiu alguns… Aqueles copos são feitos de goma de açúcar. Muito frágeis, muito leves, mas muito caros. Parti muitos! (risos)
Como é que olha para o futuro? Tem alguns sonhos profissionais ou vai deixar que a vida o continue a surpreender? Acho que a vida já me provou que me surpreende de uma forma fixe! De qualquer forma, a abertura de novos mercados que está a acontecer em Portugal é estimulante. O que eu não tenho a certeza é: será que o meu caminho é somente na representação? Ou esta coisa de, de repente, ter criado um produto de sucesso me pode estimular a fazer outras coisas? Estou aqui para descobrir isso!