A XV cimeira anual dos BRICS, que decorreu entre os dias 22 e 24 de agosto em Joanesburgo, confirmou o advento de um mundo multipolar onde, além das superpotências, importam também as médias potências e os blocos regionais e de interesses. O anunciado alargamento do bloco vai impactar a geoeconomia mundial.
As origens deste bloco geopolítico datam de 2001 quando, num relatório da divisão de investigação sobre investimento global da Goldman Sachs, Jim O’Neill lançou o acrónimo BRICS, afirmando que as então emergentes economias do Brasil, da Rússia, da Índia e da China seriam os grandes motores do crescimento global.
Em 2009, ano em que terminava a ‘grande recessão’, os líderes dos quatro países reuniram-se na cidade de russa Ecaterimburgo e fundaram uma plataforma de cooperação que dava corpo geoeconómico e geopolítico ao acrónimo formulado por Jim O’Neill. Na década anterior, confirmando a previsão do relatório, o ritmo de crescimento destas economias emergentes ultrapassava, pela primeira vez, o das economias dos países mais desenvolvidos. A China, que entrara na Organização do Comércio em 2001 depois de um cauteloso processo de abertura económica, atingia taxas de crescimento próximas dos 10 por cento que permitiam, segundo dados do Banco Mundial, retirar cerca de 30 milhões de pessoas da pobreza a cada ano.
Em 2010, a África do Sul juntava-se ao grupo. E se para a África do Sul era uma oportunidade para estreitar relação com potências emergentes e cimentar a sua posição no continente africano, para os BRICS significava uma importante expansão geográfica e reforço na representação do ‘novo mundo’.
A década que se seguiu, marcada pelo crash das commodities, desafiou as previsões de Jim O’Neill. Mas, apesar dos riscos económicos, quase duas décadas depois, a China rivaliza com os Estados Unidos em vários domínios. A Índia, que segundo estimativas do FMI deverá ser, de entre as grandes economias, a que mais cresce em 2023, está bem posicionada para se tornar uma superpotência. E a Rússia, o Brasil e a África do Sul, tendo ficado aquém (ou muito aquém, no caso da África do Sul) das expectativas económicas, consolidaram a sua relevância geopolítica no plano internacional, ou regional.
Refletindo os contextos de estagnação económica nas economias mais desenvolvidas, em março de 2023 o PIB dos países-membros do grupo em paridade do poder de compra correspondia a 32,1 por cento do total global e ultrapassava, pela primeira vez, a soma dos países do G7 (29,9 por cento).
Uma ‘parede de tijolos’
Um sinal do apelo dos BRICS é o facto de quarenta países terem mostrado interesse em aderir ao grupo e, destes, mais de vinte terem feito um pedido de adesão formal. E o resultado mais relevante da cimeira foi o convite, feito a seis desses peticionários, para uma adesão formal, e anunciado pelo Presidente sul-africano: «Decidimos convidar a República da Argentina, a República Árabe do Egito, a República Federal da Etiópia, a República Islâmica do Irão, o Reino da Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos, para serem membros de pleno direito, efetivo a partir de 01 de janeiro de 2024».
A partir de 2024, confirmando-se a adesão destes países, os membros do grupo passarão a representar 37 por cento do PIB mundial e 47 por cento da população global.
Sendo os BRICS uma plataforma onde as decisões são tomadas por consenso, a escolha destes seis países, deixando de fora pesos-pesados como a Turquia ou a Argélia, resultou de um processo de negociação entre os cinco membros. A escolhas confirmam a relevância geopolítica e geoeconómica da região do Médio Oriente e do Norte de África, e evidenciam o sucesso da diplomacia chinesa. Em março deste ano foi anunciado um acordo de normalização de relações diplomáticas, mediado por Pequim, entre o Irão e a Arábia Saudita – dois países separados por clivagens religiosas e rivalidades geopolíticas.
Este BRICS a onze poderá, em caso de ação concertada, impactar a geoeconomia mundial. O grupo integra agora vários países-chave no mapa da produção e das cadeias de abastecimento de minerais e recursos energéticos.
Segundo o Centre for Strategic and International Studies (CSIS), os BRICS, que integram três dos principais países consumidores de petróleo e gás natural (a China, a Rússia e a Índia), passarão a integrar três dos cinco principais países produtores de lítio (a China, o Brasil e a Argentina) e três dos cinco países com maiores reservas de minerais de terras raras (correspondendo a 72 por cento da produção global). Os membros do grupo passarão a representar 75 por cento do manganês; 50 por cento do grafite; 28 por cento do níquel e 10 por cento do cobre (excluindo o Irão).
E o grupo beneficia de vantagens competitivas face a outras plataformas como o G7. Desde logo, a possibilidade de investir sem condicionantes políticas, de rejeitar ou evadir sanções, e de renunciar às restrições impostas pela agenda climática. Segundo o CSIS, o Irão detém as maiores reservas de zinco do mundo e o segundo maior depósito de cobre na mina de Sarchesmeh. E os onze países membros dos BRICS, depois da adesão do Irão e da Arábia Saudita, passarão a representar 42 por cento da produção mundial de petróleo.
‘Conjunto muito heterogéneo de países’
Em declarações feitas em Washington no dia em que arrancava a Cimeira em Joanesburgo, Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança Nacional da Casa Branca, afastou a hipótese dos BRICS se tornarem rivais dos Estados Unidos: «Isto é um conjunto muito heterogéneo de países…com pontos de vistas diferentes sobre questões críticas».
A heterogeneidade dos BRICS é evidente, desde logo, pelos diferentes modelos políticos, culturais e económicos dos países que integram o grupo, inseridos em blocos regionais distintos e enfrentando desafios também diferentes. Além disso, entre os membros do grupo subsistem tensões importantes. Desde logo entre a China e a Índia, que mantêm uma disputa ao longo da fronteira, na região dos Himalaias.
Por outro lado, a inserção nos BRICS não é vista da mesma forma pelos vários membros. Para a China, trata-se de mais uma plataforma, à semelhança de outros fóruns ou organizações como as Nações Unidas, a partir da qual pode expandir a sua influência no sistema internacional e adaptá-lo aos seus interesses nacionais. Para a Rússia, os BRICS oferecem uma oportunidade de contrariar o isolamento diplomático imposto pelo ocidente e mitigar os efeitos das sanções. Alvo de um mandado de captura do Tribunal Penal Internacional, e por isso impedido de estar fisicamente presente na cimeira, o Presidente russo, no seu discurso, descreveu a lógica do grupo: «Nós cooperamos com base nos princípios da igualdade, apoio mútuo e respeito pelos interesses uns dos outros. Esta é a essência do rumo estratégico, orientado para o futuro, da nossa associação, um rumo que corresponde às aspirações da maioria da comunidade mundial, a chamada maioria global».
Mas para a Índia e para o Brasil os BRICS não representam tanto uma alternativa às estruturas da ordem internacional liberal, quanto uma plataforma complementar. Em junho, a Índia e os Estados Unidos anunciaram uma série de acordos nas áreas da defesa e cooperação tecnológica e, durante a cimeira, o Presidente brasileiro afastou a ideia de um bloco geopolítico rival: «Nós não queremos ser um contraponto ao G7, ao G20 ou aos Estados Unidos. Nós só queremos organizar-nos».
Mas talvez o cimento mais importante deste grupo heterogéneo seja a realpolitik, i.e., o facto dos seus membros orientarem a sua política externa de acordo com questões práticas e a defesa dos seus interesses nacionais.
Paradoxos (i)liberais
Na perceção ocidental, a ameaça dos BRICS materializa-se em duas questões. A primeira, o apoio tácito à Rússia ou recusa de uma condenação explícita e a rejeição de mecanismos de sanções. A segunda, a possibilidade de a cooperação entre estes países precipitar o fim da hegemonia ocidental no sistema financeiro global e uma eventual desdolarização da economia mundial. «O objetivo e irreversível processo de desdolarização dos nossos laços económicos está a ganhar momentum», afirmou o Presidente russo durante a cimeira.
Mas se o desalinhamento do ‘resto’ face à posição ocidental em relação à Rússia é uma realidade, os receios relativamente à desdolarização da economia parecem ser, por enquanto, exagerados. O dólar deverá continuar a dominar o sistema financeiro mundial nas próximas décadas e, ao longo de quase uma década, o Novo Banco de Desenvolvimento concedeu cerca de 33 mil milhões de dólares em empréstimos, menos de metade do total daquilo que o Banco Mundial emprestou o ano passado.
Mas os BRICS expõem os paradoxos da ordem liberal internacional. Tratando-se de países que defendem o modelo de Estados soberanos e que desafiam (ou violam) o direito internacional e os direitos humanos (o caso da invasão russa da Ucrânia ou a política chinesa na região de Xinjiang), têm conseguido ocupar, ou criar, plataformas internacionais de cooperação como as Nações Unidas ou os BRICS, onde utilizam, com sucesso, a linguagem da ordem liberal internacional tardia para legitimar a sua atuação. Para isso, e como observado na Declaração de Joanesburgo II, invocam conceitos que têm vindo a ser progressivamente esvaziados de significado como uma «ordem internacional justa», «crescimento inclusivo» ou «direitos e liberdades fundamentais para todos».
No seu discurso, o Presidente Xi Jinping descreveu os BRICS do seguinte modo: «Nós não negociamos princípios, não sucumbimos à pressão externa, não atuamos como vassalos de outros. Nós, países BRICS, partilhamos um amplo consenso e objetivos comuns. Não importa como muda a situação internacional, o nosso compromisso com a cooperação e a nossa aspiração comum não mudarão». O ministro dos Negócios Estrangeiros da China afirmou que os parceiros BRICS pretendem «reformar os sistemas de governança global para aumentar a representação de países em desenvolvimento e mercados emergentes».
O crescimento e apelo dos BRICS pode ser visto mais como sintoma do que como causa das profundas alterações a que temos assistido no plano internacional, incluindo o declínio da ordem internacional liberal liderada pelos Estados Unidos.
Depois de um momento de triunfo do liberalismo internacional no período pós-Guerra Fria, e interrompido pelo 11 de setembro que lembrava que havia ainda quem estivesse disposto a morrer, e a matar, em nome de ordens alternativas, hoje é evidente que a história regressou. O que a ascensão dos BRICS mostra é que, num sistema internacional que permanece anárquico, o poder – duro e suave, económico e militar – continua a ser determinante.
E a história da ascensão e declínio das grandes potências deixa-nos algumas lições. Uma delas é a de que esse estatuto é indissociável do poder militar e económico, da soberania energética, da demografia e de um propósito. O Ocidente parece ter-se esquecido disto.