Por Luís Castro, Jornalista
Há um estranho no meu espelho – imita-me e irrita-me. Tem pele engelhada e rosto sumido. Do alto, cabelos poucos e das orelhas, pelos muitos; do nariz pingam e das sobrancelhas enrolam. Não tem luz nos olhos, estão secos porque desencharcados, vazios porque deixados – já nem chora sem motivo.
O bigode é de foca e a barba cresce pendurada. Já nem cospe, porque se for para baixo cai na barba, se for para cima cai no bigode. Não me parece de confiança… os gatos também têm bigodes e aos bodes também lhes cresce a barba – bode marra e gato arranha.
Da boca saem dentes podres. Sorrir já não lhe é para a vida toda e rir por último também já não é rir melhor. Por ali ninguém soma felicidade à velhice – mas também ninguém espingardeia – só monossílabos, murmúrios e resmungos quando não há tosse e catarros.
A cabeça cai-lhe para a frente e os ombros imitam-na – parece querer sussurrar-me que já perdeu a conta. E mesmo que o peito ainda lhe seja mais saliente que o ventre, este vetusto, antes virtuoso e agora degradante, lembra-me que também eu sou um farrapo da nossa decadência. Mas, será que é a minha alma atrás deste reflexo? Serei eu, esse outro?
Afinal, também tenho dores, ossos fracos, visão turva e raciocínio lento. E onde estão os meus? Quero vê-los pela janela, mas trancaram-na – dizem que há suicídios. Quero recordá-los, mas roubaram-mos – dizem que é declínio mental. Quero telefonar-lhes, mas esqueceram-me – dizem que já não vêm.
Talvez o diabo não seja tão mau como pintam e até se pareça com os meus. Esta manhã, a enfermeira coscuvilhava com o doutor e pareceu-me ouvir que eles só vinham depois das férias porque já estavam pagas e não as queriam interromper. Por momentos fez-me lembrar o Natal do ano passado, que também foi aqui – sozinho. E a Páscoa.
Na África, onde combati, o ancião era o ‘papá’, o sábio, o centro da família. Por cá, inquietam-se mais com os descendentes do que com os ascendentes; preocupam-se mais com o abandono dos animeis do que com o meu. Este povo que não respeita os seus mais velhos, talvez não mereça grande respeito. Falta-lhes empatia por nós.
Então, porque não me poupam a esta última desgraça? Prefiro morrer em vida. E depósito por depósito, antes me esqueçam num lar com lamuriantes do que num hospital com gementes. Lá terei amigos e ideias contra ideias – nem que seja de babete e de fralda. Só peço que não me amarrem e infantilizem.
Não adivinhava esta falta de amor dos meus e de respeito dos outros. Abandonam-me os que passaram a vida comigo, ignoram-me os que comungaram comigo e despreza-me os que têm uma dívida comigo. Eu sei, de cristal passei a desperdício. Estacionaram-me aqui, sem justificação clínica – chamam-lhe abandono familiar.
Uns dizem que não têm onde me receber porque as casas são mais velhas do que a minha velhice, outros que estão exaustos e não têm como pagar porque a minha reforma não chega, outros ainda que há um labirinto de interesses e não me conseguem um lar ou vaga no que chamam de rede de cuidados continuados integrados.
Que seja. Ainda não se deram conta que envelhecer é inevitável, mas abandonar-me foi opcional. Que filho és e pai serás; que um dia lhes farão o mesmo; que este quarto escuro onde me olho ao espelho há de ser deles; que terão um choque horrível se lhes couber a sorte de chegar a velhos.
Que vida tão cheia e velhice tão vazia – onde antes tinha exaltação, agora sobra-me nostalgia. Ninguém devia estar só na velhice. Mas vai ser assim, até que os sinos dobrem também para mim.
A velhice foi viuvez, mas ainda tenho direito a afetos. Ela encolheu-me e cravou-me mais rugas na alma que na pele, mas tenho direito a não ser indiferente e invisível. Deram-me mais anos à vida, mas menos vida aos anos. Isto já não é uma batalha, é um massacre.
Triste país onde reinam os pontos de reticência e sobra velhice e desalento. Triste Portugal onde, se não se morre de doença, morre-se de indiferença. Por cá, falta amor, sobra ofensa.
P.S. – Em Portugal há 1.700 idosos esquecidos ou abandonados nos hospitais. Alguns ficam à espera mais de um ano. Envergonhemo-nos – todos!
São mais de 100 mil noites por ano em que não devíamos dormir com peso na consciência.