Aljubarrota: mais que uma batalha

De todas as datas históricas que comemoramos coletivamente, a da Batalha de Aljubarrota é provavelmente a mais antiga.

Por António Ramalho

Presidente do Conselho 

de Administração da Fundação 

Batalha de Aljubarrota

Daqui a dois dias, celebra-se o 638.º aniversário da sempre aclamada Batalha de Aljubarrota. De todas as datas históricas que comemoramos e celebramos coletivamente esta é provavelmente a mais antiga. Nem o 25 de Julho de 1139 correspondendo à vitoria de Ourique e que levou Afonso Henriques a passar a intitular-se Rei dos portugueses é como tal recordada, nem a data do tratado de Zamora a 5 de Outubro de 1143 que nos ‘contratualiza’ a independência, talvez por risco de confusão de datas nos diz muito da nossa identidade portuguesa, nem mesmo o 23 de Maio de 1179 data do recebimento da bula Papal que ‘legaliza’ a independência é comemorado como tal.

É o 14 de Agosto de 1385, que preenche no nosso coletivo nacional o lugar o primeiro momento da identidade nacional. 

E mais curioso é que este facto não se deve a qualquer negação da história anterior, de que aliás sempre nos orgulhámos como país, mas ao extraordinário significado que a Batalha de Aljubarrota representou para a identidade nacional. E isso merece uma reflexão adicional.

Claro que o facto da Batalha ter sido uma vitória tão rápida e inesperada face ao evidente desequilíbrio entre as forças portuguesas e as forças castelhanas ajuda na sua valorização. De facto quem imaginaria possível uma vitória em apenas uma hora num embate de exércitos reais cuja diferença no mínimo seria de um para quatro.

Claro que o fato da batalha ter sido vencida com técnicas bastante inovadoras à época, ainda que nem sempre originais, das quais se destaca a opção pela lógica defensiva, pela escolha e preparação do terreno e pela total prioridade na defesa a pé mesmo contra ataques de cavalaria, muito contribuiu para valorizar o génio militar do Condestável português.

Claro que o facto desta batalha ter consolidado no trono português a dinastia de Avis, dando legitimidade militar à legitimidade obtida dificilmente nas cortes de Coimbra de 1385 que culminaram na coroação de D. João I, anteriormente ‘regedor e defensor do reino’ por vontade do povo das cidades, também acrescentou alguma cor a esta data.

E ainda é claro que o facto desta vitória se inserir na Guerra dos Cem Anos e ter representado a vitória da aliança luso-inglesa contra a frente castelhana e francesa (e aragonesa), e deste modo levar à consolidação dos Tratados de Tagilde e de Londres e contribuir decisivamente para criar a mais antiga aliança diplomática do mundo, muito contribui para o reconhecimento internacional da importância do 14 de Agosto.

 

Mas todas estas razões objetivas não chegam para explicar a relação emocional entre Portugal e Aljubarrota. Houve outras batalhas da independência tão heroicas como esta, houve outros exemplos de genialidade militar portuguesa, houve outras consequências históricas relevantes que tiveram em outras batalhas a sua origem. Só que Aljubarrota foi e, atrevo-me a dizer, ainda é, muito mais que uma batalha.

Aljubarrota é o resultado de uma ambição, de um desígnio de um sonho que alguns acreditaram e conseguiram levar todos a acreditar. E isso aconteceu, sublinhe-se, porque Aljubarrota foi uma batalha de jovens. D. João I tinha 28 anos e o seu Condestável Nuno Álvares Pereira tinha apenas 25 anos. Na frente da batalha, além do próprio condestável estava o corpo de besteiros e arqueiros ingleses mas também a famosa ‘ala dos namorados’ assim designada pela sua extrema juventude. 

E se a idade tinha no século XIV tinha um significado diferente, não podemos esquecer que Nuno Álvares Pereira foi nomeado Fronteiro do Alentejo com 23 anos perante os protestos dos senhores da época e teve de enfrentar e vencer os Castelhanos em Atoleiros exatamente com essa idade. 

Mas não eram só jovens os protagonistas. Esses jovens eram ousados, irreverentes, até pouco convencionais na defesa das suas convicções. 

Que prova maior desse inconformismo se encontra que não na decisão de fazer frente às tropas invasoras não por consenso no conselho de guerra em Abrantes, mas pelo voluntarismo do Condestável que acabou por arrastar todos os senhores do Reino, incluindo D. João I. E que maior prova de ousadia que desafiar um exército muito mais numeroso, muito mais bem armado e que tinha nas suas fileiras alguns dos maiores nobres de Portugal. E que maior demonstração de convicção quando a vantagem de escolha do local teve de ser recriada em algumas horas após a alteração de percurso das tropas invasoras. 

Aljubarrota é por isso, muito mais que uma simples batalha, tecnicamente irrepreensível, estrategicamente competente, executada de forma corajosa. Aljubarrota é o sonho do improvável tornado realidade, é a força da juventude e da ousadia quando luta por um ideal. Aljubarrota não é uma simples data é um marco na nossa identidade nacional. Marca a capacidade de coletivamente conseguirmos o que não é fácil nem provável e talvez, para muitos, é conseguirmos mesmo o impossível. Marca o que de mais diferente nos caracteriza enquanto portugueses quando ousamos e acreditamos. Não foi apenas o momento mais decisivo para a nossa independência, é também o símbolo da nossa diferença e identidade nacional.

Nos momentos difíceis talvez seja possível dizer, sem exagerar, que temos todos um pouco de Aljubarrota dentro de nós. E é isso que nos caracteriza como portugueses.

É por isso que a celebração de Aljubarrota é tão importante, tão digna de ser celebrada. 

E foi talvez por isso que António Champalimaud na sua ousadia e na sua ambição criou a Fundação Batalha de Aljubarrota a que Alexandre Patrício Gouveia deu corpo e total entrega para tornar vivo e atual o que de mais importante Aljubarrota nos pode ensinar. Não apenas uma batalha mas todo um conjunto de ousadas convicções.

E é por isso que Aljubarrota não é apenas a primeira data da nossa identidade passada. É muito mais que isso, é também um conjunto de valores que nos importa prosseguir para o nosso futuro coletivo. Recordá-los é importante, mas acreditar neles é essencial.