Ensaio de Frederico Neves Parreira
Para as pessoas nascidas no final dos anos 80 em diante esta é uma realidade difícil de imaginar. Os primeiros computadores pessoais invadiram o mercado no final dos anos 80 e princípios de 90, e se eram a princípio máquinas de escrever avançadas, com a evolução dos sistemas operativos tornaram-se uma tecnologia presente em todos os aspectos da vida. Quando a Internet se tornou acessível operou-se uma revolução. Para uma geração inteira tornou-se comum passar horas no IRC (Internet Relay Chat) a falar com pessoas de todo o mundo; os motores de busca, pré-google, ainda eram rudimentares, e descobrir novos websites era uma experiência excitante. A sensação era que o mundo inteiro estava disponível. Anos depois, quase toda a gente já usava o mesmo motor de busca e o mesmo e-mail. A Internet estandardizava-se e perdia-se a sensação de descoberta dos primeiros anos, era agora uma repetição de gestos pré-programados. Quando as primeiras redes sociais surgiram, era um tipo diferente de experiência social; estavam a ser criados os espaços públicos do futuro, ainda que poucos conseguissem prever as mudanças radicais que isso implicaria.
Terra Queimada (Antígona), de Jonathan Crary (autor de 24/7 – O Capitalismo Tardio e os Fins do Sono) traça um cenário dantesco e desiludido, partindo da Internet e do seu aparato para operar uma crítica devastadora à forma de vida das sociedades ocidentais. À ideia de que a Internet é, agora, uma tecnologia irreversível, Crary contrapõe citando Alain Badiou quando ele diz que ‘uma política emancipadora consiste sempre em fazer o que, no seio desta situação, se diz impossível.’ A sua tese é resumida logo na primeira frase do texto: ‘se é possível um futuro habitável e comum, no nosso planeta, esse futuro é offline’.
Sonhos Utópicos
O ciberespaço é um termo que entrou na imaginação popular através dos romances de William Gibson (‘Uma alucinação consensual vivida diariamente por milhares de milhões de operadores.’). Nas suas histórias, Gibson descrevia o ciberespaço como um lugar sem lei, sem políticos que pudessem proteger os cidadãos, apenas poder corporativo, cru e brutal. Como Adam Curtis mostra no documentário Hypernormalization, foram os tecno-libertários americanos, inspirados pela contra-cultura dos anos 60, que instauraram a visão utópica da Internet, um espaço sem leis governamentais onde qualquer indivíduo poderia ser quem quisesse, um espaço alternativo à realidade, sem as complexidades castradoras da política, das crises sociais e do sofrimento humano. Para Crary, este período de êxtase utópico foi possível porque ‘os projectos de financeirização e expropriação não ocorreram todos de uma vez e demoraram alguns anos a atingir o ponto de aceleração, no início da década de 2000’. As descrições da Internet como intrinsecamente democrática, descentralizadora e anti-hierárquica caíram por terra, pelo menos durante algum tempo. Em Terra Queimada não são discutidas tecnologias recentes, como blockchain, que visam renovar esses sonhos de democratização do aparato internético, mas Crary defende que quaisquer visões que pretendam utilizar a tecnologia de forma emancipatória são ilusórias, e as estratégias que visam apaziguar os efeitos mais nefastos do capitalismo como inúteis, simples formas de o sistema capitalista se manter. Utiliza a figura de Edward Snowden como bandeira de uma geração de piratas informáticos que descrevem a tecnologia de rede como a ‘grande niveladora’, apelidando de fantasia elitista a ideia de que estes piratas informáticos têm uma capacidade de contrabalançar o poder corporativo. Mesmo a deep web, que corresponde à parte não-indexada (não presente em motores de busca) da Internet, e que as estimativas afirmam que representa 90 a 95% de todo o conteúdo online, não foge à lógica mercantilista e extrativista da surface web (aquilo que a maioria dos utilizadores associa à Internet no seu todo, e que mais não é que uma versão da humanidade com uma curadoria cuidada para potenciar o lucro das corporações). Para Crary, a deep web representa o espírito do capitalismo, em que tudo é permitido ‘desde que se possa monetizar e entregar por encomenda’.
A capacidade de integrar em si mesmo até aquilo que lhe parece contrário faz parte do baile de máscaras do capitalismo, em que nada é o que parece. Mesmo em clima de reflexão histórica, nunca foi mais penetrante a absoluta presença do modelo capitalista, subscrito por todos os Estados e por todas as corporações. A partir de autores como Aimé Césaire e Jean Baudrillard, Terra Queimada caracteriza o capitalismo e o subsequente aparato internético como o grande produto do colonialismo europeu/americano. Não existem hoje verdadeiras alternativas, uma vez que todos os países operam segundo uma lógica capitalista e o capitalismo é o único jogo possível na perspectiva dos agentes políticos, quer à direita quer à esquerda. Como defende Crary, a partir de Bernard Stiegler, ‘o complexo internético encarna um modelo de consumo tecnológico especificamente norte-americano que, na Europa e em toda a parte, encontrou pouca ou nenhuma resistência, o que liquidou as culturas regionais ou nacionais’. Não é então surpreendente que, tal como tudo é permitido na deep web desde que possa ser mercantilizado, qualquer discurso pós-colonial é permitido e até encorajado desde que dentro de uma lógica capitalista de extracção contínua da vida dos habitantes do planeta.
Políticos como o grego Yanis Varoufakis sugeriram inclusive que aquilo que existe agora não é mais uma forma de capitalismo, mas algo diferente. O termo neo-feudalismo foi proposto como forma de registar a estratégia de megacorporações como a Amazon, a Alphabet ou o Facebook/Meta. Mais do que competirem num mercado livre em que a procura e a oferta funcionam como a reguladora mão invisível, os seus modelos de negócio procuram intervir naquilo que antes era domínio dos Estados, ou seja, o próprio território, agora digital, em que o mercado funciona. No ensaio ‘Automaticity and the Mystery of State’, o pensador Vincent Garton sugere que a própria noção de Estado, tal como defendido por Thomas Hobbes em Leviatã, a de um Estado como ‘uma entidade verdadeiramente autónoma, uma pessoa artificial dotada de um mecanismo próprio e de uma vontade única distinta da de qualquer dos seus membros e do seu soberano’, é uma forma de inteligência artificial simulada. ‘A perspetiva contemporânea da I.A. como um sistema de máquinas verdadeiramente automático, capaz de raciocinar de forma autossuficiente, transforma a simulação em realidade, mas, ao fazê-lo, suprime a possibilidade de soberania humana necessária ao funcionamento do Estado moderno.’
O ataque do sistema internético ao espaço público e à própria noção de res publica, ou coisa pública, é feito através da opacidade com que a tecnologia opera; o poder legislativo é incapaz de prever ou sequer acompanhar a velocidade a que novas formas de extracção são criadas, deixando os cidadãos à mercê da benevolência, ou falta dela, das mega-corporações, e somos incapazes de perguntar, como aconselhava Marco Aurélio, o que são estas tecnologias em si mesmas, qual é a sua verdadeira natureza.
No filme Prometheus, de Ridley Scott, uma nave espacial é enviada a um planeta longínquo em busca dos ancestrais da humanidade. Como noutros filmes deste género, em dívida para com 2001: Odisseia no Espaço, é enviado junto com a missão uma máquina inteligente, o ciborgue David. Para os restantes membros da missão, o objectivo do ciborgue é claro: ele está ali para os auxiliar nas suas tarefas. Contudo, essa não é a realidade; a tecnologia não é transparente. O objectivo de David não é o de servir como auxiliar, mas sim como uma espécie de batedor do bilionário Peter Weyland, financiador da missão e que viaja escondido com a nave. Weyland é mantido vivo, apesar da sua idade, por tecnologia avançada, e pretende cumprir o seu sonho, conhecer o seu criador. Para além deste efeito especular entre Weyland e David, o de criatura e criador, existem na figura de David elementos que nos ajudam a entender como funciona o aparato Internético e a sua opacidade. A resposta à pergunta ‘para que serve?’ está, mais vezes do que não, nas intenções do seu criador.
A sedução da Internet, primeiro, das redes sociais, depois, e agora da I.A. está no facto de que as podemos usar para propósitos que são, aparentemente, nossos; podemos comunicar com pessoas que de outra forma não existiriam na nossa vida, podemos usar estas ferramentas para melhorar a eficácia e o alcance do nosso trabalho, podemos encontrar diversão e escape a uma vida enfadonha e cansativa, podemos inventar uma miríade de razões para afirmar que o uso que lhes damos é escolha própria. Mas então o que fazer de todos os relatos de vício, de alienação, de solidão? Poucas pessoas poderão dizer que estes são casos isolados, excepcionais, e tudo indica que são hoje a norma. As intenções dos criadores dessas tecnologias não é, logicamente, aquelas que inventamos para nós mesmos e que são o uso concreto, diário, dos utilizadores. As suas intenções estão alinhadas com um propósito simples e claro: ter acesso àquilo que é a matéria-prima mais importante deste início do século XXI. Como nos diz Crary, referindo Harold Innis, historiador dos média, ‘podemos entender o controlo empresarial das redes digitais como «monopólio do conhecimento», que serve as intenções de um império ou Estado dominante. Numa tecnologia como os modelos LLMN, como o ChatGPT, e apesar de poderem ser usados para efectuar muitas tarefas diferentes, o objectivo da corporação por detrás da tecnologia é apenas e só o de melhorar o próprio modelo, torná-lo mais eficiente e assim vencer a competição das outras corporações. Os utilizadores do ChatGPT (ou de qualquer rede social, na verdade) são a matéria que está a ser estudada e, ao mesmo tempo, depuradores da própria plataforma. Na visão de Crary, o aparato internético serve apenas e só os seus mestres, ou seja, as mega-corporações que dependem dele para impor o seu domínio sobre todos os aspectos da vida, sendo causador de sofrimento e alienação. ‘A imensa relocalização da vida social, económica e social para os sistemas e plataformas online alimentou uma transferência constante de riqueza para os escalões sociais superiores’, diz-nos.
Voltando ao filme Prometheus e à sua sequela (Alien: Covenant): que David escape, nos seus propósitos, até ao seu criador, é uma ideia sedutora que projecta um futuro até para lá das intenções daqueles que agora detêm o capital, mas esse é um futuro especulativo, que poderá ou não tornar-se verdadeiro.
Problemas do espírito
Jonathan Crary tem vários momentos de desalento, ao longo de Terra Queimada. Como diz a dada altura, ‘não obstante todas as nossas esperanças e intenções, perpetuamos irreflectidamente o desastre do presente global e condenamo-nos a herdar a tabula rasa terminal do capitalismo de terra queimada.’ Este perpetuar daquilo que nos é imposto parece ser o comportamento normal da maior parte da população (que ainda tem ou poderia ter alguma agência); o que pode explicar a aparente cumplicidade com que caminhamos para a nossa própria extinção?
Esta é uma pergunta a que Crary tenta responder, mas será o ponto em que Terra Queimada menos oferece respostas. A sua tese de que o complexo internético pulverizou a noção de comunidade em minúsculos fragmentos isolados não parece responder à facilidade com que as novas tecnologias, ainda que alienadoras, se impõem na vida dos seres humanos. Dizer que as pessoas estão alienadas porque a tecnologia as aliena é presumir aquilo que se tenta provar. Às tantas Crary sugere que a classe dos super-poderosos encara com uma espécie de descrença – a afirmação de uma injustiça – o facto de também eles irem morrer, apesar de tudo o que alcançaram; na sua visão esta perspectiva explica a agenda dos indivíduos mais ricos do planeta, mas não dá o passo seguinte.
O terror da morte é partilhado pela maior parte dos seres humanos. Contudo, uma ideia que é menos aceite e que me parece tão verdadeira quando a anterior, é que também a maior parte dos seres humanos nutre uma espécie de ódio ao frágil aparato com que nascemos, um ódio à fragilidade do corpo, à permanente sensação de perigo, à violência que pauta as nossas interações com os outros humanos e com o mundo. O viver sem sentido, o trabalhar sem parar, a corrida dos ratos, a grande roda. A digitalização não obtém quase respostas negativas porque ela oferece a fantasia de que também nós seremos feitos de luz, ou de informação; abarcamos nessa fantasia porque estamos cansados de sofrer da condição humana. Os humanos não se comparam com os humanos, comparam-se com os anjos, comparam-se com as imagens de deus, e é por isso que, desde sempre, imaginaram paraísos onde poderiam viver sem o peso do corpo; ao contrário das imagens do inferno, em que é sobretudo o corpo que sofre, no paraíso não existe a antítese do sofrimento carnal, o prazer da carne, mas um estado espiritual beatífico, mais parecido com a ideia de digitalização, de leveza, de existir nas nuvens. Crary ataca a afirmação mentirosa de que o aparato internético não necessita de modelos extractivistas e de destruição do planeta, mas não leva a ideia às últimas consequências.
Para reforçar a ideia de que a existência artificial oferece aos humanos ilusões de escapar ao jugo do poder coercivo, podemos olhar para o ensaio Machine Envy, de Wang Xin, que descreve como, na China, e devido à repressão estatal, se tornaram comuns bots que reciclam e publicam o pensamento de pensadores críticos ao regime. Num ambiente em que seres humanos não têm a liberdade de se expressar, são procuradas formas de expressar descontentamento recorrendo a uma camuflagem não-humana. Como diz Wang Xin, isto reflecte ‘um sentimento palpável de inveja das máquinas, em que a tecnologia avançada não incorpora necessariamente os tipos, demasiado familiares, da servidão ou da ameaça existencial’.
Claro que é sedutor pensar que tecnologias como o vídeo ou a fotografia, que funcionam muitas vezes como activadores de memória, são o prenúncio de tecnologias digitalizadoras que permitirão aos seres humanos viver num mundo digital. Filmes como Belovy, de Victor Kossakovsky, com a sua pungente cena final, em que uma viúva reage a gravações áudio do seu marido, reforçam o potencial fantasmático do cinema e de qualquer aparato técnico que vise reter em si uma humanidade desaparecida, mas ao contrário das nossas memórias, ou de aparatos abstractos, o mundo digitalizado não é coisa pública, mas sim um produto em que o controlo sobre os indivíduos é exacerbado.
No seu discurso de aceitação do prémio Nobel, em 1949, William Faulkner disse que ‘já não há problemas do espírito. Há apenas a questão: Quando é que vou explodir?’ Uma das consequências mais graves do capitalismo é a ausência de agência a que está destinada a maior parte da população da Terra. No momento em que as decisões serão mais decisivas, apenas um punhado de pessoas terão o poder decisório. Como diz Crary, ‘O capitalismo aproxima-se do esgotamento quando a tecnologia não se limita a a incrementar a a productividade humana, mas a substitui-la’.
A questão que Faulkner levanta é a da incapacidade do indivíduo face à escala das novas ameaças que enfrenta. A escala da bomba atómica é a escala da tecnologia desde então, sempre renovada no seu alcance.
A palavra-chave na frase de Crary é substituição, que opera sobre a psique comum da mesma forma que o medo da bomba atómica funcionou nos anos que se seguiram a Hiroshima e Nagasaki. O novo Cristopher Nolan, Oppenheimer, demonstra com agudeza a falta de razão (ou a verdadeira face da razão) com que opera o poder político, apresentando-o como refém da lógica interna da tecnologia, lógica essa que escapa ao indivíduo, cada vez mais nas margens da História.
O ponto-fixo do futuro catastrófico
Apesar de não oferecer uma resposta clara que explique a ausência de respostas ao poderio das mega-corporações, ainda assim Crary ensaia uma resposta para que se combata, num momento derradeiro, este estado de coisas. Há dois tipos de substituição a ocorrer, na sua visão.
A primeira é a substituição do humano na escala da vida, ao tornar obsoleto aquilo que ele precisa para viver uma vida digna e interessante; esse processo é inteiramente da responsabilidade do capitalismo, no geral, e do aparato internético, neste contexto particular. A segunda é a substituição do humano enquanto mecanismo de afecto; Crary defende o afecto humano como algo que é necessário para a nossa vida na Terra, afecto só possível de encontrar na presença dos outros, offline.
Recorrendo ao testemunho de activistas dos Dream Defenders, grupo que se formou em 2012, nos Estados Unidos, em resposta ao homicídio do afro-americano Trayvon Martin, Crary defende que a ideia de que na Internet é possível estabelecer redes de apoio emancipatórias é ilusória. Citando um dos organizadores, ‘todo o combate que acontece nas redes indica que as pessoas realmente não se conhecem. As redes sociais dão a ilusão de existirem relações fortes. Desde que as pessoas realmente não se conheçam, a acção nunca há-de ir muito longe’. Entre as razões que apresenta, nomeia ainda a influência de programas de espionagem e contra-informação estatal, que corroem por dentro a frágil coesão destes grupos de activistas. Para Crary, os movimentos estudantis e sociais dos anos 60 e 70, efectuados sem recurso à internet e com impactos significativos e duradouros, oferecem um contraponto à ideia de que a Internet pode ser uma tecnologia emancipadora. Uma das suas principais críticas à politização online é que ‘a política torna-se um prolongamento dos mesmos gestos e batidas no teclado, do igual recurso a inquéritos e e sondagens que integram ainda mais as pessoas nas rotinas do consumismo e da gestão pessoal. Assim, dá-se um passo à frente e três atrás’.
‘Não há alegria ou tristeza, beleza ou exuberância na internet. Encontramos poemas, mas poesia não’, diz Crary. Um poema que seja colocado numa rede social não oferece a quem o olha o poema enquanto coisa a ser perseguida, mas apenas a rede como aglutinadora. Ou seja, o instrumento tecnológico reproduz-se a si mesmo e aumenta o seu raio de acção através da aglutinação de outros instrumentos e outras lógicas de ver o mundo, como um monstro que tudo come e que cresce de forma desmesurada. Mesmo aqueles que, em disciplinas como a literatura ou o pensamento, se dobram perante certas tecnologias, na esperança de manter a sua relevância no mercado das ideias, veem os seus esforços derrubados pela experiência da antítese, tudo aquilo que defendem acaba desvalorizado; de que serve, por exemplo, adaptar a poesia e o impulso poético para serem consumíveis nas redes sociais, se estas atacam, a fundo, a literacia e acapacidade de atenção; sobretudo, de atenção ao outro. Ao aceitar que é preciso estar nas redes para existir, o mundo em que há um público para a poesia acaba por ruir.
Como outros textos sobre este tema, Terra Queimada não oferece um determinado tipo de esperança, ou de saída, a não ser a recusa completa do aparato internético e do capitalismo através da acção daqueles que, agora isolados, creem num futuro diferente. ‘O complexo internético continua a gerar estas subjectividades solitárias em massa, a dissuadir de formas cooperativas de associação e a dissolver possibilidades de reciprocidade e responsabilidade colectiva’. O seu esforço é claro, ao demonstrar como não existe saída ou compromisso com o aparato capitalista, e como não é possível encontrar saídas dentro do próprio capitalismo para reverter a situação. Em frente a esta espécie de abismo feito de números e fórmulas computacionais, só novas formas de solidariedade podem funcionar.
O activismo climático, que tanto colhe apoiantes como detratores ferozes, situa-se portanto nesta encruzilhada, em que, por um lado, subsiste ainda a esperança da diplomacia, e por outro, o tempo para a mudança se esgota. Para certos pensadores, como Roger Hallam, um dos fundadores do movimento Extinction Rebellion, não só é necessário criar pressão social para tentar reverter a situação, como é fundamental criar comunidades que possam servir de base para uma sociedade pós-catástrofe; os movimentos activistas actuais não são só uma forma de intervir no presente, mas de criar as sementes de sociedades futuras, com novas alternativas de organização e diferentes orientações ideológicas.
Esta ideia vai ao de encontro de Jean-Pierre Dupuy e do seu ‘ponto-fixo’, o ponto-zero da guerra nuclear, do colapso climático, do caos social e económico. Esse ponto, ainda que vá sendo adiado, funciona uma espécie de atractor. Para Dupuy, a única estratégia viável é introduzir a ideia de que a catástrofe é inevitável, colocarmo-nos na posição de sobreviventes (no futuro) e, retroactivamente, agir para tentar evitá-la no passado (o passado da catástrofe, o nosso presente). Desta forma, escaparíamos à ambiguidade de estar permanentemente à espera de uma catástrofe que paira sobre nós, mas que se projecta num futuro indeterminado.