Campeonato. Os passos trapalhões de uma tartaruga que queria copiar as lebres

A organização do futebol português sempre foi um desastre (e não é de hoje) – quando houve a tentativa de se criar uma primeira competição a coisa descambou para um jogo grotesco entre apenas duas equipas.

Talvez cometa aqui, logo no início da prosa, o erro infantil de comparar o incomparável. Mas corro o risco e vou em frente: quando, já depois de existir a selecção nacional que se estreou em Madrid, frente à Espanha, no dia 18 de Dezembro de 1921 (1-3), os responsáveis pelos principais clubes portugueses e pela então União Portuguesa de Futebol (antecessora da FPF) resolveram que era fundamental para o crescimento competitivo do jogo ter uma prova a nível nacional já em Inglaterra se disputava um campeonato desde 1888. Caspite! Trinta e três anos de atraso que continuariam atrasados para sempre.

A imprensa teve um papel importante no nascimento do Campeonato de Portugal, uma prova que deveria por em confronto os campeões regionais. Ora, havia um problema grave pelo caminho: só se disputavam os campeonatos de Lisboa, Porto e Madeira e não se ia de Lisboa ao Funchal e do Funchal a Lisboa com uma perna às costas como nos dias de hoje. Logo aí, o novíssimo Campeonato de Portugal abastardou-se. Com o representante madeirense sem condições de se deslocar ao continente, sobraram apenas os lisboetas (Sporting) e portuenses (FC Porto). Chamar campeonato a uma cena grotesca desta estirpe era uma vergonha mas engolimos a vergonha e a disputa ficou agendada: no dia 4 de Junho de 1922 jogava-se a primeira mão, no Campo da Constituição, no Porto, e uma semana mais tarde caberia aos leões receberem os azuis-e-brancos no Campo Grande, em Lisboa.

Fez-se história. Pela primeira vez FC Porto e Sporting defrontavam-se numa competição oficial, mesmo que uma competição um bocado para o mixuruca. Ganhou o FC Porto: dois golos de Tavares Bastos, o segundo sobre o minuto 90, responderam ao tento inicial de Emílio Ramos.

No dia 11, o campeão de Lisboa foi claramente superior e venceu por 2-0, com golos de Henrique Portela e Torres Pereira. Não havia cá desempates por diferença de golos, tal como não havia substituições (geralmente os lesionados eram desterrados para a ponta esquerda e chamados de pontas esquecidas) nem cartões, o que até poderia ter dado jeito para o tira-teimas agendado para o Campo do Bessa, no Porto. A escolha do terreno não caiu bem no goto dos sportinguistas. Era natural. Tinham de deslocar-se novamente até ao norte. Mandava o bom-senso que se optasse por um lugar neutro e equidistante, mas o bom-senso nunca imperou no futebol português. A ordinarice sim, impôs-se e, com ela, laivos de violência. No mesmo dia, de madrugada, um barco ancorado no Tejo, frente ao Cais das Colunas, ofereceu aos lisboetas uma festa de fogo de artifício como nunca se vira até então. Mas a tragédia tomou conta da Praça do Comércio e fechou as bocas escancaradas de espanto quando a embarcação pegou fogo, tendo 14 pessoas sofrido queimaduras graves e sido transportadas para o hospital de São José. Um menino morreu. A tristeza ficou gravada nas páginas dos jornais à mistura com a glória de Gago Coutinho e Sacadura Cabral feitos cidadãos honorários do Rio de Janeiro. No Bessa, entre paus e pedras, ouviram-se tiros.

 

Sempre confusão.

Já lá vão 101 anos, c’os diabos!, mas parece que nada mudou. O ambiente em redor do campo era tão denso que parecia feito de cimento armado. Os adeptos do FC Porto foram preparados para uma guerra e não falharam a batalha. A comitiva do Sporting foi recebida com uma hostilidade generalizada, algo que deveria ter sido tido em conta pela organização. Assobiou-se para o lado. Os insultos bondaram. O jogo foi quezilento, houve confusão nas bancadas, cenas de pancadaria, ouviram-se tiros vindos nunca se soube de onde quando Balbino Silva fez o 1-0 aos 52 minutos. A festa estava preparada para se entornar pelas ruas da cidade mas teve de ser adiada: Emílio Ramos empatou aos 70 minutos e foi preciso recorrer-se a um prolongamento. O FC Porto ganhou; dois golos, aos 100 e 102 minutos assinalaram o primeiro vencedor do Campeonato de Portugal que não seria campeão nacional porque um campeonato era algo de muito diferente do que essa meio pacóvia experiência nitidamente frustrada. João Nunes e João Brito foram os homens por detrás dos golos, a festa finalmente tomou conta da capital do norte, mas, vendo bem, ninguém estava nem convencido nem satisfeito com aquilo que se passara, com excepção dos portistas, como está bem de ver. Era preciso ir mais longe. Muito mais longe. Mas bem à portuguesa a distância percorreu-se a passo de tartaruga.

 

À espanhola.

O primeiro grande erro da frágil organização do futebol em Portugal foi tentar copiar o exemplo espanhol em vez do inglês. Em Espanha, a grande competição nacional era a Copa del Rey e jogava-se em eliminatórias diretas desde 1903. Os ingleses tinham optado, e bem, pelo chamado sistema de poule, isto é, jogos de todos contra todos, casa e fora, com dois pontos para os vencedores e um ponto para cada um em caso de empate. Ora, este sistema tinha a inequívoca vantagem de fazer com que as equipas na sua totalidade estivessem em competição durante toda a época. Paralelamente, disputava-se a Taça de Inglaterra, essa sim, em eliminatórias.

A segunda edição do Campeonato de Portugal já contou com os campeões regionais de Braga, de Coimbra e de Faro. Mas assistiu-se a mais uma portuguesada, como gostam de dizer os franceses. Indiscriminadamente, só porque sim, ficou estabelecido que os campeões de Lisboa, Porto e Madeira só entrariam em prova nas meias finais. Uma bizarria incompreensível e uma proteção incompreensível dos vencedores das duas associações mais poderosas. Quanto ao caso madeirense, avançou-se com a justificação conveniente do problema da viagem. A prova foi tão confusa como as cabeças ocas que a imaginaram. Na primeira eliminatória defrontaram-se os campeões de Coimbra e de Braga: Académica, 2 – Braga, 1; na segunda eliminatória, a apurada Académica jogou contra o campeão do Algarve, o Lusitano de Vila Real de Santo António: vitória dos estudantes por 3-2 após prolongamento. E só a seguir houve um cheirinho a competição com um Académica-Marítimo (2-1) e um Sporting-FC Porto (3-0). Tentando dar um ar de seriedade à coisa, o primeiro jogo teve lugar em Lisboa e o segundo em Coimbra. A final foi marcada para Faro, para o Campo da Senhora da Saúde, e os leões bateram os conimbricenses por 3-0, golos de Francisco Stromp e Joaquim Ferreira (2).

Aos poucos, as associações foram organizando os seus campeonatos regionais e  o Campeonato de Portugal foi tendo mais participantes. Não tardou que mais uma intervenção prepotente começasse a atribuir lugares na fase final a duas equipas de Lisboa (depois três) e duas do Porto. Só que a questão competitiva não ficava resolvida pela razão evidente de que, com o sistema de eliminatórias, os que perdiam na logo primeira ficavam afastados cumprindo apenas um jogo. Ora, se isso era ser competitivo vou ali e já venho. A discrepância entrava pelos olhos dentro, mas, ainda assim, tudo se manteve inalterável até 1938, quando se disputou o último dos Campeonatos de Portugal com vitória do Sporting na final frente ao Benfica, por 3-1. Chegara a hora da mudança e já vinha tarde.

 

À inglesa. Foi preciso que a selecção nacional levasse um dos maiores achincalhos de toda a sua história – derrota por 0-9 em Madrid perante a Espanha -, para que as areias movediças que embaraçavam o futebol em Portugal tenham sofrido um abalo quase sísmico. Ricardo Ornellas, um dos grandes mestres do jornalismo, lutou como ninguém para que houvesse uma verdadeira revolução. Ainda assim foi feita a medo. Medo vá lá saber-se do quê quando tínhamos batido no fundo de todos os fundos e servíamos de anedota para os nossos vizinhos espanhóis.

A Federação Portuguesa de Futebol interiorizou que o Campeonato de Portugal não era de forma alguma um campeonato – recentemente houve uma corrente de revisionismo histórico bastante pascácia a rediscutir a questão – e atribui-lhe o nome que sempre deveria ter tido: Taça de Portugal. O campeonato autêntico foi chamado de Campeonato da Liga. O atrofio era de tal ordem que, ainda assim, começaram por acrescentar-lhe  o epíteto de experimental. Vozes solitárias ergueram-se aqui e ali perorando contra uma despesa financeira que seria impossível de sanear, isto num tempo em que já muitos países da Europa se tinham entregado de braços abertos ao profissionalismo. Mas ficou acertado preto no branco: “Por virtude da reforma a que se procedeu no Estatuto e Regulamentos da Federação os Campeonatos das Ligas e de Portugal passaram a designar-se, respectivamente, Campeonatos Nacionais e Taça de Portugal”.

 

Finalmente! Em 1934/35 Portugal tinha finalmente um campeonato! E não havia volta atrás. Meio titubeante, a Liga, departamento da FPF ao qual foi entregue a responsabilidade de organizar a prova, decidiu que seriam apenas oito clubes aceites para a estreia. Como acontecera com o Campeonato de Portugal, deu-se um passo subjetivo: participariam os principais clubes das associações regionais onde se considerava que o futebol estava mais desenvolvido. E, assim, Lisboa meteu logo metade das equipas: Belenenses, Benfica, Sporting e União de Lisboa. O Porto teve direito a duas: FC Porto e Académico do Porto. Coimbra e Setúbal foram representadas por Académica e Vitória.

Tal como acontecera com a 1ª edição do Campeonato de Portugal, o FC Porto foi o primeiro vencedor, deixando Sporting e Benfica no segundo e terceiro lugares. A Académica de Coimbra foi última com apenas três pontos em 14 jogos, mas tal de pouco valeu, já que ainda não se estabelecera o sistema de descidas e subidas de divisão. Na época seguinte, o Académico do Porto cedeu o lugar ao Boavista (segundo classificado do regional do Porto) e o União deu o seu espaço ao Carcavelinhos (quarto no Regional de Lisboa) – estes dois clubes não tardariam a fundir-se sob o nome de Atlético Clube de Portugal. O Benfica foi campeão nas três edições seguintes. Só a partir da época de 1944/45 é que as descidas de divisão foram postas em prática, dando, definitivamente, uma estrutura competitiva a sério ao campeonato, já que, até aí, só havia luta pelo título, ficando as equipas que não tinham essa capacidade a jogar “para o boneco”, como dizia a populaça. 

Não por acaso, as melhores equipas portuguesas passaram também a ter destaque internacional, com o Sporting dos Cinco Violinos a disputar a primeira final da Taça Latina – que punha em confronto os campeões de Itália, França, Espanha e Portugal – em 1949, perdendo para o Barcelona, e com o Benfica a vencê-la no ano seguinte, batendo o Bordéus no jogo decisivo. Entrávamos no futuro mas, mais uma vez, no tal passo de tartaruga que haveria de ser sempre uma triste copiadora do que as lebres estrangeiras faziam lá por fora. Em 1946, a vergonha dos 0-9 de Madrid foi ultrapassada pelo maior avacalhamento jamais sofrido por uma selecção nacional – recebemos a Inglaterra no Estádio do Jamor e perdemos por 0-10. A imprensa não perdoou: chamou-lhe o “dez-a-fio”. Era preciso voltar a revolucionar a mentalidade competitiva dos nossos clubes e jogadores mas o tempo não espera pelos que tinham perdido a primeira carruagem do comboio. Só 20 anos mais tarde conseguimos atingir a fase final de um Campeonato do Mundo. E então já não tínhamos medo de ninguém.