Por Luís Filipe Pereira
Economista, gestorDelaware
A Comunicação Social (CS) noticiou, recentemente, um estudo da ERS – Entidade Reguladora da Saúde que teve por objetivo avaliar a concorrência no setor hospitalar privado e social, mostrando-se aquela entidade preocupada com a elevada concentração e posição dominante na prestação de cuidados de saúde por alguns operadores hospitalares privados e sociais.
De acordo com este estudo, cerca de 20% da população portuguesa, residente em 133 concelhos das regiões interiores do país, tem acesso a cuidados de saúde hospitalares em mercados substancialmente concentrados mais suscetíveis de praticarem preços excessivos e de, até, não aderirem a convenções com o SNS.
Esta preocupação é legitima e inscreve-se na missão e poderes conferidos à ERS os quais, aliás, lhe permitem o direito de averiguação das situações que possam pôr em causa os direitos dos utentes.
Há, no entanto, que referir que essa oferta concentrada de cuidados de saúde hospitalares, pelos operadores privados e sociais, é muitas vezes a única alternativa de que dispõem as populações daquelas regiões interiores do país para ultrapassarem a incapacidade de resposta do SNS aos seus problemas de saúde.
Esta incapacidade de resposta do SNS traduz-se pelo mau atendimento ou mesmo pela falta de serviços de urgência hospitalares e por tempos elevados e inaceitáveis de realização de consultas e cirurgias nas unidades públicas, não deixando outra via às populações do que o recurso à iniciativa privada e social.
Aliás, o recurso ao setor privado e social para suprir a incapacidade de resposta do SNS, não se confina apenas às regiões do interior, sendo generalizadamente praticado em todo o país por uma grande parte da população.
Como tenho vindo a referir em artigos anteriores, quase metade da população portuguesa (cerca de 3,5 milhões de pessoas – dados da ASF, a autoridade reguladora do Setor de Seguros – através de seguros privados de saúde, e mais 1,4 M de funcionários públicos e suas famílias – incluindo as forças de segurança – através de subsistemas públicos, como a ADSE) recorre generalizadamente ao setor privado da saúde, pagando, e isto apesar da Constituição garantir o acesso geral e universal, a todos os portugueses, aos cuidados de saúde, de forma gratuita (apenas com taxas moderadoras das quais, em larga medida, a população está isenta).
A oferta concentrada de cuidados de saúde hospitalares, pelo setor privado e social, comporta necessariamente riscos para os utentes, mas o verdadeiro problema para a generalidade dos portugueses, é a falta de resposta do SNS às necessidades da população, o que, aliás, está na origem e constitui a principal causa do forte crescimento da oferta privada, nos últimos anos, no setor da saúde.
É este o verdadeiro problema que deve também merecer a atenção de todas as entidades oficiais envolvidas no setor da saúde.
Em relação à situação atual, tenho vindo a caracterizar, em artigos e intervenções públicas, em órgãos da CS, os problemas de fundo do SNS.
Estes problemas do SNS agravaram-se nos últimos 7 anos dos governos socialistas:
– As listas de espera aumentaram (embora uma parte se possa atribuir ao envelhecimento da população);
– os tempos de realização de consultas continuam a penalizar uma parte significativa da população, em especial a mais desfavorecida;
– aumentou o número de portugueses sem médico de família (no final de 2019 existiam cerca de 850.00 pessoas sem médico de família: hoje são cerca de 1.700.000);
– houve falta de investimento no setor da Saúde: as despesas de capital foram sistemática e intencionalmente executadas a cerca de 50% dos valores orçamentados (devido às cativações do Ministério das Finanças) e só atingiram em 2019 os valores de 2015;
– agravaram-se os problemas nas urgências dos hospitais, como tem sido noticiado na CS, por má organização e incapacidade de atrair e reter profissionais saúde, em especial médicos, o que revela uma má gestão de recursos humanos e falta de planeamento;
– agravou-se a ineficiência na aplicação de recursos: em 2015 as despesas de funcionamento do SNS (salários, medicamentos, consumos intermédios etc.) eram de cerca de 9,5 mil milhões de euros e em 2022 subiram para mais de 13 mil milhões, com resultados piores para a população, e isto apesar do aumento de milhares de novos profissionais no SNS (esta relação negativa: mais recursos, piores resultados – verificava-se já antes da pandemia).
Todos estes problemas exigem uma reforma profunda do SNS, sem a qual continuaremos a manter ou a agravar, no futuro, os mesmos problemas.
O SNS, como tenho vindo a defender, necessita de uma grande transformação na base da qual está a evolução do SNS para um Sistema de Saúde, onde coexistam as três iniciativas: pública, privada e social com contratualização destas últimas, pelo Estado, na prestação de cuidados de saúde à população.
A presença da iniciativa privada, nos serviços nacionais de saúde, mesmo nos países que têm o mesmo modelo do nosso SNS, como é o caso do Reino Unido e a Dinamarca, há muito que é uma realidade. Por exemplo, nestes países os cuidados primários, assegurados pelo Estado, assentam na prestação de cuidados por médicos privados (os general practitioners, no caso do NHS-National Health Service inglês).
Esta profunda mudança permite um forte e rápido aumento da resposta às necessidades da população, concorrendo de forma contínua e sustentável para a resolução dos problemas do SNS pois:
– Na contratualização dos cuidados de saúde o Estado pode impor níveis de eficiência e de resultados a obter para a população (de atendimento, de prestação atempada dos cuidados, eliminando listas de espera etc.) pagando, apenas, se esses resultados forem alcançados.
– a contratualização de cuidados às iniciativas privada e social permite comparar e tornar pública a eficiência (benchmarking) de todas as iniciativas (pública, privada e social) induzindo um forte estímulo ( de ‘fora para dentro’ ) nas unidades públicas para a resolução dos problemas que hoje o SNS defronta.
Esta grande transformação necessita de ser transmitida à população (e de ter a sua aceitação generalizada) com base num pressuposto simples e de fácil entendimento por todos: o que é fundamental é que todos os portugueses tenham cuidados de saúde, de forma geral, universal e gratuita (só com taxas moderadoras) como se encontra garantido na Constituição não importando se os prestadores são públicos, privados ou sociais. Ou seja, o Estado continua a assegurar a gratuitidade dos cuidados de saúde para a população, mas a sua prestação pode ser também assegurada por entidades privadas ou sociais, através da contratualização destas pelo Estado. O Estado tem que garantir o acesso aos cuidados de saúde mas não tem que ser o único ‘produtor’ desses cuidados.
Os argumentos da esquerda e extrema-esquerda, contrários a esta necessária e indispensável transformação, que defende e beneficia os interesses da população, mantendo os seus direitos, podem ser sintetizados no slogan: ‘O que se pretende é privatizar a Saúde e dar dinheiro aos privados’.
Por outro lado pode haver por parte dos partidos, que são favoráveis a uma reforma estrutural do SNS, o receio e preocupação de que uma grande parte da população (‘bombardeada’ pelos slogans da esquerda e extrema esquerda na CS) possa não entender uma mudança profunda no SNS, com a perda subsequente de apoio popular e de votos.
Ao contrário do aqueles argumentos pretendem fazer crer, não existe qualquer privatização do SNS (não há qualquer aquisição ou tomada de controle de quaisquer unidades públicas por parte de quaisquer entidades privadas ou sociais). O que existe, na realidade, nesta reforma estrutural, é apenas uma relação contratual, alargada, permanente e institucionalizada, entre o Estado e as iniciativas privada e social, para a prestação de cuidados de saúde à população.
O argumento de que ‘estamos a dar dinheiro aos privados’ não resiste à realidade que a contratualização de hospitais públicos, através das Parcerias Público Privadas (PPP), veio evidenciar.
Hoje é inequívoco e reconhecido por entidades credíveis e oficiais (como o Tribunal de Contas e a Entidade Reguladora da Saúde) que os custos nos Hospitais geridos em PPP’s foram muito inferiores aos dos seus congéneres geridos pelo Estado e com resultados superiores quer em termos de atendimento e qualidade.
Na realidade a contratualização, com a iniciativa privada, nestes hospitais, trouxe economias, e não maior despesa, para o Estado (e para o contribuinte) como atestam aquelas entidades.
Por outro lado, é evidente que é necessário coragem politica para defender de forma clara, direta, esta grande transformação de que o SNS necessita. Mas, a meu ver, os argumentos à contrário da esquerda e da extrema-esquerda podem ser desmontados com trabalho e coragem na CS mesmo admitindo que a perceção correta pela população possa levar algum tempo.
Neste contexto, há que assumir que uma grande parte das pessoas (excetuando, porventura, àquelas presas a dogmas ideológicos) entende a realidade desde que explicada de forma honesta, clara e persistente.
Por fim, para captar a adesão da população a esta nova realidade, que mensagem mais forte se pode transmitir do que dizer claramente que qualquer pessoa pode ser tratada em qualquer unidade de saúde, pública, privada ou social (estas últimas contratualizadas) de forma atempada e gratuita?