Boavista: esquisitas camisolas

O Boavista entrou em grande neste campeonato. Tempo para recordar a primeira grande aventura que o levou a lutar pelo título – 1975-76.

Confesso que tenho alguma dose de responsabilidade naquela coisa de chamar ao Boavista o clube das camisolas esquisitas. Não tem importância de especial e também não se cometeu nenhum crime pelo que posso contar a história sem ir parar às caldeiras de Pêro Botelho. Há muitos anos eu estava em Milão. Ou, para ser mais correto, nos arredores de Milão, em La Pinetina, o centro de estágio e de treinos do Inter. O sorteio da Taça UEFA fizera com que Inter e Boavista se cruzassem e, nesse tempo, o jornal A Bola tinha a boa prática de enviar um jornalista para acompanhar durante alguns dias os adversários das equipas portuguesas nos torneios internacionais de forma a fornecer aos leitores notícias frescas sobre elas e não pacotes requentados de um bricabraque de banalidades. Era um grande Inter, treinado por Corrado Orrico (Orrikson para os amigos) com três alemães, Matthaus, Brehme e Klinsmann, mas nem por isso deixaram de ser eliminados pelo conjunto na altura comandado por Manuel José, com quem viajei depois para Roma para assistirmos juntos ao Roma-Inter. O guarda-redes dos interistas era Walter Zenga, conhecido por Walterone. Conversei um bocado com ele sobre a eliminatória e sobre o Boavista. Às tantas, encolheu os ombros e disse: «No lo so niente di Boavista. Apena qui ha dei camicie particolare». Na minha obrigação de traduzir tal frase para português, frase que me soava a título, já agora, passei o «particolare» a esquisitas e, durante uns tempos, o nome acabou por pegar: o Boavista era o clube das camisolas esquisitas.

Os quadradinhos do Boavista foram estreados no dia 29 de janeiro de 1933, numa vitória retumbante frente ao Benfica por 4-0, deram sorte e ficaram para sempre. Mas foi preciso esperar pela época de 1975-76 para que o Boavista ganhasse dimensão nacional graças a um campeonato no qual se bateu durante algum tempo com o Benfica pelo primeiro lugar e se estreou em chegar ao fim como segundo classificado. Nesse tempo, quando um clube que não fosse Benfica, Sporting, FC Porto e ainda um restinho de Belenenses ficava em segundo era como se tivesse sido campeão. Ou quase. 

 

A anulação de Alves

Disputada entre 16 equipas, a prova terminaria com o Benfica campeão, 50 pontos em 30 jogos, dois pontos apenas de diferença para os axadrezados, ou para os adamados, afinal o tabuleiro das 64 casas é o mesmo para os dois jogos. Três derrotas para cada um, embora os encarnados, como forma de justificarem a justeza do título tenham batido o seu adversário duramente no Bessa, por 4-1, quando o ano de 1976 se iniciava. Dia 10. Este episódio que se segue foi-me contado por Nelinho, o grande Nelan, figura única do futebol português e primeira grande transferência entre dois clubes portugueses quando assinou pelo Braga em 1978. Joaquim Manuel Rodrigues Silva Marques tinha um jeito muito especial para contar episódios com chiste. À medida em que o jogo do Bessa se aproximava e a imprensa já começava a falar no encontro do ano, provavelmente decisivo, como foi, para as contas gerais, Mário Wilson, o Velho Capitão, treinador encarnado chamou Nelinho e explicou-lhe a sua ideia: ia dispensá-lo dos treinos. Metia-se num comboio para o Porto e ficava com a incumbência de tomar nota de todos os pormenores do jogo de João Alves, um médio de múltiplos recursos que viera do Montijo e orientava toda a estratégia do onze dirigido por José Maria Pedroto. De tal ordem que na época seguinte partiu para Salamanca, foi considerado o melhor estrangeiro do campeonato espanhol, viu abrirem-se-lhe e fecharem-se-lhe as portas do Real Madrid e acabou por vir para ao Benfica.

Nelinho cumpriu o seu papel. Neves de Sousa escreveria: «A vingança do Bessa roçou as raias do incrível. Alves mal tocou no couro, ainda hoje dando voltas à cabeça para perceber como aquilo aconteceu. Nelinho foi a arma secreta capaz de traver a mais influente pedra do Boavista». Moinhos (2), Shéu e Jordão marcaram os golos do Benfica, Manuel Barbosa o do Boavista. E que Boavista! Botelho na baliza; defesa com gente como Barbosa e Carolino, Mário João e Leonel Trindade; meio-campo à conta de Taí, Acácio Casimiro, Alves e Francisco Mário; ataque com Zezinho, Jorginho e Salvador. Camisolas esquisitas envergadas por grandes jogadores da sua época.

As três derrotas do Benfica seriam em casa com o FC Porto (1-3), no Restelo (2-4) e no Estádio do Mar, frente ao Leixões (0-1). As do Boavista com o Benfica, como já vimos, em Alvalade (0-1) e surpreendentemente no Bessa face ao União de Tomar (0-1). União de Tomar que só ganhou um jogo longe do Nabão e foi por um triz que não desceu de divisão. Mas, seja como for, a época acabou em festa. No dia 13 de junho, no Jamor, Acácio Casimiro e Manuel Barbosa marcaram dois golos contra o único golo de Rui Lopes, do Vitória de Guimarães. Fora-se o campeonato, ganhava-se a Taça de Portugal. Se não havia lugar para o ouro que houvesse lugar para a prata.