João Lourenço quer ligação entre Atlântico e Índico

Corredor do Lobito pode tornar-se de grande importância estratégica. João Lourenço, que acaba de assumir a presidência da SADC, falou em ‘esforço para recuperar e construir infraetruturas’.

A República de Angola assumiu, no passado dia 17 de agosto, a presidência rotativa da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) para o período 2023/24.

É a terceira vez que o país assume a presidência da organização, composta por 16 Estados-membros: Angola, Botsuana, Comores, República Democrática do Congo, Essuatíni, Lesoto, Madagáscar, Malawi, Maurícias, Moçambique, Namíbia, Seicheles, África do Sul, Tanzânia, Zâmbia e Zimbabué.

Na 43.ª Cimeira Ordinária de Chefes de Estado e de Governo da SADC o Presidente da República angolano, João Lourenço, que sucedeu ao Presidente da República Democrática do Congo, Félix Tshisekedi, lembrou o desígnio da organização, que assenta numa lógica de cooperação e integração no espaço sub-regional: «Fazer da SADC uma região pacífica, inclusiva, competitiva e industrializada». 
Mas, apesar das oportunidades, tudo indica que o próximo ano, para a região, será marcado por desafios substanciais. 

Agência e autonomia financeira 

As prioridades, segundo o Presidente angolano, serão a «valorização do capital humano, questões financeiras, paz e estabilidade na região».

Mas, seguindo a linha do Presidente Paul Kagame, que assumiu a presidência da União Africana em 2018 e dirigiu um ambicioso processo de reforma, João Lourenço apontou o financiamento como um dos principais desafios da organização, estabelecendo o objetivo de reduzir «o nível de dependência da sempre útil e apreciável solidariedade dos parceiros de cooperação internacional».

É um problema comum a várias organizações internacionais e regionais. Não existe agência sem independência financeira, mas, face às limitações e situações de incumprimento por parte dos Estados-membros, aprofunda-se a dependência de doadores que condicionam a agenda e autonomia da organização. Por isso, o Presidente angolano sublinhou a necessidade de assegurar que todos os Estados-membros aprovam e ratificam a operacionalização do Fundo de Desenvolvimento Regional da SADC, tido como ‘ferramenta-chave’ para financiar o programa de industrialização regional. 

Oportunidades e prioridades 

Como a história sugere, um dos grandes motores da cooperação (e integração) regional é o comércio. No plano continental, a entrada em vigor da Zona de Livre Comércio Continental Africana em janeiro de 2021 gerou grandes expectativas relativamente ao incremento do comércio intracontinental que, atualmente, representa apenas 14 por cento do comércio global. 

Segundo dados da União Africana, o comércio intrarregional na África Austral aumentou 4 por cento desde 2021, refletindo o impacto positivo de medidas de simplificação, como a digitalização dos certificados de origem. Mas uma condição necessária para o aumento do comércio, e para a integração dos países da sub-região em cadeias de valor global, é a transformação das economias e a criação de infraestruturas de conectividade.

No caso da SADC, o objetivo de potenciar o acordo de livre comércio entre os Estados da sub-região é indissociável da implementação da Estratégia e Roteiro para a Industrialização (2015-63), que tem como objetivo a diversificação e reestruturação do setor industrial, a partir da identificação de seis áreas prioritárias: agro-processamento; beneficiação de minerais; farmacêutica; bens de consumo; bens de capital e serviços. 

O Presidente João Lourenço sublinhou, neste aspeto, a necessidade de investir em capital humano, na produção de energia e interconexão, na expansão da rede rodoviária e ferroviária, e no aumento da produção de etanol e bens alimentares. 

Corredor do Lobito 

Partindo do Porto do Lobito, o Corredor do Lobito liga Angola de oeste a este através de Benguela, do Huambo, do Bié e do Moxico. Do ponto de vista sub-regional, o Corredor pode tornar-se de grande importância estratégica. A sua expansão até ao copperbelt na Zâmbia e à região do Katanga na RDC e a harmonização de regulação permitirá reduzir de semanas para dias o transporte destes minerais até ao Oceano Atlântico. Em julho, João Lourenço, Hakainde Hichilema e Félix Tshisekedi participaram na cerimónia inaugural da concessão à Lobito Atlantic International deste corredor ferroviário, por um período de 30 anos. 
O objetivo, no longo prazo, é o de ligar o Atlântico ao Índico, com a extensão até aos portos de Dar es Salaam e da Beira.

Angola, afirmou João Lourenço, «está a fazer um grande esforço para recuperar e construir infraestruturas, como o Corredor do Lobito, que vão facilitar a interconexão e o movimento de pessoas e bens entre os Oceanos Atlântico e Índico». O objetivo é, também, colocar produtos nos mercados internacionais em condições mais vantajosas. 
Mas assegurar a conectividade pode não ser suficiente para dinamizar as economias e o comércio de uma região que enfrenta enormes desafios económicos, conflitos armados e crises políticas.
 
Uma região, várias crises 
Uma organização sub-regional ou regional também é um somatório dos desafios dos Estados que a integram. E, na África Austral, os desafios económicos, políticos e de segurança podem comprometer os objetivos de cooperação, transformação e comércio. 

Os países da região enfrentam uma crise de endividamento, tendo a Zâmbia sido o primeiro país a entrar em incumprimento no período pós-pandemia. Em outros países, como o Zimbabué ou a África do Sul, sentem-se as consequências da desindustrialização. As economias de Angola e da RDC continuam dependentes de matérias-primas, sendo particularmente vulneráveis a choques negativos, como se confirmou durante o crash das commodities ou a pandemia de covid-19. Sessenta por cento das divisas externas arrecadadas pelos governos vêm do setor mineiro, que representa cerca de 10 por cento do PIB da região, e apenas 5 por cento dos postos de trabalho.

E depois há os desafios da instabilidade política. Na África do Sul, a constituição progressista e o contrato social que sustentou as esperanças da transição e reconciliação parecem estar a falhar, num contexto em que persiste a corrupção, a pobreza, a violência e tensões raciais. No Zimbabué, torna-se claro que o fim da liderança personalizada e autoritária de Robert Mugabe não abriu caminho à democracia, mas à perpetuação da ZANU-PF no poder. 

Durante a presidência angolana, realizar-se-ão eleições no Reino do Essuatíni, em Madagáscar e na RDC. A escalada da violência na região leste, o aumento dos protestos e tensões sociais e as questões levantadas pela oposição relativamente ao processo eleitoral sugerem que as eleições na RDC, agendadas para dezembro de 2023, serão um momento de tensão política que poderá exigir um posicionamento da organização.
Sobre os vários atos eleitorais, João Lourenço afirmou que a organização está comprometida em garantir eleições «pacíficas, livres e justas, em harmonia com os princípios e orientações que regulam a realização de eleições na região». 

E o primeiro teste parece já estar aí. No Zimbabué, as eleições gerais da passada quarta-feira voltaram a ser marcadas por irregularidades, e o líder da oposição, Nelson Chamisa, contestou os resultados. Durante a presidência de Robert Mugabe, a SADC contribuiu para assegurar a sua permanência no poder refletindo os laços de solidariedade, dentro da organização, entre os governos formados por movimentos de libertação transformados em partidos dominantes. E num cenário de contestação ou violência pós-eleitoral, a SADC será chamada, como no passado, a pronunciar-se. 
Mas na região também se sentem os efeitos da fragilidade do Estado. Na zona leste da RDC, o Estado não tem o monopólio do uso da força legítima. A combinação de tensões internacionais e clivagens étnicas e religiosas com o crime organizado e terrorismo militante deu origem a um cenário de violência permanente, com grandes custos humanos. Também no norte de Moçambique, grupos terroristas tentam tirar partido do vazio de poder deixado pelo Estado.

Desafios de estabilização
Em Angola, como em tantas outras latitudes, o Estado e a nação construíram-se também a partir dos escombros da guerra civil, que permitiu ultrapassar clivagens étnicas e regionais. Beneficiando dessa estabilização, e do estatuto de potência regional, o país tem tido um papel importante nas várias tentativas de mediação e resolução de conflitos na região. No caso do conflito na zona leste da DRC (que é também um conflito por procuração entre Kigali e Kinshasa) e depois dos sucessivos falhanços das iniciativas de mediação extracontinentais, Luanda, tal como Nairobi, tentam oferecer soluções africanas para problemas africanos. 

Tudo indica que o próximo ano será marcado por vários desafios à segurança no plano regional. O envio de tropas, sob a égide da organização, para a DRC, bem como a decisão de manter a missão militar no norte de Moçambique por mais 12 meses trarão mais custos e exigirão esforços diplomáticos significativos. 

Na DRC, não é clara a relação que as tropas da SADC manterão com a Força Regional da África Oriental e a MONUSCO. Presente desde 1999, a MONUSCO é uma das operações de manutenção de paz mais caras da história. Mas a ONU voltou a falhar na região e, após várias controvérsias e o aumento do descontentamento popular, anunciou a retirada da MONUSCO até ao fim deste ano. 

Em Moçambique, a Missão da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral em Moçambique (SAMIM) está presente em Cabo Delgado desde julho de 2021, tendo sido a primeira vez que tropas sob comando da SADC se envolveram em operações de combate. Também aqui não é clara a relação entre as forças da SADC e as forças ruandesas, tidas como responsáveis pelo sucesso da contraofensiva e relativa estabilização na região.
Considerando o contexto regional atual, o sucesso da presidência angolana será julgado com base nos avanços e resultados da cooperação regional em três frentes: comércio, mediação política e estabilização.