Uma carta do outro mundo

Duas das crateras da Lua foram baptizadas com nomes de navegadores portugueses. Vasco da Gama é o único no satélite natural da Terra com direito a nome próprio e apelido.

Tenho diante de mim o velho Nilo, o famoso rio africano que corre ao longo de seis mil e seiscentos quilómetros e tem esta particularidade curiosa: sobe-se para baixo e desce-se para cima. Pelo menos se estivermos a olhar para um mapa, como é o meu caso. Os nomes das localidades nele impressas seriam motivo suficiente de fascínio: Alexandria, Guiza, Fayum, Deir el-Bahari, Lucsor, Kom Ombo, Ilha de Elefantina, Amara…

Mas este não é um simples mapa. Além dos acidentes geográficos, da toponímia e das linhas que representam estradas ou caminhos-de-ferro, está repleto de informação histórica sobre alguns dos templos e sítios arqueológicos que ladeiam o rio. Um pequeno exemplo: «A palavra ouro (nub, em egípcio) pode ter originado o nome Núbia. A região [que pertencia ao Alto Egipto, ou seja, o sul do país] fornecia ao Egipto ébano, marfim, peles de leopardo e incenso». Na parte de trás da folha desdobrável há uma cronologia e uma fabulosa reconstituição do templo de Amon-Ré de Karnak.

Por esta altura já devem ter percebido que estou a falar de um mapa da National Geographic, a pequena revista de lombada amarela onde cabe o mundo inteiro.

Começámos pelo mapa do Nilo, publicado na edição portuguesa de abril de 2001, mas poderíamos falar de muitos outros. Por exemplo, o do Evereste, que contém «a mais rigorosa imagem da grande montanha alguma vez produzida» (NGPortugal, maio de 2003). Ou o do Japão, com uma beleza de grafismo, incluído na edição de junho de 1984, a mesma onde aparece a reportagem ‘India by Rail’, com textos de Paul Theroux e fotografias de Steve McCurry.

Se quisermos algo ainda maior, temos o mapa de uma federação que já não existe, a União Soviética. Publicado em março de 1990, trata-se verdadeiramente de uma relíquia de outro tempo.

Como seria de esperar, guardei o melhor para o fim. Por sinal é também o mais antigo: o mapa da Lua de fevereiro de 1969, tão grande que tenho de o desdobrar em cima da cama. Serve de complemento a vários artigos publicados naquele número, um dos quais intitulado justamente ‘How we mapped the moon’, onde se explica como foi construída esta representação meticulosa. O texto termina assim: «E de que cor deveria ser a nossa lua? Ao longo dos séculos, o nosso satélite foi descrito variadamente como vermelho, dourado, pálido, cinzento, prateado, até azul. Por uma questão de realismo, e de beleza, decidimos mostrá-lo cinzento-prateado, contra a escuridão azul da noite».

Mais uma vez, é impossível ignorar o poder e encanto das palavras: Oceanus Procellarum, Mare Tranquilitatis, Mare Nubium, Mare Moscoviense. E, nas margens, encontramos uma lista com todas as crateras: duas delas foram baptizadas com nomes de navegadores portugueses, Magalhães e Vasco da Gama (o único em toda a Lua que tem direito a nome próprio e apelido).

O mapa da União Soviética foi publicado um ano e picos antes da queda do império; o do satélite terrestre saiu quatro meses antes de Neil Armstrong pisar o solo lunar. Se o primeiro pode ser considerado uma relíquia de outro tempo, este último é verdadeiramente uma carta de outro mundo.