Quem, e como, está a mudar o mundo?A cimeira do G20, realizada nos dias 9 e 10 de setembro em Deli, deu algumas pistas valiosas. Das tensões entre potências à projeção de uma Índia nacionalista; da afirmação de Itália no plano geopolítico à resistência da Rússia, ou a um Brasil que, sem surpresa, se dissocia da ordem internacional liberal, o encontro foi revelador em termos de política internacional. E serviu para anunciar a entrada da União Africana – à semelhança da UE, na qualidade de bloco regional (ver pág. 40).
Mas não é fácil concertar posições entre um conjunto tão diverso de atores. E o que resulta da última cimeira reflete a convergência possível em torno de poucos, e mínimos, denominadores comuns. Desde logo o apelo à «completa e efetiva implementação» do acordo dos cereais do Mar Negro. Além deste tema, também foram abordadas as questões do clima, da restruturação da arquitetura global da dívida e do aumento do crédito por parte das grandes instituições financeiras multilaterais como o FMI ou o Banco Mundial.
Bharat: a potência que se segue?
O Presidente chinês Xi Jinping foi um dos grandes ausentes. Num mundo onde as fronteiras e os símbolos ainda importam, a ausência decorreu de mais um incidente diplomático entre Pequim e Nova Deli, depois do Ministério dos Recursos Naturais da China ter divulgado um mapa onde o Estado do Arunachal Pradesh, no nordeste da Índia, e o planalto de Aksai-Chin, na região de Caxemira, figuravam como território chinês. Uma reivindicação territorial que, segundo o secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros indiano, «não tem qualquer fundamento». O porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros da China exortou a Índia a permanecer «calma e objetiva», afirmando que o mapa, divulgado anualmente, é um exercício «rotineiro».
Mas se é muito o que separa Xi Jinping e Narendra Modi, também é muito aquilo que os une (e que, unindo-os, os separa). Os dois são ‘homens fortes’, líderes iliberais, apostados em projetar o futuro a partir de uma leitura nacionalista da História.
Na qualidade de anfitrião, Modi focou-se em projetar a Índia como potência global. Mas a Cimeira foi também pensada em função das eleições gerais agendadas para a primavera de 2024. Num clima de polarização, 28 partidos da oposição tentam concertar-se para evitar que Modi e o seu partido nacionalista conquistem a terceira vitória consecutiva.
A tarefa não é fácil, até porque o nacionalismo de Modi, além de populista, é popular. Sinal importante foi o facto de, no protocolo da cimeira, o termo ‘Índia’ ter sido substituído por ‘Bharat’, que remonta aos primeiros textos do hinduísmo. A Constituição de 1949 estabelece que «A Índia, que é também Bharat, deve ser uma união de estados» mas, mais do que uma designação alternativa, a mudança reflete o nacionalismo hindu que colide com a ideia de uma Índia pluralista e secular. Não é uma coincidência que a coligação da oposição – a Aliança Inclusiva para o Desenvolvimento Nacional Indiano – se traduza no acrónimo INDIA.
Da Europa caiu uma estrela
A Cimeira também deixou sinais sobre uma Europa onde o centro gravitacional de poder está a mudar. O destaque coube à primeira-ministra italiana, que tem conduzido a política externa de acordo com os princípios do atlanticismo e do pragmatismo, privilegiando a relação com os Estados Unidos sem descurar os interesses de Itália, nomeadamente nas relações com a Ásia e a África.
Mas a política é a arte do possível. Em 2019, a Itália aderiu à iniciativa da Nova Rota da Seda. Meloni, então na oposição, considerou a adesão «um erro grave». Agora, no poder, a primeira-ministra sinalizou a vontade de abandonar a iniciativa. O que obriga a um equilíbrio difícil entre cumprir a via atlanticista – assente num alinhamento com Washington e Londres – e evitar a colisão com Pequim, que poderia lesar a economia italiana. Antes da Cimeira, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês sublinhou que, nos últimos cinco anos, o volume de comércio entre os dois países aumentou de 50 para 80 mil milhões de dólares, e as exportações italianas para a China aumentaram 30 por cento.
Segundo o Corriere della Sera, Meloni colocará a questão da participação na iniciativa da Nova Rota da Seda à consideração do parlamento, de forma a revestir a decisão de legitimidade democrática.
E, à margem do encontro, foi celebrado um Memorando de Entendimento entre Estados Unidos, Índia, Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, França, Alemanha, Itália e UE com vista a desenvolver uma rede ferroviária e marítima ligando a Índia ao Médio Oriente e à Europa. A iniciativa pode ser lida como uma tentativa de responder à Nova Rota da Seda, e à crescente influência da China no Médio Oriente.
Putin em vantagem
Ao contrário das declarações da Cimeira de Bali (2022), a declaração final não incluiu uma crítica explícita à Rússia, limitando-se a apelar aos Estados para que se abstenham do recurso ao uso da força para ganhos territoriais e a lamentar «o sofrimento humano e as repercussões adversas do conflito na Ucrânia para a segurança alimentar e energética global». Uma boa surpresa para Moscovo. Em declarações à imprensa, Sergei Lavrov afirmou: «Honestamente, não esperávamos isto e estávamos preparados para defender a nossa formulação da declaração. O Sul Global já não está disposto a aceitar lições de moral».
Pela parte ucraniana, o porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros deixou uma mensagem de condenação: «A Ucrânia está grata aos parceiros que tentaram incluir palavras fortes no texto. Ao mesmo tempo, no que diz respeito à agressão da Rússia contra a Ucrânia, o Grupo dos 20 não tem nada de que se orgulhar».
Brasil (des)alinhado
Lula da Silva assumirá a presidência do G20 em dezembro. Estreou-se declarando que Vladimir Putin, alvo de um mandado de captura emitido pelo Tribunal Penal Internacional, não seria preso se fosse à cimeira do G20: «Ninguém vai desrespeitar o Brasil porque tentar prender Vladimir Putin no Brasil seria um desrespeito ao país. É preciso que isso seja levado muito a sério. Putin pode ir tranquilamente ao Brasil. Eu posso dizer-lhe, se eu for presidente do Brasil e ele for ao Brasil, não há por que ser preso».
Mas a questão, com a qual a África do Sul também se deparou, é menos de vontade pessoal ou posicionamento geopolítico, e mais de direito internacional, uma vez que o Brasil é signatário do Estatuto de Roma de 1998. Lula recuou, afirmando que a decisão estaria nas mãos da justiça. Mas questionou a adesão do Brasil ao tratado fundador do TPI: «Eu quero saber porque é que nós entrámos. A Índia não entrou, a China não entrou, os Estados Unidos não entraram, a Rússia não entrou… Eu vou saber porque é que o Brasil entrou». l
* Editado por José Cabrita Saraiva