Foi aprovada pelo Parlamento uma das leis mais aberrantes do Direito Português, a Lei 38-A/2023, de 2 de Agosto, que determinou um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal da Jornada Mundial da Juventude. Se a nossa Justiça já funcionava de forma muito defeituosa, esta amnistia ameaça dar-lhe a machadada final, aumentando a grave sensação de impunidade que já perpassa na nossa sociedade.
Em primeiro lugar, a lei é discriminatória, uma vez que só abrange sanções penais relativas a pessoas entre 16 e 30 anos. Pode dar-se assim o caso de, num crime praticado por duas pessoas, uma de 29 e outra de 31 anos, a primeira ser abrangida pela lei, saindo em liberdade, e a segunda não, ficando na prisão. É manifesta a inconstitucionalidade desta solução.
Em segundo lugar, a lei é extremamente complacente, já que, com algumas excepções, perdoa um ano nas penas de prisão até oito anos e amnistia as infracções penais puníveis com pena até um ano de prisão ou 120 dias de multa. A repressão penal dos crimes em Portugal será assim fortemente afectada.
Finalmente, a lei amnistia as infrações disciplinares e as infrações disciplinares militares, cuja sanção aplicável, em ambos os casos, não seja superior a suspensão ou prisão disciplinar. Assim, com excepção dos casos mais graves puníveis com a pena de expulsão, serão amnistiadas todas as infracções disciplinares praticadas pelos profissionais liberais, o que corresponde a tornar ineficaz a jurisdição disciplinar das Ordens Profissionais, na véspera de a mesma ser colocada sob controlo do Estado, através da Lei das Ordens Profissionais. Da mesma forma, graves infracções praticadas por militares ficarão sem punição, com graves prejuízos para a disciplina das nossas Forças Armadas.
A Lei da Amnistia deu ainda origem a várias perplexidades no âmbito da nossa Justiça.
Assim, numa decisão judicial recente, um Tribunal declarou amnistiados 79 crimes de que o arguido vinha acusado, em virtude da Lei da Amnistia. Neste caso, deu-se a originalidade de esse tribunal ter adiado a sentença, que deveria ter proferido em momento anterior, à espera que essa amnistia entrasse em vigor. Se este precedente vingar, face à frequência com que temos visitas do Papa a Portugal e à enorme demora da nossa Justiça, corremos o risco de todos os nossos Tribunais pura e simplesmente suspenderem as suas decisões, à espera da próxima visita do Papa.
Outra situação foi a Directora-Geral da Administração Judiciária ter procurado dar ordens aos Tribunais sobre a forma como deveriam aplicar a Lei da Amnistia, pondo assim claramente em causa a separação de poderes entre o Governo e os Tribunais.
Segundo refere a Bíblia, Jesus teria dito que os ofendidos deveriam perdoar setenta vezes sete vezes as ofensas contra si praticadas (Mateus, 18, 21-22). Não há, porém, nenhum Estado que possa funcionar se não aplicar a sua justiça penal e disciplinar e decretar amnistias e perdões com esta abrangência. A política de Justiça em Portugal não se pode basear em amnistias ou perdões, ainda mais quando as mesmas são discriminatórias e inconstitucionais.
É mais do que tempo de o Parlamento tomar medidas para que a Justiça seja aplicada em lugar de adoptar iniciativas para assegurar que deixe de o ser.