Espanha. Quanto vai custar um Governo?

O poder de decidir, não apenas o próximo governo, mas o futuro da ideia de Espanha, está, por agora, na mão das formações independentistas.

Em Espanha, por estes dias, discute-se mais do que beijos não consentidos e sem sentido e decide-se mais do que o futuro de Luis Rubiales. Beneficiando da ofuscação dos circos mediáticos que vão cavalgando as nossas sensibilidades, à esquerda discute-se uma outra ideia de Espanha enquanto se transporta o secessionismo para o campo da normalidade e legitimidade política. 

E esta foi uma semana de acontecimentos decisivos. Na segunda-feira, a reunião da vice-presidente do Governo espanhol, Yolanda Díaz, com Carles Puigdemont. Um dia depois, Carles Puigdemont anunciava quanto custaria a Pedro Sánchez, e à Espanha, uma reedição do Governo Frankenstein.

Alberto Núñez Feijóo, na qualidade de líder do partido mais votado nas eleições do passado 23 de julho, faz o que lhe compete, mesmo sendo cada vez mais evidente que os seus esforços são inglórios. A presidente do Congresso deu um mês a Feijóo para negociar uma solução de governo, e marcou o debate da investidura para os dias 26 e 27 de setembro. A data também tem em conta que, caso aconteça antes e num cenário de repetição eleitoral, os espanhóis seriam chamados às urnas num dia festivo (24 ou 31 de dezembro, ou 6 de janeiro). 

Mas o poder de decidir, não apenas o próximo governo, mas o futuro da ideia de Espanha, está, por agora, na mão das formações independentistas. 

Manta de retalhos 
Depois de uma ronda de consultas com os partidos políticos, na qual não participaram as formações independentistas, foi Feijóo que o Rei chamou a tentar formar governo. A decisão, a partir do Palácio da Zarzuela, justificou-se por, no entendimento do Rei, não se verificar, até à data, a «existência de uma maioria suficiente que garantisse a investidura» e justificasse a alteração desse «costume».

Mas o falhanço antecipado de Feijóo é também a história de uma manta de retalhos que se vai cosendo. Ainda em julho, num primeiro sinal, o Partido Nacionalista Vasco (PNV) anunciou que não apoiaria uma tentativa de investidura dos populares. E depois, outro sinal foi a eleição da socialista Francina Armengol para a presidência do Congresso dos Deputados, derrotando Cuca Gamarra, a candidata proposta pelo PP. Os votos dos Junts e da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), que mantiveram suspense até à hora da votação, foram decisivos.

Desde a noite das eleições que Sánchez, talvez o mais político de todos os políticos espanhóis, não concede a derrota. O inimigo que era o VOX é agora o PP, com quem não se dialoga. E, para mudar isto, nenhum esforço ou pacto de Feijóo parece suficiente.

De Waterloo a Madrid 

É neste contexto que deve ser lida a reunião de Yolanda Díaz com Carles Puigdemont, fugitivo da justiça espanhola e exilado em Bruxelas desde o referendo ilegal de 2017. O encontro tem, desde logo, significado simbólico, porque Díaz não é apenas a líder do movimento de esquerda progressista Sumar, mas a número dois do Governo espanhol.
Num comunicado conjunto após a reunião, que decorreu no Parlamento Europeu e durou cerca de três horas, os dois líderes declaravam que o encontro tinha decorrido com «normalidade» e «num tom cordial», tinha sido «frutífero» e permitia «estabelecer uma relação normalizada e estável entre ambas as formações políticas».
Desde que é conhecido o resultado das eleições que a coligação Sumar tem defendido a necessidade, depois da «esperança» ter «vencido o medo», de negociar e chegar a entendimento com as forças independentistas de forma a assegurar a reedição de uma coligação que sustente uma legislatura de ‘avanços sociais’ e ‘plurinacional’. Fontes da coligação reafirmaram, sobre o encontro, a «profunda convicção» de que a política «deve fazer-se a partir do diálogo e dos princípios democráticos» e a sua disponibilidade para «explorar todas as soluções democráticas para desbloquear o conflito político». 
É provável que a expressão «desjudicialização» – antevendo uma solução política para as questões da amnistia e de um possível referendo – ganhe relevo nas próximas semanas. 

‘Factos consumados’

Sendo sabido que existe uma concertação entre PSOE e Sumar na abordagem às forças independentistas, o PSOE preferiu, por agora, demarcar-se da iniciativa. Fontes ligadas ao partido socialista referiram que Díaz não atuou em representação do executivo nem do PSOE, tendo-se limitado a informar de «factos consumados», e que o PSOE segue a «sua própria vida no diálogo com os partidos independentistas com vista à investidura».

Mais importante, nos últimos dias têm-se intensificado as vozes dos que, dentro do PSOE, contestam a via da desjudicialização. Fontes próximas de Sánchez e favoráveis à negociação lembram, tentando legitimar a via da desjudicialização, que o Partido Socialista na Catalunha foi a força mais votada na região, elegendo 19 deputados. 
Os populares criticaram fortemente a iniciativa «inaudita», que Feijóo disse constituir uma «anormalidade democrática» e «desautorização da justiça». A estratégia dos populares tem sido a de sublinhar o preço que Sánchez e os espanhóis serão chamados a pagar pelo poder, responsabilizando o Chefe do executivo: «Ou conhecia e autorizou a deslocação [de Yolanda Díaz] ou tem de o parar de forma imediata».

À direita, avisa-se que o PSOE, para manter o poder, acabará por ceder às reivindicações de amnistia e referendo como cedeu na questão dos indultos, cruzando uma linha vermelha traçada pelos próprios. No Twitter, Cuca Gamarra deixou críticas e avisos: «Uma vice-presidente é-o vinte e quatro horas por dia, sete dias na semana, e ainda mais quando vai negociar o seu próprio futuro no Governo. É [Yolanda Díaz] vice-presidente a tempo parcial? Deixem de gozar com os espanhóis». Isabel Díaz Ayuso, vista à direita como uma possível sucessora de Feijóo na liderança do PP, comentou o sucedido com uma breve afirmação no Twitter: «Isto é indigno». 

Há ainda outra questão importante. O PSOE recorreu da decisão do Supremo Tribunal de não proceder à recontagem dos 30.000 votos do exterior considerados nulos na Comunidade de Madrid, que determinaram mais um deputado para o PP e tornaram insuficiente, para a reedição de um Governo Frankenstein, os votos favoráveis (e não apenas a abstenção) do Junts. 

Quatro condições

Sem especificar se o faria num governo liderado pelo PSOE ou pelo PP, na passada terça-feira, Carles Puigdemont apresentou as quatro condições para o voto favorável do Junts a uma investidura. 

A primeira é o reconhecimento da «legitimidade democrática do independentismo». 

A segunda é «o abandono completo e efetivo da via judicial contra o independentismo e os independentistas». Puigdemont manteve que «o 1 de outubro não foi ilegal, como não o foi a declaração de independência ou os protestos». E afirmou que esta condição se trata de «uma exigência ética»: «Deve haver um abandono permanente porque as nossas energias, os nossos recursos, devemos poder dedicá-los à nossa causa, como fazem os restantes projetos, igualmente legítimos». 

Nesta exigência, Puigdemont foi claro: «Isto está ao alcance do parlamento espanhol, através de uma lei de amnistia que inclua o amplo espectro da repressão iniciada desde antes da consulta de 9 de novembro de 2014».

Em terceiro lugar, Puigdemont exigiu a criação de «um mecanismo de mediação e verificação» que trouxesse «as garantias de cumprimento e seguimento dos acordos que os dois grandes partidos políticos espanhóis não estão em condição de dar-nos». Antevendo um processo de longa tramitação e execução, Puigdemont afirmou que este tipo de mecanismo era necessário dada a «total falta de confiança entre as partes»: «A nossa experiência impede-nos de ter alguma confiança na palavra que nos deem; seria uma irresponsabilidade, de futuro, empreender uma negociação que não tivesse esse mecanismo». Neste âmbito, o eurodeputado sublinhou também a importância de o catalão ser reconhecido como língua oficial da EU, primeiro passo para lançar uma «política linguística de nova geração».

Consciente de que o seu poder de alavancagem decorre exclusivamente do facto dos votos independentistas serem decisivos na determinação de um novo governo (mesmo quando, e ironicamente, o independentismo perdeu força nas eleições de julho, registando o resultado menos expressivo desde o início da década de 80), Puigdemont quer fazer história a partir das circunstâncias: «Se houvesse acordo seria um compromisso histórico […] hoje não há condições para esse acordo. Se há vontade real, as condições devem criar-se porque à partida atuariam forçados pela necessidade e não pela convicção».

A última condição apresentada por Puigdemont também indicia a mudança de paradigma, e até de regime: «Que se fixe como únicos limites os acordos e tratados internacionais que se referem a direitos humanos (individuais e coletivos) e as liberdades fundamentais».

Linhas vermelhas 

O futuro político de Espanha, e a própria identidade do Estado espanhol, jogar-se-ão agora na intersecção entre as exigências do independentismo e as ambições políticas de Pedro Sánchez e Yolanda Díaz. A questão importante é até onde PSOE e Sumar terão de ir para garantir o apoio de Carles Puigdemont e Oriol Junqueras. 

Segundo o deputado europeu, que nessa qualidade conseguiu a imunidade parlamentar que lhe seria retirada em julho, «a Catalunha é uma nação, uma nação europeia que tem visto a sua condição nacional ser atacada desde 1974, pelo que a sua independência política é a única forma de continuar a existir como nação. Existe alguma forma alternativa de o garantir? Todas as evidências, durante décadas, demonstram que não, mas em todo o caso cabe aos responsáveis políticos espanhóis desmenti-lo, mas não com palavras e promessas, que sempre as houve, mas com ações». Mas as condições expostas no discurso de Puigdemont, para quem a questão é também de liberdade pessoal e sobrevivência política, indiciou que a chave para ultrapassar o impasse pode estar na desjudicialização, i.e., na amnistia.

E, por isso, a grande linha vermelha neste momento é a que separa PSOE e Sumar de PP e VOX. Como referiu Feijóo em entrevista ao El Mundo: «Se eu cedesse o que Sánchez vai ceder, o Presidente seria eu».

Apostado no desgaste de Feijóo e no fracasso quase certo da sua tentativa de investidura, que o PSOE descreve como sendo «uma perda de tempo para os espanhóis», Pedro Sánchez espera conseguir a investidura em outubro.
E esse é, neste momento, um cenário possível e quiçá o mais provável. Embora, à esquerda, sejam cada vez mais os que lembram os marcos da Constituição enquanto, à direita, mantém-se a esperança em novas eleições.

* Editado por José Cabrita Saraiva