Mudar Portugal – Pensamento e liberdade

As sociedades que renegam as suas heranças, perdem as suas referências, as suas bússolas, e erram cegas. O que se chama de suicídio identitário

por Abel Matos Santos
Psicólogo Clínico e ex-dirigente partidário

Vivemos numa civilização que parece odiar-se a si mesma e considera como nefasta a sua história de milhares de anos que conquistou a democracia, os direitos iguais perante a lei, o Estado de Direito, a ciência, a racionalidade do legado grego e romano e património filosófico, literário, artístico, estético, moral e espiritual do ocidente dos últimos milhares de anos. Ora, estas são as nossas raízes, a Cultura Judaico-Cristã, na base da qual se desenvolveu a civilização ocidental, a partir da Europa, o Velho Continente.

Não ter história nem identidade parece ser a nova certidão do nascimento sob o signo do progressismo, de um projeto de desenraizamento e desfiliação cultural, que corta a nossa relação com esse património e tradições, com essa herança geracional. De acordo com esta visão sinistra, a funcionalidade substitui a filiação e os valores de vida – Paternidade, Família, Trabalho, Casamento são reduzidos à sua dimensão de funcional. A dimensão social é substituída por uma engenharia societal. Gostar do seu país, ser patriota, pode bem ser uma qualquer pulsão sinistra que estorve os direitos e liberdades dos cidadãos, fora de tempo face a quaisquer apetites ou desejos ocasionais e funcionais.

Um certo progressismo é na verdade uma deformação grotesca do progresso. Como é o caso da abolição de todas as diferenças fundadas sobre o sexo biológico e outros enraizamentos fundamentais, sejam eles simbólicos e/ou factuais, sobre os quais assenta a identidade, que rotula quem não aceita esse esvaziamento de diferenças como incapaz e não preparado para acolher os outros.

A identidade diz-se dessas dimensões do enraizamento. Só quem lhe pertence está preparado para acolher o outro e torná-lo participante numa comunidade de significado profundo e não num mundo plano, indiferente e superficial.

Um certo discurso pós-moderno da híper correção política perverteu deliberadamente os conceitos de enraizamento e associou-os a um universo tenebroso, de imobilismo e estagnação social.

As sociedades que renegam as suas heranças, perdem as suas referências, as suas bússolas, e erram cegas. O que se chama de suicídio identitário.

Assumir uma história, uma tradição cultural, religiosa e civilizacional, nada tem de malévolo ou diabólico. Discutir valores fundamentais sobre a vida e a dignidade da pessoa não é uma doença nem uma patologia.

A União Europeia, que surgiu com o intuito de criar condições para uma paz duradoura, teve na sua génese a CECA e o Tratado de Roma, cujos principais mentores partilhavam os valores sociais cristãos que nos deixaram os princípios fundamentais de uma conceção política humanista e civilizada: a paz entre as nações, a não violência como método de convivência humana, a concórdia no seio das famílias, a separação entre a Igreja e o Estado, o dever de pagar impostos, a obrigação de obediência às leis e às decisões legítimas dos órgãos governativos, a função governamental como um serviço prestado a todos e não como um privilégio pessoal, a desfrutar em proveito próprio, e a raiz dos Direitos Humanos, assentes no direito à vida, à liberdade religiosa, à proteção da sociedade aos mais pobres e no dever de amar e respeitar o próximo como a si mesmo.

Hoje assistimos na Europa a uma crise de valores, com não raros acervos de extremismos, provocados pela desconstrução dos seus fundamentos identitários, da sua matriz civilizacional.

Um ultraliberalismo económico com o seu capitalismo irresponsável e um progressismo irracional no campo dos valores e dos comportamentos estão a tornar obsoleta a cultura ocidental, o seu legado, os seus pilares e valores. Este projeto tem destruído a democracia, o bem-estar económico, político, social, cultural e espiritual das pessoas.

A fragilidade da civilização foi uma das grandes lições que o século XX nos legou, a melhoria da vida e do bem estar das sociedades não é uma conquista definitiva, é algo que se encontra num equilíbrio instável, sempre assente no virtuosismo do ecossistema social e seus intervenientes. O decréscimo na prática das grandes virtudes humanas da prudência, justiça, fortaleza e temperança provocam acréscimos de instabilidade pois sem elas, decresce a confiança interpessoal e institucional. A diferença entre civilização e barbárie, sensatez e disparate são fronteiras frágeis. O que é valioso está sob grande risco.

Os valores democráticos, o primado da lei, o princípio da racionalidade, a liberdade de expressão e pensamento, a relevância dos factos, do conhecimento, o reconhecimento do nosso enraizamento, dos fundamentos da nossa cultura, da filosofia Grega ao Cristianismo, à ciência moderna são conquistas da nossa civilização. Os bens que dai derivaram e que nos acostumámos a imaginar como garantidos, estão sob permanente ameaça. As coisas admiráveis levam tempo a construir mas facilmente se destroem.

Bens coletivos como a paz, liberdade, leis, civilidade, espírito público, a segurança da propriedade e da vida familiar, no fundo, o bem comum, que tantas décadas ou séculos levaram a construir, rapidamente se podem perder. Importa recuperar para o debate político estas bases, em conjunto com a procura do que une, e não do que divide e separa.