A cartilha dos generais

Veio-me isto à cabeça a propósito de Agostinho Costa e Carlos Branco. Parecem ambos ler pela mesma ‘cartilha’. Assim, é legítimo duvidar que pensem mesmo pela sua cabeça. E, se forem inspirados por qualquer cartilha, as suas opiniões sobre a guerra na Ucrânia deixam de ser respeitáveis.

Por José António Saraiva

Marcelo foi à Ucrânia e esteve bastante bem. No encontro com Zelensky foi muito afetuoso e afirmativo.
Meteu-se numa trincheira, onde teve de caminhar meio acocorado, com um segurança de mão permanentemente sobre a sua cabeça para não bater no teto (não teria sido mais prático terem-lhe emprestado um capacete?).
Discursou em ucraniano. 
E numa das declarações avulsas que fez não se absteve de dar mais uma alfinetada no Governo – ao dizer, perante as dúvidas de um jornalista sobre diferenças de opinião entre ele e o primeiro-ministro, que nenhuma palavra se sobrepõe à do Presidente da República.
A palavra deste – disse Marcelo – compromete o Estado e não pode ser contraditada.

Enquanto Marcelo Rebelo de Sousa visitava Kiev, a umas centenas de quilómetros dali, em pleno território russo, era abatido um avião onde seguia o líder do grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin.
Quando a notícia foi divulgada, os olhos do mundo voltaram-se para Putin, com um misto de estupefação e naturalidade: desde a sua rebelião, há dois meses, que Prigozhin tinha a cabeça a prémio, por muitos sinais de clemência que o líder russo tivesse dado.
Também Estaline matava com as próprias mãos generais que atraía com palavras doces aos seus aposentos privados.
Para comentar a morte, lá apareceram nos ecrãs das televisões os militares da praxe – com destaque para Agostinho Costa e Carlos Branco.
E disseram de sua justiça. 

Tenho muito respeito pelas opiniões desalinhadas.
Porque mostram, em geral, que os opinadores pensam pela sua cabeça e não são levados pela ‘enxurrada’.
Nesse aspeto, os citados gerais distinguem-se por terem um discurso diferente sobre a guerra na Ucrânia. 
Mas pensarão mesmo pela sua cabeça?
Logo a seguir ao anúncio da queda do avião que transportaria Prigozhin, abri o televisor e vi o general Agostinho Costa a falar de uma eventual relação do ‘acidente’ com acontecimentos no continente africano. 
Não o ouvi a falar de Putin. 
E umas horas depois surgia o general Carlos Branco a falar de uma eventual… ‘conspiração africana’ na possível morte de Prigozhin.
A mesma argumentação, sem tirar nem pôr.
E lembrei-me de outras coincidências.
Lembrei-me de ouvir Carlos Branco afirmar que era preciso rigor nos conceitos, e que o grupo Wagner não podia ser considerado uma força de mercenários, pois é formado por russos que combatem pela Rússia – sendo, por isso, soldados quase iguais aos outros.
Ora, ainda agora, a respeito do acidente de Prigozhin, Agostinho Costa dizia que tinha de haver precisão nos conceitos – e que o grupo Wagner não podia ser considerado em rigor uma força de mercenários.
Que pensar disto?

Há uns anos houve a suspeita de que uns comentadores desportivos afetos ao Benfica eram preparados por uma ‘cartilha’ previamente elaborada por um ex-dirigente, Carlos Janela.
Esses comentadores apresentavam os mesmos argumentos, da mesma forma.
Veio-me isto à cabeça a propósito de Agostinho Costa e Carlos Branco.
Parecem ambos ler pela mesma ‘cartilha’.
Assim, é legítimo duvidar que pensem mesmo pela sua cabeça.

E, se forem inspirados por qualquer cartilha, as suas opiniões sobre a guerra na Ucrânia deixam de ser respeitáveis.

Já um coronel, Mendes Dias, parece alinhar pelas posições da Rússia, mas fá-lo de um modo mais dissimulado. 
Um destes dias, contestava os ataques de drones a território russo, não vendo neles qualquer interesse e classificando-os como «desperdício de material».
Mas será mesmo?
Antes desses ataques se iniciarem, defendi a ideia de que a Ucrânia tinha de começar a atacar alvos na Rússia.
Era incompreensível que estivesse constantemente a ser massacrada por drones e mísseis russos, e não contra-atacasse.
É claro que isso não a faria ganhar a guerra.
Mas a simples circunstância de mostrar que podia atingir alvos na Rússia, que podia inclusivamente chegar a Moscovo, criaria inquietação e ansiedade no inimigo.
Ora, foi isto mesmo que veio a acontecer.
Hoje, a Rússia já não despeja bombas e mísseis sobre a Ucrânia com a certeza de que nada lhe acontecerá. 
Agora sabe que também pode ser flagelada. 
E essa consciência, o receio de um ataque de maiores dimensões (o que seria um míssil atingir o Kremlin?), constituirá um elemento de pressão importante no sentido de obrigar Putin a negociar.
Isto não é estratégia militar – é do senso comum.

Uma última nota.

Ao mandar matar Prigozhin, como se calcula, Putin mostrou um enorme desprezo pela opinião internacional.
Ele teve oportunidade de prender Prigozhin, de o levar a julgamento pelo crime de ‘traição à pátria’, mas não quis fazê-lo. 
Tal como a Mafia, Putin quis mostrar que o julgamento é ele quem o faz – não são os tribunais.
Que a decisão ali é do ‘padrinho’ – e não do juiz.
Assim já morreram, em condições altamente suspeitas, dezenas de oligarcas, jornalistas, empresários, presidentes de empresas públicas, opositores políticos ao regime: uns espancados até à morte, outros em quedas de andares altos, outros atropelados ao atravessarem a rua, outros de doença súbita.
Putin é um ‘capo’ implacável que dirige com mão de ferro a mafia do Kremlin.
Só entende uma linguagem: a da força.
Combatê-lo, massacrá-lo no seu território, assustá-lo, é a única forma de o levar um dia à mesa das negociações.