Uma questão de mulheres. O coice de mula de Lily Parr

Durante a I Grande Guerra os homens morriam como tordos nas trincheiras da Flandres e as mulheres tomavam o seu lugar nos campos de futebol. Se julga que este Mundial feminino é algo de completamente novo, está enganado. Em Liverpool, em 1917, 53 mil espectadores assistiram a um jogo entre elas.

Lily Parr – eis o nome da primeira grande vedeta feminina dos campos de futebol. E não pense o estimado leitor que era uma brincadeira de meia-tijela. Lily era profissional, tão profissional como os mais profissionais dos jogadores de hoje. Nasceu no quarto das traseiras de uma casa arrendada pelos pais, na Union Street, Gerrard’s Bridge, St. Helens, e foi a quarta dos sete filhos trazidos ao mundo por George e Sarah Parr. Era o dia 26 de Abril de 1905 e não havia qualquer tipo de alma penada que fosse capaz de prever-lhe uma fantástica carreira desportiva. Ora batatas!, como diz a lógica. A sua carreira atingiu os píncaros da popularidade. De tal forma que ainda andamos aqui por estas páginas a falar sobre ela, ou não é?

Claro que não há milagres. Desde miúda que Lily foi uma Maria-rapaz. Estava-se nas tintas para bonecas e para as aulas de lavores. Gostava era de jogar à apanhada, desafiar colegas para corridas e, sempre que a ocasião surgisse, dar uns pontapés numa bola que lhe aparecesse pela frente. Aperfeiçoou de tal ordem o remate que, mais tarde, os repórteres que seguiram a sua ascensão trouxeram para as páginas dos seus jornais: «Kick like a Mule!» A expressão é suficientemente sugestiva para obrigar a sublinhados. Escreveu um dos seus biógrafos: «Lily Parr challenged gender roles from a young age. With the encouragement of her brothers, she began honing her football and rugby skills on waste ground close to her home, and by age thirteen she’d developed a seriously strong left foot».

A coisa promete, convenhamos. Aos 13 aninhos apenas. Parece que estamos metidos num dos livros das irmãs Brontë. E Lily teve de domar muitos vendavais, ai isso é que teve. Não tardou a ser convidada para jogar no St. Helens e foi num jogo contra as raparigas do Dick Kerr, representantes de uma fábrica de munições de Preston que caiu no goto de um treinador chamado Alfred Frankland, absolutamente espantado com a sua envergadura física, com o seu metro e oitenta de altura e pelas suas proezas com a bola nos pés. Frankland fez, então, questão de a levar para a sua equipa, precisamente a Dick Kerr. Em troca, Lily marcou 43 golos na sua primeira temporada em Preston. Ao todo marcaria 967. Mas não fui eu quem fez as contas.

Naquele tempo…

Situemo-nos no tempo. Dá sempre jeito. Perceber a mentalidade das épocas fornece-nos uma visão mais ampla da História. «Este parte, aquele parte/e todos, todos se vão», cantaria o Adriano Correia de Oliveira. Os jovens ingleses marchavam para a guerra no continente Europeu em massa e, na sua ausência, cabia às suas mães, irmãs e esposas trabalhar para lá da Mancha contribuindo para o esforço tremendo do país. As operárias suavam e sujavam-se de óleo como não era, até aí, algo esperado de uma dama. Por seu lado, o governo britânico apoiava como nunca o exercício físico, não apenas para manter a população ativa mas também pelo motivo de esse exercício criar mentes mais fortes e mais resistentes. Foi maioritariamente nas fábricas – sobretudo nas de material de guerra – que surgiu a ideia de formar equipas femininas que, aos sábados, se defrontassem sob a égide da velha frase: «Mens sana in corpore sano». O que talvez não esperassem é que esses jogos atingissem níveis de popularidade extraordinários.

Longe do cheiro infeto da maquinaria pesada e da sua imagem mortífera, as jovens inglesas batiam-se sobre campos de relva (ou pelo menos de erva) pela posse de uma bola e pela alegria de a enfiar no fundo das balizas. A Dick, Kerr’s Ladies FC, que tirou o nome da fábrica de munições Dick, Kerr & Co, em Preston, no Lencashire, nas margens do rio Ribble, caiu rapidamente no goto dos espectadores, não apenas dos de Preston, mas mesmo a nível nacional. Além disso, os proprietários da fábrica, que surgiu em 1917, tiveram a ideia de organizar jogos pagos e com as receitas a reverterem para faixas desfavorecidas da população da cidade e para aquilo que os ingleses apelidaram de «the war effort». Não sejamos ingénuos ao ponto de imaginar todo um povo excitadamente preso aos resultados de futebol das equipas de mulheres que seguiram o exemplo da Dick, Kerr’s Ladies FC. Para muitos era algo de exótico. Para muitos outros era inaceitável, para outros ainda era inevitável. Vamos e venhamos: as mulheres não desataram a jogar futebol em 1917 enquanto esperavam que os homens voltassem a encher os campos depois de voltarem das trincheiras. E também não foi preciso criar-se um Campeonato do Mundo, como o que agora decorre na Austrália e na Nova Zelândia, para as pôr em confronto. Em 1726 – isso mesmo!, 1726 – já o futebol se discutia no feminino. Reparem neste pedaço de texto publicado no Ipswich Journal: «A new and extraordinary Entertainment was set on Foot for the Divertion of our polite Gentry… a Match at Foot-Ball, play’d by six young Women of a Side, at the Bowling Green». Aquele toque de arrogância tão intensamente britânico do «polite Gentry» tem o seu chiste mas é redutor. Não eram apenas as rapariguinhas dos colégios que lutavam por uma bola e por um resultado. A populaça também tinha direito à sua quota-parte. E pelo menos desde anos-20 do século XVIII que as publicações davam conta de um encontro regular entre mulheres de pescadores – de um lado as solteiras e do outro as casadas – que se desenrolava na cidadezinha escocesa de Musselburgh, em East Lothian, a leste de Edimburgo.

Lily!

Há que dizer que a história do futebol feminino não sendo tão rica como a da sua versão masculina merece uma atenção especial. Não foi por acaso que escolhi para heroína desta crónica a filha do esforçado empregado de uma fábrica de vidro chamado George, que além de ter em casa um ror de filhos ainda se via obrigado a aceitar clientes que precisavam de comodidades para passar a noite. Comodidades é como quem diz. Muito a propósito destas linhas é um eufemismo. 

Lily tinha um espírito guerreiro e aprendeu da forma mais dura que a vida custa a ganhar. Gostava de andar de um lado para o outro com os irmãos mais velhos, participar em cenas de pedrada e fazer parte das disputas infantis de futebol e râguebi. Depois de entrar para a equipa de St. Helens o seu nome passou a ser badalado. Há estatísticas (pouco confiáveis, no entanto) que referem o facto de ter feito mais de cem jogos pelo St. Helens. Para o caso pouco importa. Jogou que se fartou, não apenas em quantidade mas principalmente em qualidade. A malta da terra sentia-se feliz por a ter como uma espécie de emblema. E seguia as suas habilidades fielmente todos os sábados.

Lily criou uma lenda em seu redor. De tal forma que corria de boca em boca que o St. Helens tinha uma avançada-centro tão determinada, tão talentosa e tão fisicamente poderosa que era impossível detê-la. Uma das suas companheiras de equipa, Joan Whalley, soltou sobre ela a tal frase que encantou os jornais: «She has a kick like a mule!». E, em seguida, contou: «Certa vez levantou uma bola que estava parada, colada à relva e aplicou-lhe um pontapé tão potente que eu, a 20 metros de distância, quando a recebi na cabeça caí para o lado sem sentidos!». Grande aldrabona, estarão alguns de vós a pensar. Pois… Vá lá saber-se. Em 1917 não havia quem fizesse filmes de garotas a jogar à bola. Admirável, apesar de louváveis exageros, a forma como Lily era vista por quem nunca sequer a viu jogar. Alguém escreveu sobre ela uma frase digna de P.T. Barnum, o grande trafulha dos primórdios circenses: «Esta rapariga é muito provavelmente o maior prodígio que o futebol da Inglaterra jamais produziu». 

Definitivamente fenómeno!

Vamos até ao Boxing Day de Dezembro de 1920. Em Liverpool, no Goodison Park, local onde Eusébio fez dos melhores jogos da sua carreira formidável, a terrível equipa de Dick, Kerr Ladies defrontava um adversário igualmente poderoso: o Everton. Lily já deixara o St. Helens e espraiava agora o seu talento com a camisola do clube de Preston. Nos dias anteriores começou a fervilhar um entusiasmo inquebrável. Toda a gente falava de Lily Parr e das suas proezas, autênticas ou inventadas, não ponho as mãos no fogo por nenhuma embora reconheça que a moça tinha obrigatoriamente algo de muito especial. Tão especial que já se passaram cem anos e ainda estou aqui a encher páginas de jornais com ela e desculpem lá se é uma grandessíssima estucha, como dizia o Alencar do divino Eça, embora se já chegaram até aqui é porque não se aborreceram por aí além.

Quem não se aborreceu de forma alguma foram os adeptos de futebol da cidade de Liverpool. 53.000 espectadores encheram as bancadas do estádio para observar o fenómeno em direto. Vários milhares de pessoas ficaram à porta porque não conseguiram lugar. Foi preciso esperar pelo ano de 2012 e pelo Jogos Olímpicos de Londres para se voltar a repetir uma multidão dessa envergadura em redor de um jogo de futebol entre mulheres. Ah! E não menos importante: nessa tarde angariaram-se 3.115 Libras Esterlinas a favor do fundo para desempregados de Liverpool.

Os anos-20 do último século em Inglaterra foram atribulados. Os regressados da guerra precisavam de trabalho, a privatização das minas de carvão puseram os mineiros contra o governo, as greves sucederam-se, os despedimentos também. Lily e as Kerr jogavam um pouco por todo o país e arrebanharam significativas verbas para auxiliar a luta dos mineiros. Sim, o futebol feminino também entrara na política e na revolta social implantada. Parr era uma mulher com raízes na classe trabalhadora e tornou-se, além de atleta de mérito, uma voz incomodativa para certos poderes instalados. Não tardou a pagar por isso. Ela e as suas companheiras e adversárias.

Numa atitude tão canalha como prepotente, The Football Association e os seus engravatados dirigentes que se espojavam nos sofás de couro de Leicester Square a beber os seus brandies e a fumar os seus charutos resolveram pôr um ponto final num espectáculo que já se entranhara tão profundamente na vida dos ingleses que formara anti-corpos. Em Dezembro de 1921, um ano após a explosão humana de Goodison Park, emitiram um comunicado que envergonharia o próprio John Bull, não fosse ele apenas a encarnação de tudo quanto há de mais mesquinho no povo inglês: «The game of football is quite unsuitable for females and ought not to be encouraged’ and subsequently banned women from playing on their grounds». Vergonhoso. Mas os cavalheiros emproados da FA menosprezaram a popularidade de Lily Parr.

A equipa de futebol Dick, Kerr & Co Ladies tratou de se fazer à estrada. Ou, neste caso, tratou de se fazer ao mar. Atravessou o Atlântico e disputou uma série de partidas contra equipas de mulheres e de homens, indiscriminadamente. Lily, como não podia deixar de ser, era a estrela mais cintilante da companhia e atraía fotógrafos e repórteres para toda a parte, rodeando-a como se fossem bandos de vespas. Tratavam-na nas palminhas: «The most brilliant female player in the world!». E não lhe faziam favor algum.

Infelizmente tinham irritado demasiadas cabeças assoberbadas por preconceitos. Até a fábrica Dick, Kerr & Co sentiu necessidade de se afastar do seu grupo desportivo. Lily e as companheiras mantiveram-se firmes e denominavam-se Preston Ladies. Como o dinheiro passou a rarear-lhe na carteira, aceitou um emprego como aprendiz de enfermeira no Whittingham Mental Hospital. Foi lá que conheceu e se apaixonou por Mary, a mulher que dividiu com ela o resto da vida. Se fora revolucionária dentro de campo, passou a sê-lo também fora dele ao assumir a sua homossexualidade e surgindo em qualquer evento para que fosse convidada de braço dado com Mary. Estava-se nas tintas para as más-línguas. As mesmas, certamente, que tinham gritado o seu nome plenas de admiração quando a bola chegava aos seus pés e ela lhe aplicava o famoso coice de mula. Dizem que marcou mais de mil golos. Mas, enfim, diz-se tanta coisa… Fumadora incorrigível, cara da publicidade aos cigarros Woodbine, morreu de cancro da mama no dia 22 de Maio de 1978. Ou melhor: suicidou-se devagarinho…