O monólogo do jagunço

O grande romance de Guimarães Rosa consiste num fluxo contínuo em que o protagonista narra as suas andanças e aventuras pelo sertão brasileiro.

O primeiro embate deixou-me uma sensação de estranheza, ou mesmo de alguma confusão. A construção das frases não obedecia às leis habituais. Havia palavras desconhecidas, inventadas, cujo significado eu podia apenas tentar adivinhar; uma pontuação idiossincrática; frases penduradas – e faltas de concordância gritantes. Dou um exemplo: «Dono dêle nem sei quem fôr». Para mim, era como se estivesse a penetrar num território virgem, ainda não cartografado, onde tinha dificuldade em orientar-me. Esse território imenso era o sertão brasileiro.

Lembrei-me logo das linhas lapidares que Claudio Magris dedicou a William Faulkner no seu livro Alfabetos: «Ao lermos as páginas iniciais de Absalão, Absalão!, sentimo-nos perdidos e confusos, ofuscados por aqueles raios de luz estival que penetram, através das frestas das persianas fechadas, naquele quarto escuro onde a voz, ou as vozes, começam a narrar do fundo obscuro do tempo uma grandiosa história de paixão, fatalidade, vaidade e tragédia. […] é-se subjugado por tantas coisas, figuras, palavras, clarões, murmúrios de vida e morte e tem-se a impressão de não atinar, de não compreender, de não conseguir desfazer o emaranhado novelo daquela saga obscura e de acabar envolto naqueles fios como num casulo, de ser sugado pelo lodoso rio da vida».

Foi exatamente assim que me senti ao adentrar-me na leitura de Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa. Um pouco às apalpadelas no desconhecido. Mas, se o juízo de Magris estava certo, ia valer a pena a aventura. Continua o grande ensaísta italiano: «Esse desconcerto inicial, que pouco a pouco se transforma em irresistível exasperação e arrebatamento, é a marca dos grandes livros, que não fazem concessões, que não aplanam a estrada para o leitor nem lhe facilitam ilusoriamente a compreensão, como fazem os tranquilizadores livros medíocres ou falsos, que induzem de imediato o leitor a sentir-se confortável e o gratificam com a feliz e presunçosa convicção de compreender e dominar uma história, ou seja a vida. Pelo contrário, entrarmos num grande livro é como entrarmos no mundo, ou seja, ficarmos transtornados, desnorteados, ultrapassados pelo seu estrépito ou pelo seu silêncio, igualmente inexplicáveis».

O romance de João Guimarães Rosa é certamente um grande livro. Consiste num longo monólogo, sem quaisquer divisões nem capítulos, um fluxo contínuo em que o jagunço Riobaldo narra a sua vida e as suas andanças com os seus companheiros pelas extensões intermináveis do sertão. Montados nos seus cavalos e armados até aos dentes, roubam gado, atemorizam os camponeses, extorquem os fazendeiros e abatem qualquer um que se lhes atravesse à frente.

Mas o mais notável não é a história em si, é a própria escrita. A língua é sem dúvida português, mas não como o conhecemos. Não tem sequer que ver com as especificidades do idioma no Brasil – aquilo que lemos é quase uma língua ainda em formação, uma lava quente que borbulha e se agita antes de arrefecer e assumir os seus contornos definitivos.

É como se Guimarães Rosa tivesse precisado de inventar uma língua própria para exprimir a singularidade do sertão e dos seus habitantes. Por falar nisso, a galeria de personagem não fica aquém do extraordinário. Temos João Goanhá, «homem de grito grosso», Medeiro Vaz, que «acusava doença e quase acabada […] no desmancho dos traços», Garanço, «o de olhos de porco», um «catrumano» sem pescoço, outro que «entornava de lado a cabeça» ou ainda Felisberto, que tinha uma bala de cobre «encravada na vida de seus encaixes e carnes, em ponto onde ferramenta de doutor nenhum não alcançava de escarafunchar».

Onde terá ido Guimarães Rosa buscar este linguajar, estas figuras e estas histórias inusitadas?_Certamente à sua experiência como médico em Itaguara, no interior do estado de Minas Gerais, para onde foi exercer na década de 1930, mal terminou o curso. Para o jovem bem educado, sobrinho de um rico fazendeiro, aquele devia ser um mundo estranho. E foi nem mais nem menos essa estranheza que conseguiu transmitir através da sua escrita prodigiosa, também ela cheia de encantos e de mistérios.