Centenário de Natália Correia – 9 poemas inéditos

No centenário do nascimento da autora, o Nascer do SOL publica nove poemas inéditos que constituem uma espécie de diário íntimo.

Os nove poemas inéditos de Natália Correia que aqui se dão a ler chegaram-me em fotocópias de dactiloescritos produzidos em máquina de escrever eléctrica, e já com o carimbo da Biblioteca Nacional de Lisboa aposto, pela mão amiga do fotógrafo José Luís Madeira (Lisboa, 1948-2012) – um dos testamenteiros, com o casal Manuela e António Ramalho Eanes e a Arquitecta Helena Roseta, do espólio de Natália Correia e Dórdio Guimarães, depois da morte deste a 2 de Julho de 1997 –, com o pedido de verificar e confirmar se seriam efectivamente inéditos ou se haviam sido publicados em algum jornal ou revista. Ao tempo – de meados de 1997 a princípios de 2000 –, eu levava a cabo uma série de investigações bibliográficas na Hemeroteca Municipal de Lisboa destinadas, sobretudo, à organização da Obra Poética (1953-1993), de Luís Pignatelli, que viria a sair em 1999 com a chancela da & etc de Vitor Silva Tavares.

A profunda Amizade que nos unia sobremaneira pelo despudorado humor que ambos cultivávamos esplendorosamente, e a sua confiança no meu pequeno talento de encontrador de pérolas perdidas nos olvidados e antiquíssimos hebdomadários colocados em repouso e disponibilidade na Hemeroteca Municipal de Lisboa, associada ao facto de ser José Luís Madeira, com Helena Roseta, uma das pessoas responsáveis pelo inventário e catalogação dos espólios de Natália Correia e Dórdio Guimarães, José Luís Madeira decidiu confiar-me os referidos poemas, que acabaram por enformar o volume por mim organizado ̶ com a extinção da Parceria A.M. Pereira, ainda hoje sem editor ̶ , Uma Rosa Vulva me Entregaste.

O erotismo descarnado e explícito num despudoramento absoluto de que alguns destes poemas se nutrem não encontra facilmente paralelo na restante obra poética da autora, tão vasta de temas, de ritmos, de motivos, de transgressões e de afirmações inequívocas e libertárias, contraditórias e visionárias. E a sua sequência, alguns deles datados e situados no seu lugar de escrita – Mafra, entre 21 de Julho e 28 de Setembro de 1971 –, revela-nos uma espécie de diário íntimo e dadivoso de uma paixão, de um amor que se consumou, com todas as humaníssimas e inerentes consequências e contingências.

Se nos dois poemas titulados «Esta Hora» é a angústia da frustração e a impotência do ser perante as contingências da «hora / Em que me deploro / Em que me imploro», os seguintes – «Auto de Fé [1]» e «Auto de Fé [2]» – são poemas em que o sujeito poético nos surge masculinizado, assumindo uma persona poética em que se consuma, para usar palavras da própria Natália, «a aplicação de um conceito mimético que subentende a capacidade que a mulher tem de masculinizar o seu poder criativo».

«A Tua Boca» apresenta-se-nos como um poema evocativo do desejo em que se convoca a experiência como «maturidade corrupta» dos amantes.

«Inércia», é nesse decorrer diário da paixão a que acima aludi, a imagem e a metáfora do desespero e da angústia na espera do ser objecto da paixão – que, por testemunho de viva voz de José Luís Madeira (que nunca foi pessoa de inventar intrigas ou erguer aos céus falsos testemunhos, e que era delas moço de companhia nas viagens de automóvel conduzido por Noémia Delgado – ex-mulher de Alexandre O’Neill e sua namorada à época –, de Lisboa para Mafra – onde Fernanda de Castro possuía uma casa –, e de Mafra para Lisboa), me revelou ser a escritora e poetisa Fernanda de Castro a ‘musa’ muito amada destes poemas.

«A leitura do mito amazónico põe em correlação a virilização da mulher como a feminização do homem», lembra-nos a autora. «Como ressurgência amazónica, o lesbianismo revelará de uma atitude imitativa, uma operação mágico-mimética para absorver o belicismo pénico, despojando o homem dessa propriedade».

E será à luz destes pressupostos que se devem ler (para além da fruição da sua beleza estética e da frescura e novidade antecipadas de mais de cinquenta anos aos tristes dias de agora e de aqui), os poemas «Rosa», «Coitus Interruptus» e «Enquanto», que fecha esta breve mostra da mais transgressora poesia de Natália Correia no centenário do seu nascimento.

9 Poemas Inéditos

ESTA HORA

[1]

Esta é a hora

Em que me devoro

Em que me demoro

Esta é a hora

Que me não comove

Que me não demove

Esta é a hora

Em que me deploro

E em que me imploro

[2]

Queria Rasgar este tempo

Romper esta hora

Roubar-lhe o momento

E dar-lhe a desora

Pra não mais ser hora

Ciclo movimento

Voz dominadora

Corda envolvente

Espia

Denunciadora

Invisível mão Que me prende

e me agarra

Que prende e me amarra

À condenação

Perpétua hora

Vazia.

Mafra, 21 de Julho de 1971

AUTO DE FÉ

I

De mãos postas em teu corpo

Beijo a ara do teu ventre

Hóstia

Cálice

Crucifixo

Que eu sorvo

Que eu mordo

Onde bebo o vinho do teu viço

II

Os lençóis são o terreiro

Os testículos fogueiro

Os negros pêlos a lenha

Bem cheirosa da montanha

E o meu sexo o herege Erecto

Embuçado no prepúcio Anúncio

Duma coroada glande Grande

Grande

E roxa

Amarrada entre as coxas;

Que a tua língua basta

Carrasco

Viscosa

Fanática

Nervosa

Esperta

Rodeia e chicoteia

Enleia e incendeia

Até que eu me converta

A TUA BOCA

Evoco

Essa tua boca

Envenenada de volúpia

Co’o gosto da maturidade corrupta

O cheiro da aridez da febre

E o furor da sede

De louca

Capaz

De romper audaz

Ferros de tédio inertes

De inflamar nocturnas antigas florestas

De prender marés de desejo

Num profundo beijo

Tenaz

Mafra, 26 de agosto de 1971

INÉRCIA

A minha náusea,

Que me causa

Viver

Neste repouso

Que não ouso

Romper

Desta inércia

Que não cessa

De estar

No desespero

Que não quero

Haver

Daquele gozo

Que não posso

’Sperar,

Não tem pausa.

Mafra, 3 de Setembro de 1971

ROSA     

Uma rosa fulva

Me ofertaste,

Uma rosa vulva

Me entregaste.

Ambas eu colhi

N’ambas me piquei.

Porque as não flori?

Porque é que as murchei?

Lisboa, 27 de Setembro de 1971