Da democracia e do compromiso

A democracia é um regime de equilíbrios, pressupõe partilha de poderes, não se divide entre os que são mudos e os que são surdos.

Um Governo que disponha de maioria absoluta tem, em democracia, uma especial exigência.            Claro que não o aflige o risco de cair no Parlamento, não o assustam as discordâncias, passa por cima da incompetência própria, pode conviver com a instabilidade das entradas e saídas de membros seus.

Pode ser conduzido a um estado de autismo, pode construir um muro à sua volta, pode imaginar que o poder reside em si próprio.

Há dois limites: a arquitetura do regime e o bom senso.

A liberdade de expressão e de manifestação asseguram a publicidade da discordância de todos os atores sociais. Não matam, certamente, mas amolentam.

Principalmente quando os problemas por resolver se tornam crónicos, quando a surdez responde, quando a esperança acaba.

A conflitualidade social é o espelho da insatisfação e pode conduzir à paralisia ou à agudização da resposta de setores fundamentais.

Se assim for, o Governo que a ignora tende a viver fora do mundo, a fechar os olhos, a fingir que não é nada com ele.

Pode, mesmo, dar bilhetes e passes gratuitos por simples inconsciência.

Não terá grande futuro. Mas para além das liberdades reconhecidas e protegidas, a Constituição lembra que o Governo não é único detentor do poder político mesmo que protegido pela maioria no Parlamento. Desde logo, o Tribunal Constitucional e, em geral, o sistema de Justiça. A constitucionalidade e a legalidade são limites que não podem ser ultrapassados.

Os atos do Governo passam por este crivo. Para além disto, Portugal tem Regiões Autónomas com representação eleitoral, atribuições e capacidade próprias que devem ser obrigatoriamente escutadas e respeitadas. Isto é, nenhuma delas se subsume numa coutada do Governo central.

E a lei fundamental acrescentou também os poderes atribuídos ao Presidente da República conferindo-lhe capacidade de intervenção, de fiscalização, de dissolução da Assembleia da República assistido por um conselho consultivo, o Conselho de Estado.

Do ponto de vista eleitoral, Presidente e Parlamento são escolhidos em eleições separadas, têm legitimidade própria, natural será que provindos de maiorias diferentes tenham, também, opiniões diversas.

E o Presidente é um agente político essencial. Pode concordar com o Governo, pode tentar facilitar-lhe a tarefa, pode ampará-lo e pode discordar, insistir, fundamentar a sua não concordância.

A frase utilizada pela qual se conclui que o Presidente não é a Rainha de Inglaterra quer significar que ele tem uma palavra a dizer e uma capacidade que não pode ser negada.

A democracia é um regime de equilíbrios, pressupõe partilha de poderes, não se divide entre os que são mudos e os que são surdos.

Por todas estas razões o que se passa é estranho.

O primeiro-ministro entende que a paz institucional em Portugal só é beliscada por picardias políticas. Faz de conta que não existe discordância, passa por cima dela, pretende ignorá-la. Felizmente que o presidente do seu partido está mais atento.

Diz ele que a as soluções não passam apenas pelo que o governo pensa, que devem ser aceites contributos, que não pode haver pesporrência e a humildade deve imperar.

É que a democracia não é apenas uma palavra e hoje que no Chile se jura defendê-la para sempre convém perceber exatamente do que falamos e como a praticamos.

O narciso no poder contribui para a sua destruição.