A Orquestra Médica Ibérica sobe este domingo ao palco para um concerto solidário que visa ajudar a promover uma medicina mais humana. O maestro Sebastião Martins descreve-nos o seu percurso do Conservatório para o consultório, passando pelo maior campo de refugiados
do mundo.
Na tarde deste domingo, 24 de setembro, quando ainda no primeiro andamento da 5.ª sinfonia de Tchaikovsky aos sopros se juntarem as cordas e os metais, muitos poderão ficar agradavelmente surpreendidos com a qualidade do som da orquestra. Afinal, não é segredo para ninguém que no palco estão músicos amadores – mais concretamente jovens médicos e estudantes de Medicina que se reunem duas vezes por ano para um concerto solidário.
«O facto de não sermos profissionais não quer dizer que a música seja mal feita», confidencia-nos Sebastião Martins, psiquiatra no Hospital Amadora-Sintra que nas horas livres assume a direção artística e a batuta da Orquestra Médica Ibérica.
«Numa orquestra de não profissionais sente-se a energia ardente de pisar o palco, até porque, como o fazemos tão poucas vezes, quando o fazemos é para ser como se fosse a última vez. E aquilo que nos falta um bocadinho em técnica, que os músicos profissionais têm porque estudaram mais do que nós, tentamos compensar com esta entrega e esta energia. Isso nota-se e o público nota também».
Sebastião Martins sabe do que fala. Começou a aprender música com uma idade especialmente precoce. «Ambos os meus pais eram músicos – chegaram a fazê-lo profissionalmente, mas depois optaram por outras áreas – e decidiram que seria interessante eu estudar um instrumento. Comecei por estudar violino aos quatro anos, e depois fiz os estudos todos no Conservatório. Estudei composição, ainda hoje componho, e foi lá também que comecei a ganhar o gosto da direção de orquestra», revela. Fez diversas masterclasses e tenta frequentar aulas numa base regular para manter um nível alto de exigência.
Em abril de 1888, enquanto compunha a sinfonia que se vai ouvir domingo no auditório bracarense, Pyotr I. Tchaikovsky descrevia assim a atmosfera do primeiro andamento:_«Uma completa resignação perante o destino».
Mas o destino somos também nós que o fazemos. E Sebastião Martins chegou a um ponto da sua vida em que se viu diante de um dilema, um caminho que se bifurcava. Por qual dos lados seguir? «Foi uma decisão difícil», recorda. «Antes de entrar em Medicina dediquei-me um ano só à música, a acabar o conservatório e o Hot Clube». O jazz, evidentemente, é outra das suas paixões. «Foi um ano muito bom, mas apercebi-me que fazer música a tempo inteiro se calhar me ia tirar um pouco o gosto que agora tenho precisamente por não a fazer a tempo inteiro. Nunca saberei». E muitas vezes continua a questionar-se se fez a escolha certa. «As dúvidas subsistem sempre, até porque o papel do médico não é o mesmo que era quando eu entrei há dez anos na faculdade e o futuro do SNS em Portugal é muito sombrio», reflete.
Ainda assim, cedo descobriu que para se dedicar a uma paixão não tinha de prescindir da outra. «Na minha faculdade ainda se cultiva muito a ideia do médico humanista. Quando lá cheguei encontrei um mundo cheio de oportunidades, com muitas coisas que se podiam fazer além da medicina, um mundo cheio de pessoas como eu que tinham uma paixão por música, que tinham estudado o seu instrumento com muita qualidade mas acabaram por não seguir a via profissional».
Os receios de que o curso lhe ia «sugar a vida toda» não se confirmaram, o que significava que os estudos não iriam necessariamente empurrar a música para fora da sua vida.
«A faculdade é um lugar privilegiadíssimo não só de partilha de conhecimentos, mas de partilha de experiências, com pessoas de tantos sítios diferentes, e na fase dos loucos anos da juventude, em que há muita vontade e muito talentos que podem e devem ser aproveitados».
E foi face a todo esse talento que lhe ocorreu juntar os seus colegas estudantes que tinham formação musical e fundar a Orquestra Médica de Lisboa, que passada quase uma década continua no ativo.
Uma nova aventura
O fim do curso de Medicina foi para Sebastião Martins outro momento de paragem e de reflexão. «Quando acabei a faculdade, com as dúvidas todas que tinha, decidi interromper um ano para perceber o que queria fazer. Abracei uma nova aventura, que foi a medicina humanitária em países em desenvolvimento», recorda.
O seu primeiro destino foi a ilha de Lesbos, seguindo-se Salónica. «A Grécia é uma porta de entrada para a maior parte dos refugiados que vêm para a Europa. E vêm muitas vezes carregados de esperança, de sonhos e de ideias de futuro que infelizmente são rapidamente destronados logo à chegada», reconhece. Sentiu-se particularmente frustrado por aquelas pessoas viverem em condições «absolutamente desumanas» dentro das fronteiras da União Europeia.
Depois da Grécia, rumou ao Bangladeche. «Estive no maior campo de refugiados do mundo, de maioria roynghia. Eles não podem retornar ao Myanmar, porque a sua minoria ainda não é aceite, e correm risco de ser presos, mortos, torturados, como aconteceu em 2017. Também não podem ser cidadãos do Bangladeche, estão num limbo sem visão de futuro». Dos cerca de um milhão de habitantes, 40% serão crianças. «Eu chamava àquilo o maior parque infantil ao ar livre. É como uma cidade enorme, com a diferença de não ser uma cidade sustentável, no sentido em que não podem produzir, não podem cultivar, estão completamente dependentes da ajuda humanitária. Vivem em condições muito precárias, a cidade foi edificada para ser provisória e cada vez mais tende a tornar-se definitiva», lamenta.
Apesar da sua especialidade em psiquiatria, tanto na Grécia como no Bangladeche fazia o papel de um médico de família que tem de atender às mais diversas maleitas. «No fundo era consulta aberta, podia aparecer qualquer tipo de queixas. Tinha também alguns problemas de saúde mental, mas eram muitas queixas de coisas mais simples, náuseas, vómitos, dores de cabeça, dores musculares, doenças infecciosas… de tudo um bocadinho».
Dos campos de refugiados trouxe muitas histórias de sofrimento e perseverança, que apontou num caderno. «Lembro-me de um jovem de 19 anos que tinha sido recrutado para uma milícia terrorista no Afeganistão e tinha visto os seus irmãos serem decapitados à sua frente. Ele felizmente conseguiu fugir com o primo, mas desenvolveu uma perturbação de stresse pós-traumático grave em que revivia o momento da morte dos seus irmãos como se estivesse lá outra vez, perdendo a consciência. E estes flashbacks que testemunhámos algumas vezes marcaram-me muito por ser algo que eu nunca tinha visto».
Quando regressou a Lisboa, Sebastião criou um projeto, Une Histoire Bizarre, em que dava a imigrantes e refugiados residentes em Lisboa a oportunidade de subirem ao palco para contarem as suas histórias. A peça foi vista por mais de duas mil pessoas.
Um gesto que muda tudo
Entretanto, surgiu a ideia de criar «uma coisa um bocadinho maior do que a Orquestra Médica de Lisboa, que ensaiasse só mais concentradamente» e assim nasceu a Orquestra Médica Ibérica, com músicos portugueses e espanhóis.
Às 16h deste domingo médicos e estudantes sobem ao palco para partilharem com o público de Braga «a maravilha que é fazer música».
O_programa, além da sinfonia de Tchaikovsky, inclui um concerto para violino de Mendelssohn e o Hino à Juventude de Joly Braga Santos.
Como maestro, Sebastião Martins considera que a sua principal função, «mais do que ter a técnica toda nas mãos, é ter a música toda na cabeça, e acima de tudo passar a paixão» que sente.
Sempre em estreita colaboração com os músicos. «O maestro não toca nenhum instrumento mas é o único que, através de um gesto, muda a música toda», resume.
As receitas da bilheteira revertem a favor da associação de voluntariado Porta Nova, que desenvolve projetos tanto a nível nacional como no estrangeiro e tem como missão melhorar e «humanizar» os cuidados de saúde prestados aos doentes.
E, se alguém disser que dar consultas e dirigir orquestras são atividades que nada têm a ver uma com a outra, talvez seja bom recordar que a palavra psiquiatria significa ‘medicina da alma’, uma definição que não assentaria mal a alguma da melhor música feita pelo homem.