D e tempos a tempos, a minha mãe pede-me alguma sugestão de leitura ou algum livro emprestado. (Ao contrário de outras pessoas, devolve-os sempre.)
– Tens aí o Proust? – perguntou-me um dia destes.
Fui buscar o primeiro volume da bela edição de capa dura da Relógio d’Água, com tradução de Pedro Tamen, Do lado de Swann.
– Este não te empresto… – respondi. – Ofereço-to.
Só não lhe contei onde o tinha encontrado, uns dois meses antes.
Deviam ser dez e tal da noite quando, não sei bem porquê, decidi pegar no saco do lixo, atar-lhe um nó e levá-lo ao caixote mais próximo. Uma pequena boa ação para terminar bem o dia.
Subi a rua, quase não havia vento, e parei em frente do contentor. Sustive a respiração ao levantar a tampa – nunca se sabe que mensagem nos vai enviar lá de dentro.
De imediato reparei no grande saco do Pingo Doce pousado no passeio. Fiquei curioso. Olhei em volta – o caminho estava livre. A primeira coisa que vi a espreitar lá de dentro foi o rosto de Sophia de Mello Breyner. Cem Poemas de Sophia, uma edição barata, mas nada de se deitar fora. Voltei a olhar à volta, perscrutei as janelas das casas para me certificar de que ninguém me observava. O saco estava ali abandonado – se eu quisesse ser um pouco mais narcisista, até poderia dizer que estava ali à minha espera – mas fosse como fosse não gostaria de ser visto na vizinhança como alguém que tem por hábito meter o nariz no lixo dos outros.
P eguei nele como um ladrão, desci a rua rapidamente e só respirei de alívio ao fechar a porta de casa atrás de mim. Pousei o grande saco na cozinha, como quem acaba de chegar com as compras do supermercado, e fui fazer qualquer coisa antes – não sei se para adiar o prazer da descoberta ou se para adiar a desilusão quase inevitável… o facto é que o saco estava junto ao contentor do lixo.
Antes de me ir deitar lá fui por fim avaliar o saque.
E não é que tive belas surpresas? Encontrei uma seleção eclética de poesia, literatura e… bom, também algum refugo.
Por baixo dos Cem Poemas de Sophia lá estava o tal volume de Proust; as biografias de Eça e Cesário Verde por Maria Filomena Mónica; a fotobiografia de Lobo Antunes, por Tereza Coelho; três livros de Gonçalo M. Tavares, um dos quais eu desejava há algum tempo, Uma Viagem à Índia; a Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto, em dois grossos volumes; O Cavaleiro de Bronze e outros poemas, de Púchkin (tradução do russo de Nina e Filipe Guerra, esgotado); Conversações, de Gilles Deleuze; e vários outros. Tudo em excelente estado.
E agora pergunto: o que me terá levado naquela noite a pegar no saco do lixo e a sair à rua? Quanto mais penso nisso, mais acho que houve uma combinação de atração e repulsa.
Por um lado, sinto que fui atraído para ali como se tivesse havido um chamamento. Por outro lado, talvez os livros não estivessem apenas à procura de um dono: no meio daquela misturada, não me admirava que os livros bons se quisessem ver livres dos seus vizinhos incómodos e me tivessem chamado para separar o trigo do joio. Ou se calhar estou a fantasiar e não passou de uma coincidência.