Clínica mais24. Onde a adição é tratada por ‘tu’

No centro de Carcavelos, em Cascais, nasceu a clínica Mais24, onde a psicoterapia, a psiquiatria, a fisioterapia, a terapia ocupacional, a atividade física, entre outros, se unem para auxiliar quem sofre com problemas de adições. Sejam adições a substâncias psicoativas, como álcool ou drogas, como adições comportamentais como o jogo, sexo, comida, entre outras.

O relatório anual sobre a situação do país em matéria de Drogas e Toxicodependência em 2021 do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências (SICAD), mostra que o número de mortes por overdose com cocaína foi de 51%, o valor mais alto desde 2009. Em 39% foi detetada a presença de opiáceos.

Segundo o relatório, os números registados nos últimos quatro anos de overdoses com cocaína e opiáceos foram os mais altos desde 2011. Na maior parte dos casos (84%), havia a presença de mais de uma substância, com destaque para benzodiazepinas (58%) e álcool (22%). Além das 74 mortes por overdose, foram registados outros 339 óbitos por outras causas e que apresentaram resultados toxicológicos positivos, um número que tem aumentado desde 2016, atingindo em 2021 o valor mais alto. Os dados indicam que 42% destas mortes foram atribuídas a morte natural, 36% a acidentes, 13% suicídio e 3% homicídio.

Em 2021, estiveram em tratamento 23.932 utentes com problemas relacionados com o uso de drogas no ambulatório da rede pública, referem os dados, sendo salientado que, dos 3.236 utentes que iniciaram tratamento, 1.538 eram readmitidos e 1.698 novos utentes. Por estes e outros motivos, André Marques, de 46 anos, mental coach, estudante de Psicologia e fundador da clínica Mais24, que aposta n’”O Programa Recuperar”, uma abordagem em contexto de ambulatório para dar uma resposta estruturada a problemas de adições, com base no programa de 12 passos de grupos de dependências químicas e comportamentais como os Narcóticos Anónimos.

«O meu grande objetivo é dar a conhecer um problema que abrange muitas pessoas, o da adição. Eu sou adito e, portanto, a minha relação com a adição, sendo ela uma doença, veio desde sempre, mas começou a ser uma doença quando tinha 19 anos. Esta doença ainda é muito estigmatizada, ainda é muito vista como uma questão de força de vontade, como se as pessoas não saíssem da mesma por não quererem. Eu quero que isso mude. A adição é uma doença mental e crónica que, de forma um bocadinho mais elucidativa mas muito rudimentar, é talhada por uma imaturidade emocional», começa por explicar André Marques, em declarações à LUZ.

«Tudo o que gere emoções e sentimentos cria um conflito emocional que leva a um sistema de recompensas imediato. É progressiva: numa primeira fase, não conseguimos ter o sentimento de pertença, não nos sentimos bem em lado nenhum, ligamo-nos a coisas durante algum tempo e deixamo-nos de ligar… Não é fácil de entender até que se torna aquilo que gere a nossa vida. A partir daí, tornamo-nos egocêntricos e destrutivos», continua. «A minha relação com a minha droga de escolha começou aos 20 e poucos, mas todos os meus comportamentos até essa idade denotam dificuldade em lidar com a frustração. Morava em Setúbal e, aos 18 anos, decidi ir estudar para Évora. Era atleta federado e o meu vínculo ao desporto terminou. Foi aí que tudo começou com o álcool, fumei THCs, consumi cocaína e MHDMA. Desde aí, foi uma sucessão de fracassos», sublinha. 
«Fiz tudo pelos mínimos ou coisas incompletas. Comecei a trabalhar com o meu pai já numa perspetiva de salvamento e fui sempre construindo para destruir. Casei, tive dois filhos, tive casa e carro, tudo o que supostamente é indicativo de sucesso, mas nada disso me preencheu porque nunca estive disponível para perceber o que era esta doença. Não criei ligação com os meus filhos nem com ninguém. O meu pai assumiu um papel de salvador e só há pouco tempo conseguiu despegar-se disso. A adição arrasta toda a gente que está ligada ao adito para um buraco escuro», admite. «Foi assim que, aos 39 anos, decidi pedir ajuda. Nunca o tinha feito antes porque a adição, em mim, manifesta-se com alguma grandiosidade e nunca tinha tido a humildade de perceber que tinha o mesmo problema daqueles a que chamava ‘agarrados’, ‘carochos’ e por aí fora. A única diferença é que uns têm uma casa e um carro para consumir e outros consomem na rua. Quase aos 40 anos, fui para um centro de tratamento que se chama o Farol e foi aí que me salvaram a vida».

 «Percebi que esta doença escolhe vários veículos. Pode ser uma substância ou um comportamento. O veículo desta doença está a mudar. Por exemplo, hoje temos a dependência de gadgets, de ecrãs e isso torna as pessoas completamente disfuncionais. Não conseguem lidar com tempos de espera ou frustração, ou objetivos um pouco mais desafiantes, porque é tudo imediato», explica. «É um conjunto de coisas que facilitam a capacidade de ter respostas a qualquer minuto e isto leva a que não haja perceção de certas coisas ou elos com consistência suficiente para se ter algum tipo de sentimento quando são perdidos. Este é um dos paradigmas que estão a mudar na adição», diz, sendo que a Organização Mundial da Saúde (OMS), define esta adição como «uma falta de controlo crescente ao longo de um período superior a 12 meses, em que se dá cada vez mais importância aos videojogos, mesmo com consequências negativas (falta de sono, irritabilidade, exclusão de outras atividades do quotidiano)».

«Eu próprio experienciei outras adições. Por exemplo, a comida. Há muitas adições cruzadas. Substituímos uma por outra e continua tudo igual porque desorganizamos todas as áreas da nossa vida em função daquela coisa. Quando fui para aquela comunidade terapêutica, tive de pensar muito bem naquilo que ia fazer. Achei que estaria lá um mês e fiquei lá um ano. Ao fim desse tempo, saí e comecei a ter de reconstruir a minha vida. Este projeto é a possibilidade de eu oferecer às pessoas aquilo que podem ter para colmatar as dificuldades que eu tive. Os internamentos são uma resposta que não nos prepara muito bem para o mundo dito da vida real. É um simulador, talvez. Durante o primeiro ano… Foi um ano de encontro», reflete. «Percebi aquilo que me preenchia, as relações interpessoais, fui fazendo o meu caminho e, no dia 8 de setembro faz 6 anos, consigo ter estabilidade e tudo aquilo que sempre quis. Não tenho o direito de me tornar novamente numa pessoa que gera preocupações», realça.

Para além dos dados referentes a 2021, existem outros preocupantes. Já em janeiro desse ano, era noticiado que tinham voltado a aumentar as mortes no país relacionadas com o consumo de droga. Os dados constam no relatório apresentado pelo SICAD, que foi apresentado na Comissão de Saúde, da Assembleia da República. Numa audiência por videoconferência, José Goulão, diretor-geral do SICAD, e Manuel Cardoso, subdiretor, apresentaram o documento, que reporta a 2019, e que demonstra que houve uma evolução negativa no que diz respeito a drogas, toxicodependências e álcool. De acordo com os responsáveis, em 2019 registaram-se 63 óbitos por overdose, aos quais se somaram 262 mortes por outras causas, mas que apresentavam resultados toxicológicos positivos. Os dados revelam que as mortes por overdose aumentaram pelo terceiro ano consecutivo. Quanto aos consumos, o relatório revela que em 2019 estiveram em tratamento em ambulatório 25.339 utentes com problemas associados ao consumo de drogas – 1.959 eram novos utentes e a canábis era a substância associada à maioria (53%) dos pedidos de tratamento. Já os utentes readmitidos, o total ascendeu a 1.512 no ano em questão, e a heroína (54%) era a droga principal.

«É engraçado porque aquilo que faz com que não consigamos mudar a nossa vida é o medo da responsabilidade, mas também é a responsabilidade e lidar com a mesma que nos dá a liberdade de sermos quem somos. Cheguei até aqui hoje e a Mais24 é precisamente isso: dar uma resposta que, acho, não existe muito em Portugal. Ou seja, fazer um tratamento em ambulatório em que as pessoas podem usufruir de uma série de serviços e olhar a adição de outra maneira, crescendo enquanto enfrentam o dia-a-dia. Portanto, a Mais24 surgiu nesta perspetiva e parece-me que tem uma oferta terapêutica vasta: psicólogos, psiquiatras, nutricionistas, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, etc.», afirma André Marques. «Aprende-se tudo aqui, até a gerir o dinheiro, a entender cada despesa, a responder a entrevistas de emprego…», narra.

De facto, no documento relativo ao plano terapêutico da Mais24 – que tem este nome devido ao lema homónimo dos Narcóticos Anónimos, que simboliza o desejo por mais 24 horas de abstinência – é possível ler sobre cada vertente d‘“O Programa Recuperar”. Por exemplo, naquilo que diz respeito à nutrição, lê-se: «A nutrição é muito mais do que a análise dos nutrientes presentes nos alimentos. Comer é um ato influenciado por diversos fatores, externos e internos. Dentro dos fatores externos estão englobados, a cultura, a família e o acesso e disponibilidade aos alimentos. Os fatores internos são, a genética, o estado nutricional, o estado fisiológico de fome e saciedade e todo o historial alimentar da pessoa em questão. Posto isto, pode haver uma associação entre a adição e a utilização de comida como forma de prazer e satisfação, podendo dar origem a alguns distúrbios. Através das consultas de nutrição é possível identificar qual a origem do problema e estabelecer objetivos concretos para que a pessoa desenvolva uma relação consigo e consequentemente com a comida, mais tranquila e prazerosa. Para isso é essencial trabalhar em equipa e perceber que cada profissional tem um papel muito importante na evolução do cliente».

«Outro ponto fulcral é o apoio prestado às famílias. Normalmente, não têm apoio e pensam que o problema é do familiar com quem se relacionam e que terá de ser o adito a fazer o seu trabalho. Mas não é totalmente verdade: as famílias também ficam doentes. A codependência é tão ou mais gravosa do que a adição. Quando os aditos decidem deixar a adição, fica um vazio. Fazemos o luto dessa perda e tem de haver o preenchimento desse vazio. E quando o adito deixa de ser um problema, deixa de ter de ser cuidado, também fica um vazio para os familiares! As pessoas têm de ter a capacidade de olhar para elas, de se cuidarem e não há grande oferta terapêutica neste âmbito», observa. «Essa valência é muito importante para nós».

«Com a minha história, posso ajudar pessoas com o mesmo problema que eu e os seus familiares. Ao mesmo tempo, isto responsabiliza-me. A adição não pode ser vista como uma deficiência ou algo que não pode ser recuperado. Os problemas fazem sempre parte das soluções. Enquanto puserem tudo à margem… Um sistema tem vida própria e não podemos estancar um problema como se não fizesse parte do mesmo», avança, adiantando que «quanto mais depressa houver a capacidade de tentar entender o problema, ele fará parte da solução» e na adição tal «é essencial». «É sempre possível fazer uma mudança, é sempre possível recuperar. No meu caso foi aos 39 anos», conclui. l