João Barrento. A vida por escrito, o ensaio infinito

De um dos melhores ensaístas portugueses, Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis é a reunião de um conjunto esparso de textos de João Barrento, vai da entrevista a discursos de aceitação de prémios, passando por conteúdo de índole diarística. Mas é mais do que isso: é o incessante cruzamento da arte do…

Texto de João Oliveira Duarte

Que Portugal é um país periférico é algo que tanto tem consequências positivas como negativas. As negativas são fáceis de elencar: a ausência de massa crítica (todos procuram leitores quando, de facto, o que falta são autores), o provincianismo que importa constantemente tudo quanto é feito no eixo Nova Iorque-Paris-Londres-Berlim, um certo fascínio pelo grande nome e uma ausência de diálogo entre pares. Mas a periferia tem também os seus aspectos positivos: a barbárie demora um certo tempo a cá chegar, permitindo observar a lenta contaminação que vai fazendo dos corpos e da linguagem. Isso é visível, por exemplo, no romance, outrora um género florescente, com uma inventividade a uma capacidade de reinvenção que, actualmente, foi trocado por aquilo a que se chama de “ficção”, tudo cheio de estilo, de pequenas manias, de assuntos interessantes – tudo submetido a uma lógica fechada e circular que vai da recensão ao programa de televisão, passando pelos festivais, e sem qualquer tipo de aderência. Como Portugal é um país periférico, ainda encontramos, cada vez mais raros, um ou outro exemplar desta espécie em declínio – contrariamente a outras geografias, onde a barbárie já foi declarada permanente. Mas o deserto avança, como diria um senhor respeitável, o eucaliptal toma conta do terreno e, daqui a uns anos, já nem a memória do romance restará, porque a ficção contamina tudo, inclusive o passado, e de Homero a Mann, de Camilo Castelo Branco a Agustina, tudo será, doravante, ficção.

O mesmo aconteceu, talvez, com o universo da academia portuguesa. Noutras latitudes, a barbárie há muito que se instalou e já nada resta de diversas tradições académicas que, como as espécies do mundo natural, foram progressivamente desaparecendo. No entanto, no microclima português, houve durante uns anos um conjunto de nomes que floresceram contra os ares dos tempos, devido a diversas circunstâncias que passam, também, pelo carácter periférico do país, e que, actualmente, são dos poucos espécimes que restam de uma outra maneira de habitar a escrita e as instituições. Chamemos-lhes, não “os incorruptíveis” como chamou Cixous a um conjunto de pensadores franceses – isso seria um exercício demasiado grandiloquente –, mas os nossos pensadores privados, que conseguiram, felizmente, extravasar em muito o mundo restrito e pequeno da academia portuguesa.

João Barrento fará parte, de direito, deste conjunto restrito de pensadores privados. Tem uma obra imensa, que vai do ensaio à tradução, da crítica literária a textos sobre artistas contemporâneos – e um dos melhores ensaios dos últimos anos, Como um Hiato na Respiração. Pensadores privados são, segundo o pensador francês Gilles Deleuze, aqueles que têm uma “particular agitação e desordem do mundo” – esse carácter irrequieto, intranquilo e interminável que João Barrento confere ao ensaio. É uma maneira de vaguear, uma errância que vai passando por diversos territórios, cartografando-os, estabelecendo-lhes os limites e a orografia. Não é uma questão de interdisciplinaridade, como hoje se costuma dizer, nem de manter invioláveis as fronteiras entre as diversas áreas do saber, nem mesmo uma questão de curiosidade. O que João Barrento faz, o que tantos dos nossos pensadores privados fazem, é manterem-se numa fronteira instável, dobrando constantemente os temas, os objectos, a uma solidão que lhes é própria – e em Portugal, país periférico, a solidão é dada, falamos tantas vezes sozinhos ou, no máximo, para uma ou duas pessoas –, a essa agitação e desordem de que falava Deleuze. É isso que explica em parte, aliás, o uso abundante da imagem nos livros de Barrento: é uma forma de criar uma certa desordem na ordem linear da escrita, de confundir os nossos burocratas, aqueles que verificam constantemente se os nossos papéis estão em ordem, de arriscar, de ensaiar, novas ordens de sentido, novas configurações de saber.

Aparas dos Dias. A escrita na ponta do lápis, o mais recente livro de João Barrento, é um desses objectos imprecisos mas exactos, anónimos e dificilmente classificáveis. É uma junção de diversos textos de variada proveniência e datas diferentes, de entrevistas e de outros escritos que chegam dos mais diversos lugares? Sem dúvida. Mas não é apenas isso. É um longo texto, incompleto, sem dúvida, uma meditação sobre o próprio ensaio, uma vida vertida em escrita que se confunde, tantas vezes, com o próprio pensamento, com o próprio gesto ensaístico. É igualmente, o reconhecimento, a gratidão devida a outros nomes, Eduardo Lourenço (mas não aquele que foi transformado em pensador da portugalidade) ou Eduardo Prado Coelho – gesto ainda mais raro num país pouco dado ao reconhecimento de dívidas, à gratidão devida àqueles com quem se aprende.

“O ensaio é isso mesmo: um eterno devir-escrita. Nunca se lhe põe o ponto final definitivo, os temas e as ideias continuam a reverberar para além dele. O nome di-lo: ensaio, tentativa, busca, experiência, um tactear de caminhos, um saber que sabe que nunca saberá tudo (…) Se assim não fosse, o ensaio não seria o que é, esse aliciante espaço aberto da deambulação.”

Mas talvez não seja apenas isso. Porque é preciso também um certo deslumbramento, uma capacidade de se espantar, de admirar os outros e o que os outros fazem – de ir em busca, de experimentar, de ensaiar respostas. Tudo isso, e tudo isso faz tanta falta num panorama desolador como é o nosso, encontramo-lo em João Barrento. Uma certa inocência do pensamento – sempre irrequieto, sempre em busca, em permanente afirmação (afirmar, afirmar sempre, contra tudo quanto nega a vida), mesmo quando se critica ou aponta o que quer que seja. Falando sobre a sua segunda reunião de crónicas, afirma:

“Este segundo livro, mais sereno, evidencia, para além disso, uma outra dimensão, mais humana e menos mental: a da atenção – atenção ao corpo vivo das coisas, e atenção «ao que está a acontecer»: na chamada «cultura», na acção política em sentido amplo, mas também em tudo aquilo que se dá a ver na linha do meu horizonte, e pode, em princípio, ser de qualquer esfera (a crónica e o ensaio, tal como os entendo e pratico, não conhecem limites temáticos)”

A deambulação, a errância, o devir-escrita que é também o ritmo da mão, é igualmente um fenómeno da atenção ao outro – e João Barrento sabe bem o que significa essa “oração natural da alma” de que Paul Celan fala quando cita Malebranche.

Mas Aparas dos Dias não é apenas uma longa meditação sobre o ensaio – tantas vezes segundo outros regimes de escrita, outros regimes textuais e imagéticos. Como o próprio afirma, o conjunto bastante heterogéneo de textos e entrevistas que encontramos segue o ritmo dos dias:

“desiguais e acidentados, com altos e baixos, estradas longas e pequenos atalhos e desvios. Breves iluminações e troços de respiração mais ampla. Espelhos de interesses, de obsessões, de paixões que os anos só vê confirmar e consolidar – a poesia e a polis, a arte das passagens desses «copistas do silêncio» que são os tradutores, sobretudo de poesia (…)”

É bastante interessante a assumpção deste tom menor – como se esta escrita se tornasse rente aos dias, ganhasse, por uns breves momentos, o sabor e o tom do quotidiano, aquele som quase inaudível e dificilmente captável da vida diária, feita de altos e baixos, de pequenas e grandes alegrias e tristezas. Tudo isso é bastante difícil de fazer e de conseguir, uma escrita a lápis – frágil, periclitante, à beira do desaparecimento – que vai anotando nas margens do tempo.

Ao longo destas quase trezentas páginas o que vamos encontrando é exactamente estas pequenas anotações a lápis, como se agora nos coubesse apenas como lição – e não destino – ir tecendo, pouco a pouco, fios desencontrados de diversas obsessões, de dívidas, de objectos que já desapareceram, de interesses que não sobreviveram ao passar do tempo. Assumir isso, esse tom menor, tal como assumir os altos e baixos, o caminho acidentando e o outro, mais plano, as dificuldades, os impensados, e ir anotando tudo à margem, a lápis, esperando, enfim, que a palavra, alguma dela, chegue a um outro qualquer.