Oppenheimer e a bomba atómica que chegou ao cinema este verão

O filme de Christopher Nolan foi repudiado por alguma da crítica de cinema, sobretudo entre nós, sinalizando uma espécie de indisposição face aos elementos de reflexão nesse teatro negro através do qual o cineasta articula as indecifráveis notícias dos nossos dias numa música excessiva e quase insuportável, dando-nos uma visão do terror que aí vem.

Não houve mais nenhum homem que tenha dormido um sono profundo nesta terra sabendo alguma coisa do que os homens haviam criado no intuito de provocar uma destruição impossível de abarcar pelos nossos piores pesadelos. Depois disso, só foi possível encontrar a paz numa deslumbrada ignorância ou por meio de uma obscura resignação. Se a máquina do mundo foi sempre demasiado complexa para que os homens pudessem ter dela algo mais que uma vaga noção, talvez J. Robert Oppenheimer tenha sido desses seres que transcendem a sua espécie, não para melhor nem para pior, apenas para que a História possa levar mais longe a construção desse futuro com lucidez de pesadelo.

Vemos hoje como a perdição foi forjando um mundo, uma realidade que sofre de caos, adoece de irrealidade, e o inferno aparece-nos cada vez mais como um vazio, deixando entre nós a sua fauna de monstros sem a menor consideração pelo destino colectivo ou pelo sofrimento que as suas acções causam. O horror desencadeado pelo evento nuclear está hoje disseminado de variadas formas, um pouco por toda a parte, e desde logo faz parte do medo que há em nós, uma mosca nas paredes da alma, causando em nós uma perturbação íntima com o ruído funéreo das suas asas. Cormac McCarthy, no penúltimo dos seus nove romances, “O Passageiro”, um livro que começara a escrever há décadas, e no qual se debate com as questões da moralidade e ciência e do “legado do pecado”, afirma às tantas que o motivo que levou o General Groves a chamar Oppenheimer para dirigir o Projecto Manhattan foi ter percebido que ele não se deixava intimidar. Não foi propriamente o seu génio, mas essa fria determinação de juntar as peças e obter a configuração desejada, sem deixar que o perturbassem as terríveis consequências que aquele avanço significaria. “Muitas pessoas dotadas de grande inteligência achavam que, provavelmente, ele era o homem mais brilhante que Deus alguma vez criara. Um tipo bizarro, o tal Deus”, anota McCarthy.

O terror tornou-se doravante o próprio nome do nosso tempo, e não deixa de ser curioso que, segundo reza a lenda, Oppenheimer tenha citado de forma aparentemente incorrecta um trecho do Bhagavad Gita ao testemunhar a primeira detonação nuclear sobre Alamogordo: «Agora torno-me a morte, o destruidor de mundos.»  A palavra em sânscrito para Tempo foi traduzida por Morte. Cormac McCarthy admite, no entanto, que “talvez as duas palavras sejam iguais”. Talvez esse seja o desanimado segredo da época que vivemos, a sensação de que a vida se tornou meramente uma forma de relação com a morte que vem.

Como se lê às tantas nas páginas da monumental obra de investigação “American Prometheus: The Triumph and Tragedy of J. Robert Oppenheimer”, livro que levou aos seus autores, Kai Bird e Martin J. Sherwin, um quarto de século a preparar, e que serviu de base ao argumento do filme de Christopher Nolan que estreou este verão e obrigou o mundo inteiro a confrontar-se uma vez mais com a possibilidade de uma catástrofe nuclear, se “depois do fim da Guerra Fria, o perigo de uma aniquilação nuclear parecia ter sido debelado, no que veio a ser uma viragem irónica do destino, a ameaça de uma guerra nuclear e a possibilidade de futuros atentados terroristas com recurso a estes dispositivos é mais iminente neste século XXI do que alguma vez foi no passado”. Se a invasão da Ucrânia nos fez despertar desse estado de torpor provocado pela noção do “fim da História”, McCarthy deixa claro que a História nem sequer hibernou, mas está prestes a engolir-nos a todos, e meses depois da sua morte não deixa de ser curioso como o seu poder descritivo, a força de conflagração da sua prosa se demonstre dotada desses elementos que são capazes de inspirar uma verdadeira noção daquilo que nos espera, recorrendo para o efeito a dispor na mesa uma série de cartas roídas na tentativa de nos dar uma ideia do que está longe de ter ficado preso no passado. “Houve pessoas que fugiram de Hiroxima e se precipitaram para Nagasáqui, para se certificarem de que os familiares estavam bem. Chegaram mesmo a tempo de serem incineradas. Ele foi até lá depois da guerra, com uma equipa de cientistas. O meu pai. Contou que tudo estava ferrugento. Tudo parecia coberto de ferrugem. Havia carcaças de elétricos carbonizados, parados nas ruas. O vidro derretera-se nos caixilhos e formava poças no piso de tijolo. Sentados nas molas enegrecidas, os esqueletos calcinados dos passageiros, cuja roupa e cujo cabelo haviam desaparecido, tiras enegrecidas de carne penduradas dos ossos. Os olhos cozidos, arrancados das órbitas. Lábios e narizes destruídos pelas chamas. Sentados nos bancos, a rirem-se. Os vivos deambulavam por ali, mas não tinham por onde ir. Avançavam rio adentro, aos milhares, e ali morreram. Pareciam insetos, já que nenhuma direção era preferível a outra. Pessoas em chamas rastejavam entre os cadáveres como um espetáculo horrendo num vasto crematório. Pensaram, pura e simplesmente, que era o fim do mundo. Quase nem lhes ocorreu que aquilo tivesse alguma coisa que ver com a guerra. Carregavam a pele numa trouxa diante de si, nos braços, como se fosse roupa lavada, evitando que arrastasse no entulho e nas cinzas, e cruzavam-se tresloucadamente nas suas errâncias tresloucadas, sobre o terreno fumegante do rescaldo, aqueles que haviam conservado a vista não mais abençoados do que os cegos. A notícia de toda esta tragédia nem sequer se propagou para fora da cidade durante dois dias. Os sobreviventes recordavam muitas vezes estes horrores numa perspetiva, em certa medida, estética. Naquele fantasma micótico a desabrochar na alvorada como uma flor de lótus maligna e no derreter de sólidos que até então ninguém julgara passíveis dessa transformação existia uma verdade capaz de silenciar a poesia durante mil anos. Como uma imensa bexiga, contavam. Como uma criatura marinha. A tremular ao de leve no horizonte próximo. Em seguida, o ruído indescritível. Viram aves no céu matinal a incendiarem-se e a explodirem em silêncio e a caírem em longos arcos, como brindes em chamas, numa festa.”

A responsabilidade da criação da bomba nuclear não pode ser atribuída a uma só mente prodigiosa, tendo sido o produto da concatenação de uma série de descobertas, e qualquer lista abreviada dos principais contributos não poderia deixar de incluir Ernest Rutherford, que desvendou o núcleo do átomo; Niels Bohr, que modelou o átomo; Ernest Lawrence, que inventou um ciclotrão para esmagar átomos; e Enrico Fermi, que desenvolveu o reactor nuclear. Mas a Oppenheimer coube o tão assombroso quanto dúbio reconhecimento de ter sido apelidado de "o pai da Bomba Atómica". E se a este físico nunca foi atribuída qualquer grande descoberta científica, nem propôs sequer uma teoria que tenha abalado os pressupostos da ciência moderna, além da sua resiliência, o seu talento articular estava na capacidade de compreender as peças que fazem funcionar a tal máquina do mundo, compreender e sintetizar o conhecimento de outros, conseguir organizar e dirigir esses contributos com um singular propósito: a criação de uma bomba que fosse capaz de desencadear uma reacção destrutiva alimentada pela “luz de mil sóis”, e que fosse capaz não apenas de reduzir a escombros toda uma cidade, mas, como fizeram os romanos ao salgar a terra em Cartago, torná-la inabitável para as gerações vindouras.

O investigador David Farrier deu-nos uma boa ideia dessa engenharia do pavor em que Oppenheimer actuou como um grande maestro, e no livro “Pegadas: em busca dos fósseis futuros”. "Quando a primeira bomba atómica foi detonada em Alamogordo, no Novo México, na manhã de 16 de julho de 1945, a explosão vitrificou o deserto em redor. Areia sobreaquecida lançada pelo ar liquefez-se de imediato e depois arrefeceu, enquanto caía numa tempestade de granizo de vidro verde-claro, enchendo a cratera da bomba com aquilo que parecia um lago de jade. Os ensaios de armas termonucleares de larga escala começaram em 1952, alcançando um pico no início da década de 1960. Desde o ensaio Trinity em Alamogordo, mais de 1600 engenhos nucleares explodiram em todo o mundo — em média, cerca de uma detonação de 10 em 10 dias ao longo de 42 anos.

Talvez a experiência mais infame tenha tido lugar na madrugada de 1 de março de 1954, quando o Exército dos EUA detonou a «Bravo», uma bomba de 15 megatoneladas, sobre o atol de Bikini, no oceano Pacífico. A explosão vaporizou três pequenas ilhas e deixou uma cratera com um quilómetro e meio de diâmetro.  Poeiras radioactivas foram detetadas na chuva que caiu no Japão e no vento que soprou pela Austrália. A vida marinha ficou tão saturada pela radiação que peixes apanhados nas imediações de Bikini deixavam uma imagem espectral se fossem encostados a placas fotográficas, com as partes mais altamente radioactivas a brilhar como se iluminadas por uma explosão interna. Em Rongelap, um atol a 140 quilómetros de distância, os ilhéus reuniram-se na praia na manhã do teste Bravo para assistir ao espectáculo. Testemunhas descreveram uma luz brilhante no horizonte, como um segundo sol. Não muito depois, pareceu cair neve na praia. Os missionários tinham-lhe falado da neve; que caísse nas ilhas Marshall parecia um milagre. Crianças brincaram entre a poeira de partículas brancas que cobria a areia, apanhando as partículas brancas com a língua. Só mais tarde os ilhéus vieram a descobrir que a neve era na verdade um composto de coral vaporizado e cinza radioactiva. (…) Num testemunho prestado diante do Tribunal Internacional de Justiça em 1995, Lijon Eknilang, uma testemunha do ensaio Bravo, disse que por vezes as mulheres de Rongelap davam à luz, ‘não crianças como queremos imaginar, mas coisas que, pela nossa experiência, só poderíamos descrever como ‘polvos’, ‘maçãs’, ‘tartarugas’ e outras coisas’. Estes ‘bebés alforrecas’ — nascidos sem ossos, e com pele tão transparente que os seus cérebros e corações pulsantes são visíveis — vivem apenas umas horas, a tiritar na fronteira da irrealidade. Os ilhéus acabaram por ser retirados de Rongelap em 1985, com a ilha a ser decretada insegura para a ocupação humana durante 24 mil anos.

 Nove anos após terem sido detonadas as bombas em Hiroxima e Nagasaki, altura em que Oppenheimer foi louvado como um patriota, aquela mesma máquina virou-se contra ele, e foi arrastado para um processo humilhante, acusado de tendências comunistas e de "defeitos substanciais de carácter". A biografia em que é baseado o filme de Nolan, significou um confronto como um dos capítulos mais obscuros do século passado, reavaliando o papel daquele homem na constituição de um legado insuportável e para o qual não há verdadeira redenção, traçando um retrato bem mais complexo da personalidade de Oppenheimer desde os primeiros anos como uma criança prodígio mas insegura e que viria a tornar-se um líder carismático, um polímata que aprendeu sânscrito para poder ler o Bhagavad Gita, um homem viajado e que tinha condições de avaliar os perigos desse parto que oficiou, mas que tinha, ao mesmo tempo, uma capacidade tenebrosa para se iludir a si mesmo e construir uma reserva de ingenuidade em relação à política.

O filme de Nolan, como reconheceu Kai Bird, o único dos dois autores da biografia que continua vivo, é extremamente fiel àquela investigação, e o que foi verdadeiramente confrangedor em tantas das reacções dos críticos e cinéfilos, desde logo entre nós, foi o terem permitido que o filme actuasse como um detonador para que, no debate à volta de uma urdidura tão complexa, ficasse apenas a sombra de cada um desses seres que se deslocam ao cinema ansiosos por imprimir com a sua compreensão limitada, os seus modos de dizer contados, quase invariáveis, num estilo tão solenemente estafante e cinzentão, toda a vacuidade inenarrável dos seus juízos, cingindo-se a impressões limitadas e a um desdém generalizado pela gramática espectacular de Nolan, e produzindo aquela miséria de epítetos através dos quais se acham capazes de analisar seja o que for.

No fundo, os nossos críticos não viram nada, e uma vez mais deram provas da sua cegueira, enquanto se queixavam do aparato de Nolan, da opulência visual do filme, do excesso da sua banda sonora, eles que se exprimiam uma vez mais através de um vocabulário indigente, com aquele tom insípido e insonoro. Ou seja, aferraram-se aos seus preconceitos estéticos, àquela deplorável e beata preocupação exclusiva com a forma, denunciaram uma vez mais as estridências de Nolan, enquanto que eles próprios instalavam o registo de tagarelice judicativa sem conseguirem ocultar o vazio intelectual das suas arengas. Entretanto, o filme impôs a sua nuvem negra sobre o verão mais quente desde que há registos, e expôs os vícios de uma civilização decrépita, deixando-nos entre essas coisas mudas e perdidas, sentindo-nos devastados com os divertimentos e os prazeres estéticos através dos quais nos acobardamos de um confronto decisivo com a realidade. Talvez isso explique a irritação dos críticos. Queriam flores, e Nolan concebeu um filme com o impacto de cercante de uma explosão que vai operando em diferentes níveis de consciência, e sitiando os nossos sentidos. Mas eles teriam preferido uma coroa de flores: “sempre as flores haverão de vigiar a morte”, escreveu Borges, “porque sempre nós, homens, inexplicavelmente soubemos/ que a sua vida dormente e graciosa/ é a que melhor pode acompanhar os mortos/ sem nunca os ofender com a soberba da vida,/ sem ser mais vida do que eles”.