Acidentes com automóveis, encontros com ciclistas, invasões de propriedades agrícolas, estragos nos cultivos, passeios pelas cidades, buracos na terra… Este ano, os javalis não têm dado tréguas. Os agricultores queixam-se dos prejuízos, as autoridades preocupam-se com a segurança nas estradas e, em algumas cidades, a noite é sinónimo de visitas outrora inusitadas, mas que se têm tornado cada vez mais frequentes em vários pontos do país. Em janeiro, o Nascer do SOL alertava para esta realidade, expondo os inúmeros casos de acidentes de viação consequentes da sua presença e dando voz a vários agricultores preocupados com os seus cultivos. Em agosto, dava conta da “praga” existente em Vila Nova de Santo André, cidade do Litoral Alentejano, que há vários meses tem avistado um grupo de javalis (uma porca com os seus filhos) que, ao anoitecer, deambulam pela cidade, passam as passadeiras e procuram comida nos canteiros e jardins de alguns bairros da zona, acabando por tudo destruir. E as opiniões dividem-se: se há quem considere que os humanos roubam os espaços aos animais e que estes se encontram apenas em busca de alimento; outros apontam para o seu perigo para a saúde pública (estes podem ser portadores de peste suína), defendendo que a caça ao javali deve ser intensificada. Mas estaremos nós diante de uma invasão? Serão realmente estes animais perigosos? Afinal, por que razão se têm aproximado das zonas urbanas? Estará a população de javalis a crescer de uma forma descontrolada? De que forma se deve controlar a situação?
300 mil javalis em Portugal
Segundo Luís Mira, secretário-geral da Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP), ao longo dos últimos anos, verificou-se um crescimento exponencial da população de javalis em toda a Península Ibérica. “Há cerca de 50 anos, esta era uma espécie com pouca expressão e localizada sobretudo em zonas remotas do território. O panorama alterou-se radicalmente, a ponto de constituir atualmente um problema grave, com a presença de javalis praticamente em todas as zonas do nosso território, por vezes entrando em espaços urbanos ou onde é possível encontrar um número considerável de pessoas”, conta ao i.
O javali, afirma Luís Mira, não tem predadores no seu meio, com exceção do lobo e do urso, que “não constituem atualmente uma ameaça à sua proliferação”. “Além disso, a sua reprodução é intensa é possível duas vezes por ano, o que permite uma rápida expansão do número de javalis presentes numa determinada zona”, alerta, acrescentando que “só através da intervenção humana é possível exercer um controlo das populações de javalis e garantir o equilíbrio em relação ao meio em que vivem”.
De acordo com o Plano Estratégico e de Ação do Javali em Portugal, feito por uma equipa da Unidade de Vida Selvagem do Departamento de Biologia & CESAM da Universidade de Aveiro, promovido pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) e revelado em maio, este mamífero silvestre que “ajuda a manter as florestas”, tem-se tornado “sobreabundante”, chegando aos cerca de 300 mil animais em Portugal. Estima-se que existam, em média, 277.385 javalis (Sus scrofa) no país, o valor pode variar entre os 163.157 e os 391.612 animais e densidade populacional desta espécie é maior nas regiões do Alentejo, Beira Interior e Trás-os-Montes. “Agora, temos a confirmação de que temos um número anormalmente alto de javalis nos territórios rurais e nas zonas periurbanas e precisamos de aumentar o esforço de extração”, afirmou o secretário de Estado da Natureza e Florestas, João Paulo Catarino, que falava aos jornalistas à margem da apresentação do plano. O responsável indicou ainda que o Governo vai “propor o alargamento dos períodos de caça ao javali”, com o objetivo de “reduzir substancialmente o efetivo”. “Para já, estamos a equacionar mesmo aumentar os períodos de caça ao javali praticamente para todo o ano”, adiantou.
Já o vice-presidente do ICNF, Paulo Salsa, salientou, na mesma ocasião, que com os resultados deste estudo “inédito” sobre a espécie em Portugal, as autoridades nacionais podem “tomar melhores decisões”: “A população de javalis estima-se entre os 300 mil e os 400 mil exemplares, tem uma taxa de crescimento muito grande e tem muito alimento disponível. Portanto, precisamos de reduzir esta população entre 10% a 20%, nos próximos cinco a dez anos”, alertou.
“Não nos podemos esquecer que a ameaça da peste suína africana é latente a nível europeu. Neste momento, já se encontra no norte de Itália e, apesar de parecer longe, temos de ter informação que nos permita atuar de uma forma racional e consistente”, notou ainda Carlos Fonseca, do Laboratório Colaborativo ForestWISE, um dos autores do estudo que implicou a instalação de mais de 400 câmaras fotográficas de infravermelhos em vários locais de 16 áreas-piloto e a captura de animais para a colocação de coleiras com GPS, entre outras metodologias.
Período de caça e prejuízos
Recorde-se que, este ano, para travar este aumento, a caça ao javali foi autorizada pelo Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), inicialmente até 31 de Maio, através de esperas diurnas ou noturnas, com ou sem recurso a luz artificial, dentro ou fora do período de Lua Cheia. O ICNF acabou por alargar o prazo, entre 1 de Julho e 30 de Setembro, e autorizou a realização de batidas com cães em culturas agrícolas afetadas pelos javalis.
De acordo com o levantamento divulgado em julho pela Associação Nacional dos Produtores de Milho e Sorgo (ANPROMIS), os prejuízos provocados por estes animais nas searas de milho em Portugal ascenderam a oito milhões de euros, em 2022. No mesmo documento conclui-se que o aumento descontrolado da população de javalis que se tem verificado nos últimos anos no nosso país, “está a causar avultados e crescentes prejuízos no setor agrícola nacional”. Ou seja, para lá das culturas de milho. Além disso, frisa o mesmo documento, nem mesmo o abate de 20 mil a 30 mil por ano é considerado suficiente pelos agricultores, pelo que defendem medidas imediatas para que o problema não se torne “incontrolável”.
Segundo Jorge Neves, presidente da Associação de Produtores de Milho e Sorgo de Portugal (ANPROMIS), o principal responsável por criar condições para a resolução do problema é o Estado, desde logo “agilizando processos quando é necessário atuar”: “Cabe depois a todos os atores a sua quota parte de responsabilidades, desde os agricultores (identificando precocemente os problemas e tomando medidas de prevenção), sem esquecer as entidades gestoras de zonas de caça que devem acautelar uma gestão sustentável dos javalis e promover a sua compatibilização com os demais valores em presença»”, frisava em janeiro ao Nascer do SOL. Não obstante, para além das medidas de gestão das populações pela caça, seria benéfico, acrescentou, “apoiar os agricultores a instalarem nas suas culturas sistemas de vedações ou convencionais e/ou elétricas para minimizar estragos”. “Esses apoios poderiam provir dos fundos comunitários para a agricultura”, exemplificou.
Nas áreas urbanas, onde os animais são avistados a passear – mas, por norma, não se aproximam das pessoas por “medo” -, os maiores prejuízos são ao nível dos relvados que, segundo Valter Espada, morador de Vila Nova de Santo André onde o problema se intensificou este verão, estão “todos revirados”. “Acredito que sejam zonas frescas, já que são regadas à noite e têm muito alimento, nomeadamente minhocas», explicava ao Nascer do SOL em agosto.
Na mesma altura, David Gorgulho, Presidente da Junta da mesma cidade, explicava que os animais chegam em busca de uma minhoca presente nos espaços verdes. “Temos muitos espaços verdes aqui… Eles circulam nas imediações e têm um faro apuradíssimo”, afirmava, garantindo que os animais só são perigosos se se sentirem ameaçados na presença das crias. De acordo com o governante os maiores problemas são ao nível do espaço público e dos acidentes rodoviários. Interrogado sobre as medidas implementadas para mitigar o problema, David Gorgulho revelou que a Câmara Municipal de Santiago do Cacém começou a colocar alimentação devidamente autorizada pelo ICNF em algumas zonas estratégicas, pegando nos caminhos que estes percorrem para chegar até à cidade.