por Rui Patrício
Tem sido noticiado e comentado que o Senhor primeiro-ministro terá aludido à possibilidade de o regime legal das buscas ser revisto quanto aos partidos políticos e equiparado ao regime que vigora relativamente aos advogados. Já se escreveu e disse muito sobre este tema, tendo como centro, por um lado, a questão de saber se há identidade de razões entre partidos políticos e advogados para equiparar o regime e, por outro lado, quais as implicações de uma revisão das regras. Duas questões muito pertinentes, e nenhuma delas fácil, sobretudo a primeira. Mas não é sobre as mesmas que me quero debruçar aqui. Vou por outro caminho, pensando sobre quais podem ser as preocupações que levam a que se avente a possibilidade dessa mudança de regime e, também, sobre se tal mudança pode acautelar essas preocupações. E não tenho boas notícias para dar ao primeiro-ministro.
Aprimeira preocupação será, suponho, com a possibilidade de se fazerem buscas por dá cá aquela palha, pelo que, metendo um Juiz de instrução no assunto, haveria mais garantias. Ora, isto traz-me à lembrança uma questão muito discutida na primeira década do século XXI e que levou a uma alteração legislativa em 2007: a constituição de arguido. A respeito de um processo concreto, muito conhecido, questionou-se se não se constituíam pessoas arguidas por dá cá aquela palha, tendo essa constituição – como agora também se descobriu, de súbito, sobre as buscas – muitas e por vezes más consequências. Pois bem, em 2007 mudou-se a Lei e colocou-se lá que tinha de haver suspeitas fundadas para tal constituição, assim se reforçando a exigência e a garantia. Ora, 15 anos volvidos, pergunta-se: mudou muito o estado das coisas, passou-se a ser mais exigente quanto à constituição de arguido, acabaram constituições por dá cá aquela palha, passou a medir-se melhor a relação entre necessidade/fundamento e consequências? A resposta que tenho para dar é: não, senhor. Tudo como dantes, e até pior (e com muita culpa de alguns responsáveis políticos, que usaram, desvirtuaram e demonizaram a gosto constituições concretas de arguidos), o que mostra duas coisas: uma, que a mudança da Lei, só por si, vale pouco e que pode ser como tentar parar o vento com as mãos, e, outra, que há coisas que exigem uma atenção profunda a temas que não conseguem essa atenção e que logo são resolvidos com meia dúzia de clichés sobre independência, autonomia, transparência, separação de poderes e outros argumentos gritados e esgrimidos – e veiculados pelos canais do costume, alguns até gratos por coçadelas de costas que retribuem com outras – de tal forma que nada muda e que tudo fica refém da eterna aversão à prestação de contas e a um verdadeiro escrutínio sobre o funcionamento do sistema e sobre os papéis que cada um tem e/ou aos quais se presta.
A segunda preocupação seria, suponho, com o modo como se fazem algumas buscas e, mais importante, as apreensões nas mesmas, digamos que a torto e a direito, ou seja, vai qualquer coisa, vai tudo; pois as buscas, elas mesmas, só por si, têm pouca importância se desligadas das apreensões. Ora, sobre isso, digo duas coisas ao primeiro-ministro: a primeira é que às vezes é pior a emenda que o soneto, porque no que toca a buscas a advogados, não só se fazem com largueza (e nem sempre muito criteriosas), como também se inventou o truque processual de os constituir arguidos para poder apreender documentos contornando, assim, melhor o regime do segredo profissional; a segunda é que colocar um juiz de instrução nos assuntos só reforça as garantias (independentemente de dar razão a uns ou a outros, não é esse o ponto) se a figura do juiz de instrução for para levar a sério, não sendo, como por vezes sucede, um mero tabelião que se limita a despachar o que lhe põem à frente sem outra análise ou sem outra visão que não seja o cómodo ‘como se promove’.
Finalmente, haverá, suponho (e espero), uma terceira preocupação que se prende com a publicitação das buscas, transformadas em espetáculo ou auto de fé. Ora, isso não tem que ver com o regime das buscas e das apreensões. Tem que ver com o total deboche (ativo e omissivo) existente em Portugal sobre (a violação do) segredo de justiça, tema sobre o qual impera, por um lado, uma geral e escancarada hipocrisia e, por outro, uma aliança santa entre quem viola a montante e quem, também violando, reproduz com megafone a jusante. Sei que, em especial sobre este último tema, prego no deserto, mas continuo a dizer o mesmo, teimosamente. E não é com a mudança do regime das buscas que alguma coisa realmente mudará. Continuará, aqui, a ter inteira razão o famoso dito (em O Leopardo) sobre o que muda e o que, afinal, fica na mesma.